Motivos para revogar a Reforma do EM

Motivos para revogar a Reforma do EM

10 motivos para revogar a Reforma do Ensino Médio

A Reforma do Ensino Médio (Lei nº 13.415/2017) foi, sem dúvida alguma, um retrocesso para a educação brasileira por aprofundar velhos problemas e trazer novos. Entidades científicas, professores(as), estudantes, gestores(as) escolares e pesquisadores(as) vêm se colocando contrários(as) a manutenção dessa reforma pelo governo Lula (2023-2026). Um exemplo de contestação contundente da Reforma do Ensino Médio está na “Carta aberta pela revogação da Reforma do Ensino Médio”[1], assinada por mais de 300 entidades, bem como as manifestações populares que se iniciaram em 2016, com centenas de escolas públicas brasileiras ocupadas por estudantes.

Importa destacar que os objetivos para a educação básica destacados pela Lei de Diretrizes e Base (LDB) podem ser simplificados em três, sendo eles, formar cidadãos plenos, preparar para o mundo do trabalho e permitir o acesso ao ensino superior. O problema é que essa reforma configura um ensino médio que não promove nenhum desses objetivos, aprofundando as desigualdades educacionais. Os motivos para sua revogação são diversos. Neste texto, apresento dez deles.

  1. O caráter autoritário

O ponto de partida para pensarmos a Reforma do Ensino Médio deve ser sua origem. Uma reforma do ensino médio já vinha sendo discutida desde, pelo menos, o no de 2003[2]. Contudo, o que se materializou em Lei e diretriz educacional, a Base Nacional Comum Curricular (BNCC), foi resultante de um golpe sobre a sociedade civil organizada, estudantes, docentes e pesquisadores(as). Sua provação ocorreu por meio de Medida Provisória, tendo uma origem autoritária. O Golpe de 2016 permitiu que lobistas do mercado financeiro, disfarçados de fundações educacionais, tomassem as rédeas das discussões curriculares que ocorriam até então, excluindo do debate as entidades científicas, pesquisadores(as), professores(as) e estudantes. A segunda versão da Base Nacional Comum Curricular (BNCC), que estava sendo produzida, foi suprimida e, em seu lugar, um terceiro documento bem diferente foi aprovado. Mesmo com centenas de escolas ocupadas por estudantes como forma de protesto, a reforma seguiu os rumos desejados pelos lobistas, cujo objetivo é transformar ainda mais a educação em mercadoria e formar mão de obra barata e desqualificada. Quando o Senado Federal abriu consulta pública online para identificar o seu nível de aprovação, dos 76.739 respondentes, 72.410 disseram não à Reforma do EM (94%), opiniões ignoradas pelos legisladores que ratificaram o golpe sobre a educação. Contudo, a pressa para sua aprovação e implementação deu origem a uma reforma que nem mesmo eles aprovam, por isso pedem ajustes, mas não a revogação. O fato é que a Reforma do Ensino Médio é autoritária.

  1. A precarização da prática docente

A Reforma do Ensino Médio obriga os(as) docentes a lecionar mais de uma disciplina com carga horária pequena e para as quais não foram formados. Isso amplia das demandas de estudo e preparação, já que eles terão que se desdobrar em mais de uma área, tendo pouco ou quase nenhum tempo para isso. Além disso, gera um maior volume de planos de aula, provas e atividades para corrigir, diários de classe, mais estudantes para ensinar e mais pais para atender. Há uma ampliação do trabalho sem que haja condições mínimas para isso.

Vale lembrar que foram inseridos componentes curriculares sem tradição no currículo, o que significa que os(as) professores(as) terão ainda que produzir materiais didáticos para as suas aulas sem receber para isso e nem mesmo ter sido preparados para tal tarefa. A Reforma do Ensino Médio não alterou as condições estruturais das escolas, mas exige dos(as) professores(as) que trabalhem mais tempo com os(as) estudantes. Os resultados dessa situação são vistos no abandono da profissão docente, adoecimento dos(as) professores e uma piora na qualidade do ensino ofertado. Todos(as) perdem.

  1. O estímulo à desqualificação profissional docente

A Reforma do Ensino Médio estimula a desqualificação dos(as) professores(as), por pelo menos dois motivos:

1) não mais há a exigência de formação na área de atuação para atuar em maior parte do currículo (nos itinerários); qualquer graduação em área correlata é o suficiente e;

2) os(as) professores(as) não estarão motivados para se aprimorar em sua área de formação, já que serão obrigados(as) a lecionar componentes curriculares diversos e que variam a cada ano.

A tendência é que o(a) professor(a) deixe de se qualificar em sua área de formação para ler de forma aligeirada conteúdos desses componentes que terá que ensinar e, assim, preparar suas aulas sem a profundidade esperada de um saber escolar. Como os componentes curriculares não são fixos, o conhecimento do(a) docente não será acumulativo e nem haverá razões para investir na qualificação intelectual relacionado ao componente.

Pense: se o(a) professor(a) não dará mais aulas da disciplina para a qual foi formado, por que ler livros da área? Qual o sentido, nesse contexto, de investir tempo e dinheiro em especialização? Para quê cursar pós-graduações ou participar de cursos e eventos acadêmicos na sua área de formação?

A Reforma do Ensino Médio provocará, à médio prazo, a maior desqualificação docente. Em pouco tempo teremos professores(a) ensinando um monte de coisa que não estudou e a qualidade desse ensino será cada vez pior.

  1. A desqualificação das matrizes curriculares

A Reforma do Ensino Médio piorou as matrizes curriculares dos estados. Reduziu a carga horária de disciplinas importantes e consolidadas no campo científico e escolar para incluir componentes curriculares sem tradição e sem fundamentação pedagógica e científica sólida. As reclamações de estudantes do empobrecimento do currículo são sintomáticas da falência educacional.

Disciplinas que permitem a promoção do pensamento crítico e artístico estão sendo reduzidas ou mesmo suprimidas, dando lugar aos componentes de adestramento para o mercado de trabalho precarizado, semelhantes aos conteúdos ensinados por coachs nas redes sociais.

Dois exemplos de componentes que tendem a ter essas características são “Projeto de Vida” e “Empreendedorismo“. Está claro que os(as) estudantes estão sendo privados de ter acesso a produção do conhecimento científico consolidado e acumulado, bem como retirando deles a possibilidade de conhecer as áreas do saber para seguir carreira profissional.

  1. A subutilização do(a) professor(a)

Outro problema da Reforma é a subutilização dos conhecimentos especializados dos(as) professores(as). O(A) professor(a) é aquele(a) que dedicou quatro anos de sua vida para obter conhecimentos em uma área científica, lendo, relendo, escrevendo e reescrevendo, dialogando com outros(as) profissionais experientes e qualificados(as) e participando de eventos e seminários. Muitos(as) continuam sua formação por meio de especializações, mestrado e doutorado, realizando pesquisas e consolidando-se como especialistas em suas áreas de atuação.

A Reforma faz com que esses(as) profissionais qualificados(as) sejam subutilizados(as), uma vez que, ao serem deslocados para lecionar novos componentes curriculares questionáveis, seu conhecimento científico é desperdiçado. Se um(a) professor(a) de Geografia é transferido(a) para lecionar em uma área fora de sua especialização, sua aula pode vir a se resumir às suas opiniões pessoais e pouco se diferenciar de uma conversa informal, já que ele(a) deixa de falar como um especialista. Qual o sentido da escola nesse contexto? Como formar para a cidadania, para o mundo do trabalho e para acessar o ensino superior?

  1. A responsabilização prematura

A Reforma do Ensino Médio responsabiliza os(as) estudantes por possíveis fracassos escolares e profissionais ao obrigá-los(as) a escolher os itinerários formativos. Eles(Elas) são culpabilizados(as) por problemas que possam vir a ter no futuro próximo ou mesmo durante o ensino médio. Por exemplo, se um(a) estudante escolhe o itinerário de CHSA e depois percebe que não é a área que deseja seguir profissionalmente, a culpa lhe será atribuída. Se escolhe esse itinerário e tira notas insuficientes para ser aprovado, pode ser responsabilizado(a) por ter feito uma escolha inadequada.

No entanto, é importante salientar que essa escolha tem sido, na verdade, uma imposição da escola a partir dos itinerários que ela oferece, já que as instituições educativas são obrigadas a ofertar apenas dois. Na prática o que temos visto é exatamente isso nas escolas públicas: frente a falta de condições estruturais, as escolas oferecem o que é mais fácil e na quantidade mínima exigida.

  1. O caráter ideológico neoliberal

A Reforma do Ensino Médio é ideológica e violenta. Os componentes curriculares “Projeto de Vida” e “Empreendedorismo” trazem consigo uma ideologia que pressupõe que todos têm as mesmas condições e partem do mesmo lugar, bastando apenas planejar suas vidas e empreender para ter sucesso. Essa ideologia é equivocada, perigosa e violenta, pois leva as pessoas em situação de precariedade estrutural e social a assumirem a culpa por suas condições.

Não estamos dizendo que não devemos pensar, planejar e agir de forma proativa em relação às nossas vidas, mas é importante lembrar que há aqueles que não têm sequer expectativa para o presente, que vendem o almoço para comprar a janta. Essas pessoas são vítimas e não culpadas por suas condições. Falar em empreendedorismo sem levar em conta as limitações impostas é perverso.

O empreendedorismo só faz sentido quando há uma formação sólida, condições materiais e estruturais para investir. Essa ideologia tira a responsabilidade do Estado em dar suporte à sociedade, garantindo o atendimento dos interesses do mercado que é cortar “gastos” com a educação pública.

  1. O caráter anti-escola

A Reforma do Ensino Médio é anti-escola. Ao vender a ideia do empreendedorismo, a reforma acaba induzindo os(as) estudantes ao abandono escolar. A ideologia do “self-made man” leva à compreensão de que estudar não compensa e que o sucesso profissional vem da criatividade e de uma suposta capacidade empreendedora. Essa ideia vem se espalhando, por isso são comuns os ataques ao conhecimento, às universidades e aos pesquisadores.

A REM induz a acreditar que o importante é ter capacidade empreendedora, e que isso não tem nada a ver com a qualificação profissional. Ignora-se as condições sociais e materiais díspares das pessoas. Um empreendedor nesses moldes não é alguém que arduamente se especializou antes de investir em algo, mas aquele que teve, do nada, uma ideia genial. Para legitimar essa ideologia, são comuns os casos excepcionais, que podemos assemelhar ao cometa Halley, que raríssimas vezes passa diante de nossos olhos.

Os(As) estudantes ao absorverem essa ideologia tenderão a desacreditar na escola e na universidade como instituições colaborativas ao sucesso profissional. O resultado será a ampliação da evasão escolar e o desinteresse pelo ensino superior.

  1. A falsa liberdade de escolha

A Reforma do Ensino Médio promete supostas liberdades de escolhas dos(as) estudantes. E se assim fosse, seriam prematuras. A Reforma obriga os(as) jovens, que vivem um momento bastante metamórfico de suas vidas, a escolher um itinerário formativo e, consequentemente, a área profissional na qual pretendem atuar, sem mesmo conhecer minimamente a área escolhida e as demais áreas, já que a BNCC, ao criar uma tal formação básica, esvaziou o currículo. Como escolher o caminho a seguir sem saber os caminhos possíveis e como eles são? Se antes os(as) estudantes tinham contatos no ensino médio com todas as áreas para escolher uma delas para seguir no ensino superior, agora tal escolha passa a ser ainda durante o ensino médio. Se é comum após o ensino médio não se ter certeza a área a seguir, imagine com 12 anos de idade.

Não podemos ignorar que a grande maioria das escolas públicas só consegue oferecer 2 itinerários formativos, o que, na prática, transforma o que chama de liberdade de escolha em imposição. E se amanhã o(a) estudante do ensino médio, que cursou disciplinas de Ciências da Natureza, desejar seguir carreira no Direito? Terá que refazer o ensino médio para ter acesso às disciplinas básicas e conseguir fazer um novo ENEM ou outro vestibular? Os itinerários, que prometem aprofundamento na área, na verdade são em sua maioria constituídos por componentes curriculares sem tradição acadêmica e com conteúdos rasos e pouco científicos.

  1. Componentes curriculares questionáveis

A Reforma do Ensino Médio abre espaço para a oferta de itinerários formativos questionáveis. Abre caminho para componentes curriculares mirabolantes que não deveriam ser chamados de disciplinas, mas de gambiarras. Componentes como “O Que Rola Por Aí” e “Brigadeiro Caseiro”, ao ganhar espaço no currículo, jogam para escanteio disciplinas importantes para uma formação sólida e para o acesso ao conhecimento científico produzido e acumulado nos últimos séculos.

Certamente, escolas privadas que atendem as classes privilegiadas terão condições de oferecer componentes curriculares sólidos, além de mais de dois itinerários formativos. Na escola pública, apenas o básico. O problema é que a BNCC coloca como básico o que na verdade está longe de ser o mínimo para uma formação qualificada e integral. Nesse sentido, a reforma escancara sua consequência: o aprofundamento das desigualdades educacionais, consequentemente, culturais e econômicas.

A urgência da revogação

Poderíamos continuar apresentando outros motivos, mas esses já são suficientes para que a Reforma do Ensino Médio seja revogada com urgência. A urgência se justifica pelo impacto que é causado a cada ano. Três anos com essa reforma será suficiente para prejudicar toda uma geração que passa pelo ensino médio. Isso compromete toda a sociedade, gerando impactos negativos de diversas naturezas.

Por outro lado, precisamos ter calma para repensar o ensino médio brasileiro, e o primeiro passo é dar um passo atrás, revogando a Lei nº 13.415/2017 e abrindo um diálogo democrático com estudantes, docentes, gestores(as) escolares, entidade científicas e pesquisadores(as) da Educação.

Em meio a tudo isso, esperamos que o governo atual entenda que lobistas e fundações educacionais privadas (e privatistas) já se mostraram colaborativas ao demonstrar a direção para o abismo. Ao apontar o caminho da precarização, evidenciou sem querer a direção certa. As muitas manifestações recentes já demonstram por onde é necessário seguir e o ajuste da reforma não é essa direção. É necessário revogar.

Notas:

[1] Disponível em: https://www.repu.com.br/_files/ugd/9cce30_9f56bb3747ba4e279b23871373193725.pdf

[2] Um seminário intitulado Ensino Médio: Ciência, Cultura e Trabalho ocorreu em Brasília para debater uma futura reforma do ensino médio no Brasil.

Baixe AQUI a versão deste texto em PDF

 

https://cafecomsociologia.com/10-motivos-para-revogar-a-reforma-do-ensino-medio/ 

 

Dica de livro para leitura e aprofundamento no tema:

Trajetória da política de reforma do ensino médio no Brasil (2013-2017)




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