MPC examina contrato de formação digital
Secretaria de Educação do RS contratou curso para professores coordenado por companheiro de diretora da pasta
Responsável pelo Departamento Pedagógico da Seduc foi ordenadora de despesas e gestora suplente do contrato que ofereceu formação digital a educadores e que teve seu parceiro como consultor. MPC examina o caso
CARLOS ROLLSING
No período de maior restrição à circulação na pandemia, em meados de 2020, as escolas estavam fechadas e a Secretaria Estadual de Educação (Seduc) decidiu realizar uma capacitação com professores da rede para o uso de ferramentas tecnológicas em aulas remotas. Batizada de Letramento Digital, a iniciativa esteve sob coordenação do Departamento Pedagógico da Seduc, cuja diretora é a servidora Letícia Grigoletto. A instituição parceira contratada para prestar o curso, ao custo inicial de R$ 2,7 milhões, tinha como consultor educacional e coordenador das aulas o professor Márcio Machado. Ele e a diretora da Seduc Letícia têm relação estável desde fevereiro de 2019 (veja contrapontos de todas as partes abaixo). Sem detalhar a apuração neste momento, o Ministério Público de Contas (MPC) confirmou que examina os fatos em expediente recentemente instaurado.
A Sociedade Educacional Monteiro Lobato foi contratada como organização social, após a assinatura de um termo de fomento em 27 de julho de 2020. A lei federal (9.784/99) que regula o processo administrativo na gestão pública diz que está impedido de atuar em trâmites o servidor ou autoridade que “tenha interesse direto ou indireto na matéria”. A mesma legislação determina que pode ser “arguida a suspeição de autoridade ou servidor que tenha amizade íntima com algum dos interessados ou com os respectivos cônjuges, companheiros, parentes e afins até o terceiro grau”. Também podem ter sido feridos os princípios da moralidade e da impessoalidade na administração pública, previstos na Constituição.
O termo de fomento definiu que a Seduc seria a responsável por fiscalizar a execução do plano de trabalho do curso e a prestação de contas, de forma que a diretora obteve a atribuição de acompanhar e avaliar o desempenho das aulas coordenadas pelo cônjuge.
No dia 31 de março de 2022, Letícia foi designada, via portaria publicada no Diário Oficial do Estado (DOE), gestora suplente da parceria com a Monteiro Lobato. Antes disso, em 5 de novembro de 2020, uma portaria da Seduc delegou competência para Letícia ser ordenadora de despesa – autoridade que determina pagamentos. A Seduc confirmou que ela ordenou despesa no termo de fomento com a Monteiro Lobato. Machado e Letícia chegaram a ministrar juntos parte da aula 20 do curso de Letramento Digital, sobre o uso de ferramentas online para o ensino de línguas estrangeiras.
O termo de fomento foi assinado pelo então secretário da Educação, Faisal Karam, e por representante da direção da Sociedade Educacional Monteiro Lobato. Inicialmente, outra instituição havia sido escolhida para oferecer o Letramento Digital: a Fulbra, que, à época, tinha Márcio Machado como diretor de Inovação. Antes de firmar o acordo, a entidade desistiu sob justificativa de problemas financeiros. O projeto da Fulbra, então, foi assumido e executado pela Monteiro Lobato, que tinha o mesmo Machado como consultor educacional. A Procuradoria-Geral do Estado (PGE), em parecer, opinou que a contratação com dispensa de chamamento público para o setor da educação encontra guarida na Lei das Parcerias, no artigo 30.
O fato de Letícia ser coordenadora do programa, como titular do Departamento Pedagógico, foi publicizado pela própria Seduc em canais oficiais de divulgação, inclusive no dia da assinatura do termo, em 27 de julho de 2020. A Seduc ainda informou que Letícia assumiu a diretoria do Departamento Pedagógico no final de maio de 2020, dois meses antes da assinatura do termo de fomento com a Monteiro Lobato.
Nas redes sociais, Letícia informa ter relacionamento sério com Machado desde 8 de fevereiro de 2019. Em publicações anteriores e posteriores à parceria, o casal compartilha fotos e vídeos de passeios, viagens, duetos musicais e momentos em família. A primeira edição do Letramento Digital estendeu-se de 27 de julho a 5 de outubro de 2020. Foram 30 aulas e outros 27 vídeos veiculados no YouTube destinados a sanar questionamentos, chamados “tira dúvidas”. O objeto principal das capacitações era o uso de ferramentas do Google For Education. Depois de aprender a manipular as tecnologias, os docentes poderiam aplicar o conhecimento nas aulas remotas com alunos da rede estadual. Uma segunda edição do curso foi realizada, entre setembro e dezembro de 2021, com aditivo de R$ 539,5 mil.
Audiência x certificados
A Sociedade Educacional Monteiro Lobato foi contratada para oferecer o Letramento Digital para 60 mil professores da rede estadual, ao custo individual de R$ 45 por docente, valor apontado como vantajoso para a administração pública pela Secretaria Estadual da Educação (Seduc).
Esse detalhamento consta em parecer da Procuradoria-Geral do Estado (PGE) sobre a minuta do projeto e o plano de trabalho. O valor proposto por professor soma R$ 2,7 milhões.
Em resposta à reportagem via Lei de Acesso à Informação (LAI), a Seduc disse que foram emitidos, na 1ª edição do programa, 81.362 certificados “aos professores que assistiram aos vídeos na íntegra”. As aulas eram ministradas no canal da Seduc no YouTube e, conforme dado da própria pasta via LAI (atualizada até 18 de abril de 2022), a maioria dos encontros teve audiência inferior a número de certificados emitidos e aos 60 mil professores que eram o público-alvo.
Na primeira edição, das 30 aulas disponibilizadas sob a coordenação e condução de Márcio Machado, quatro tiveram mais de 60 mil visualizações. Nos outros 26 encontros, a quantidade de visualizações sempre foi inferior a 60 mil. Nas últimas 14 aulas, da metade do curso até o final, foram registradas menos de 20 mil visualizações nos vídeos até abril de 2022.
Na abertura da segunda edição do Letramento Digital, em 30 de setembro de 2021, a atual secretária da Educação, Raquel Teixeira, participou da primeira aula virtual e afirmou: “A capacitação (em referência à primeira edição) foi acompanhada por mais de 20 mil professores”. Os pagamentos feitos à Sociedade Educacional Monteiro Lobato cobriram a qualificação de 60 mil docentes.
Números
Letramento Digital Primeira edição*
30 aulas, com 933.906 mil visualizações
27 tira dúvidas, com 126.895 mil visualizações
Caso 60 mil professores que estavam no público-alvo do curso tivessem assistido vídeos das 30 aulas, o número de visualizações deveria ser de ao menos 1,8 milhão
Segunda edição*
20 aulas, com 74.686 visualizações
8 tira dúvidas, com 7.634 visualizações
*Audiência informada pela Seduc via LAI em 18 de abril de 2022
Os pagamentos
No total, a Sociedade Educacional Monteiro Lobato, que tinha Márcio Machado como consultor educacional e responsável pelo curso, receberá R$ 3,2 milhões pelas duas edições do Letramento Digital. Em 18 de abril de 2022, via LAI, a Seduc informou que já havia pago R$ 2.807.988,75.
CONTRAPONTOS
O que diz a Seduc
"A Sociedade Educacional Monteiro Lobato é uma entidade da sociedade civil credenciada a partir do Edital de Credenciamento de Organizações da Sociedade Civil 002/2020, publicado em janeiro de 2020, para a realização de parcerias e eventual Celebração de Termo de Colaboração ou Termo de Fomento, mediante Dispensa de Chamamento Público, de acordo com a Lei Federal nº 13.019/2014. Tal edital, bem como portarias, decretos, leis relacionadas e a lista das Organizações da Sociedade Civil credenciadas são de acesso público na página da Secretaria de Estado de Educação. A Seduc esclarece que o contrato para a realização do serviço de Letramento Digital foi celebrado entre Seduc e Sociedade Educacional Monteiro Lobato, sendo a última responsável pela seleção e contratação dos seus colaboradores.
Para a execução do serviço, foram apresentadas referências e titulações dos profissionais envolvidos no projeto, de forma que restou demonstrado no processo a notória especialização do profissional na área da tecnologia e inovação para a educação. O processo passou por rigorosa tramitação, sendo aprovado sob aspecto jurídico e também pelo órgão de controle interno.
Diante de cenário de pandemia, com o fechamento das escolas e a realização repentina das aulas no modelo remoto, a Seduc trabalhou para a capacitação de seu quadro de professores em relação às tecnologias educacionais utilizadas no novo formato. Como líder do sistema de educação do Rio Grande do Sul, a Secretaria Estadual da Educação tem como obrigação oferecer a estrutura necessária para que cada um dos profissionais tenha acesso ao conteúdo oferecido para as formações e preparação diante da pandemia.
A estrutura disponibilizada contemplou a realização de 30 lives com capacitação, além de 27 lives no sistema “tira-dúvidas”, com interação ao vivo com os participantes para esclarecimentos sobre os conteúdos ministrados. Os conteúdos, inclusive, permanecem à disposição de toda a comunidade escolar do Rio Grande do Sul de forma gratuita, podendo ser acessados permanentemente, tendo alcançado mais de 1,8 milhão de visualizações.
Ao todo, 84.394 certificados foram emitidos (esse número diverge da informação prestada pelo próprio governo estadual via LAI – ver quadro acima). A certificação ocorreu após a participação dos professores nas transmissões e realização posterior de atividade de avaliação na plataforma Google Classroom. O serviço também incluía o suporte técnico-pedagógico realizado por tutores nos turnos da manhã, tarde e noite de modo a garantir aos profissionais da educação todo o apoio na compreensão das temáticas, ferramentas e tecnologias apresentadas durante os encontros e executadas ao longo das aulas remotas.
Importante reforçar que todos os serviços contratados foram efetivamente disponibilizados pela Sociedade Educacional Monteiro Lobato, o que foi demonstrado mensalmente pelo parceiro em seus relatórios, os quais foram anexados aos processos de pagamento de cada parcela.
A Seduc esclarece que a designação da atual diretora do Departamento Pedagógico como gestora da parceria com a Sociedade Educacional Monteiro Lobato se dá após a reorganização interna de ações e demandas por competência de cada departamento da casa diante da pertinência temática da pauta, que trata de ações pedagógicas no âmbito da rede estadual.
Toda e qualquer ordenação de pagamento realizada por integrantes da Seduc passa pelos trâmites de controle interno e análise dos departamentos responsáveis pela fiscalização do contrato de parcerias, realizados em todas as esferas do governo de modo a garantir a lisura das mesmas".
O que diz Letícia Grigoletto
“Não houve nenhuma norma infringida visto que a contratante, Secretaria de Educação do Estado, contratou a Organização da Sociedade Civil Monteiro Lobato, devidamente credenciada atendendo a todos os trâmites legais, assim como outras OSCs – o que consta publicamente no site da SEDUC – para uma prestação de serviço, e esta tem autonomia para a contratação dos profissionais que entender qualificados, conforme as suas demandas. Ademais, à época da referida contratação eu não compunha o quadro de diretores da casa e tampouco participei das tratativas relacionadas à mesma”.
O que diz Márcio Machado
“Em relação à contratação do Monteiro Lobato, até onde sei foi realizada com licitude e de acordo com edital de credenciamento pela lei de parcerias com o terceiro setor. O Monteiro Lobato foi quem possibilitou a execução de um projeto robusto que atendeu a uma demanda urgente de formação de dezenas de professores. O Monteiro Lobato colocou de pé uma grande estrutura para dar conta do desafio de, em tão pouco tempo, auxiliar na estruturação de estratégias e organização do ensino remoto e formar os professores da rede. E tudo isso com avaliações e monitoramento constantes, constatando-se excelentes resultados conforme avaliação dos professores. Eu não faço nem nunca fiz parte da diretoria da Monteiro Lobato, sendo apenas um professor e consultor educacional contratado, assim como também atuei em diversas outras entidades e diversas prefeituras. A diretora Letícia, por sua vez, não era responsável nem participou da contratação do Monteiro Lobato - a qual seguiu os ritos previstos em lei e teve parecer dos órgãos competentes antes da contratação. Não houve nem poderia haver nenhum privilégio tanto pelo fato do projeto ter sido elaborado, definido plano de trabalho, respectivo orçamento e análise e emissão de pareceres dos órgãos competentes, obviamente alguns meses antes da efetiva assinatura, pois um projeto desse porte não se elabora do dia para noite, e também pelo fato de eu não participar da diretoria do Monteiro Lobato”.
O que diz a Sociedade Educacional Monteiro Lobato
“Monteiro Lobato, instituição sem fins lucrativos, está devidamente credenciada como OSC junto a Seduc, podendo desta forma contratar através de Termo de Fomento. Os sócios do Monteiro Lobato são Airton Eizerik e Marcos Eizerik. Os administradores da instituição são Bruno Eizerik e Cintia Mara Eizerik. De acordo com o artigo inciso III, do artigo 39, da Lei 13.204 as pessoas acima listadas não podem contratar através do termo de fomento com a Seduc se tiverem cônjuge trabalhando na secretaria. O Termo de Fomento, antes de sua assinatura, passou pela pela análise da PGE e da CAGE, obtendo aprovação dos referidos órgãos. Efetivamente o Dr. Marcio Machado, que mantém união estável com a servidora Letícia, participou do projeto, mas não possui qualquer participação societária na instituição que firmou contrato com a Seduc, sendo somente um prestador de serviço. O relacionamento do Monteiro Lobato na Seduc sempre foi com o DEPLAM, que geriu o contrato, e jamais com a Coordenação Pedagógica. O Dr. Marcio Machado é um profissional altamente qualificado. Ele foi contratado pelo Monteiro Lobato pelo seu currículo de mais de 30 anos de experiência no ensino e em projetos de inovação na educação. O serviço contratado pela Seduc ao Monteiro Lobato foi prestado e muito bem avaliado pelos professores da rede estadual. O Monteiro Lobato firmou contrato com diversos municípios para ofertar este mesmo serviço, com a mesma equipe”.