por Roger Flores Ceccon

Sou um velho que está lutando contra a morte, absolutamente convencido e consciente, disse Pepe Mujica em discurso histórico no comício da Frente Ampla na Praça 1º de Maio, em Montevidéu, em outubro de 2024. Mas estou feliz porque quando meus braços acabarem, haverá milhares de braços substituindo a luta. Até sempre, eu dou meu coração, acrescentou o ex-presidente.

Num mundo marcado pelo fascismo e pelas garras neoliberais, pelo fanatismo religioso e pela ganância, é uma perda irreparável a partida de Pepe, que está nos deixando vitimado por um câncer metastático. Estamos em despedida de uma das principais vozes do progressismo latino-americano, cujas ideias são um farol na busca pela justiça social, pela paz e proteção de povos historicamente explorados.

Pepe, ex-presidente do Uruguai, deputado, senador, ministro da “Pecuária, Agricultura e Pesca” e ex-guerrilheiro que lutou contra a sanguinária ditadura militar uruguaia é, ainda, um exímio filósofo do cotidiano, da vida, do mundo. Seus saberes contribuem para alimentarmos utopias para outras formas de vida em sociedade, mais solidárias e democráticas, como podemos ver em Os Sonhos de Pepe, filme de Pablo Trobo.

Sensível, o documentário é uma aula de humanidade e traça um panorama íntimo e filosófico sobre José Mujica, uma das figuras políticas mais respeitadas e emblemáticas do século XXI. O filme não apenas revisita sua trajetória como ex-presidente do Uruguai, mas também mergulha em suas ideias e preocupações sobre o futuro, as contradições do capitalismo e a crise ambiental.

A película acompanha Pepe em viagens pelo mundo e seus deveres políticos, ressaltando sua visão progressista pautada pela sustentabilidade e justiça. Em meio a crises éticas, políticas, econômicas e ambientais, a posição de Mujica é divergente do hegemônico pensamento capitalista que sustenta o modelo predatório consumista, que delega contingentes populacionais à guerra, à fome, à pobreza, à violência e ao desemprego. Povos marcados pra sofrer.

O documentário mostra as preocupações de Mujica, que assevera advertências sobre o que está por vir num futuro não muito distante. Os Sonhos de Pepe apresenta, ainda, sua vida, trabalho e convicções, enquanto acompanha sua rotina diplomática por um mundo mais igualitário e consciente. Conhecido por seu estilo de vida austero, Mujica compartilha discursos e diálogos com líderes, ativistas e jovens. No filme, discute temas universais, como a desigualdade social, a alienação provocada pelo consumismo e a necessidade de uma economia mais humana e sustentável. O documentário destaca como sua vivência como ex-guerrilheiro Tupamaro, prisioneiro político e líder de um governo progressista moldou sua visão de mundo e seu profundo vínculo com a natureza e com a humanidade.

Em contato com plateias diversas, desde políticos e burocratas da ONU, em Nova York, a jovens ávidos por ouvi-lo, na Inglaterra e no Japão, o filme expõe a impressionante capacidade oratória de Pepe, hoje com 89 anos. Uma pessoa simples que não nega seu passado de ex-guerrilheiro, vivência que lhe ensinou, como ele mesmo diz, a carregar a mochila leve. O ex-Tupamaro, ao lado de outros companheiros, amargou 12 anos de prisão, parte deles em uma solitária, submetido a torturas, fome, privado de livros e do contato com a família. Um calvário retratado em outro filme, chamado Uma noite de 12 anos, de Álvaro Brechner. Nada disso o tornou um homem amargo. Pelo contrário, ele incorporou essas experiências e se transformou numa pessoa afável e generosa, disposta a compartilhar seus pensamentos e vivências em prol de um mundo menos violento.

Uma das mensagens centrais do filme é a crítica ao modelo de desenvolvimento predatório que explora recursos naturais. Mujica alerta para o colapso ambiental iminente e convida o público a repensar os valores que regem nossas escolhas econômicas e sociais. Sua frase “Ou somos felizes com pouco, sem carregar muitas coisas, porque a felicidade está dentro de nós, ou não conseguiremos nada” ganha força ao ser contextualizada no mundo atual, permeado por valores baseados no consumo.

No filme, Pablo Trobo combina entrevistas com cenas de paisagens e imagens de arquivos que contextualizam a importância de Mujica no cenário político global. A trilha sonora acompanha os momentos introspectivos e contemplativos, criando uma atmosfera que transporta o espectador para a subjetividade do protagonista, enquanto reflete sobre o significado da vida e os desafios que enfrentamos como sociedade.

Os Sonhos de Pepe é um chamado à ação e à reflexão, em que líderes como Mujica são exceção em um mundo onde o poder e a ambição se sobrepõe à humanidade. Sua visão simples, mas poderosa, de que é possível viver com menos, ressoa profundamente em um tempo à beira de mudanças drásticas, marcado pelo individualismo e pela catástrofe. Trata-se de um filme para compreender o colapso contemporâneo e encontrar novas utopias para a construção de um novo mundo, que pode ser percorrido com um velho fusca azul ano 1987. Mujica vive, sempre.

ROGER FLORES CECCON é professor do Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva, da Residência Multiprofissional em Saúde da Família e do curso de Medicina do Departamento de Ciências da Saúde da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e Pós-Doutor em Saúde Coletiva (UFRGS).