Não é hora de retornar
“Não é hora de retornar às atividades. Em três ou quatro meses podemos ter a fase mais crítica vencida”
- Gabriel Brito, da Redação 02/05/2020
O corona vírus segue seu alastramento pela população e o Brasil já se firma como um dos países com maior número de mortes. Sem dúvidas, o descalabro político tocado pelo presidente da República e sua conduta anticientífica potencializaram o problema. Não bastasse a demissão de Luiz Henrique Mandetta sem nenhuma razão técnica, o governo mergulhou de vez em crise a partir da saída de Sergio Moro do Ministério da Justiça. No meio disso, uma população com dificuldades de entender as recomendações médicas. É sobre todo este perigoso quadro que o Correio entrevistou Aldira Dominguez, especialista em gestão da saúde.
“O que eu percebo é que o presidente se apossou de um discurso um pouco mais economicista, o que não é totalmente negativo, pois as pessoas realmente precisam trabalhar, mas o presidente passou a desdenhar das recomendações dos órgãos internacionais, passou a fazer chacota de uma doença que já matou mais de seis mil pessoas no Brasil e quase 300 mil no mundo. Eu acho que falta seriedade, responsabilidade e equilíbrio do presidente neste contexto”.
Além de comentar as dificuldades dos profissionais de saúde, nem sempre com toda a estrutura material necessária à própria preservação, Aldira, que é professora do curso de Saúde Coletiva da Faculdade de Ceilândia da Universidade de Brasília, lamenta que a conduta da população, menos rigorosa do que semanas atrás. Apesar dos números, a entrevistada diz que poderiam ser ainda maiores não fossem as medidas executadas e que devemos nos preparar para mais alguns meses de quarentena.
“As pessoas precisam entender que o isolamento social é uma estratégia para conter a explosão de casos e o colapso do sistema de saúde. É um tempo necessário para que a gestão pública prepare a rede de assistência, aumente o número de leitos, adquira mais respiradores, monte hospitais de campanha, compre mais equipamentos de proteção individual, recrute mais profissionais para a linha de frente etc”.
Sem deixar de reconhecer a necessidade econômica, por sinal imposta ao novo ministro da saúde em sua atuação, Aldira Dominguez destaca que a pandemia exige a revisão de diversos hábitos de produção e consumo, que tem relação direta com a relação do ser humano com a natureza e o aparecimento do vírus. Como dado positivo, afirma que as universidades e o sistema público de saúde voltaram a se legitimar ao público como garantidores de bem estar e capacidade de resposta a problemas como este.
“A universidade conseguiu se consolidar enquanto órgão de referência em pesquisa e inovação tecnológica. Sofrendo com cortes no orçamento e em pesquisa há mais de cinco anos, fomos capazes, mesmo com recursos escassos, de responder de forma responsável e consistente às demandas da sociedade”.
A entrevista completa com Aldira Dominguez pode ser lida a seguir.
Correio da Cidadania: Em primeiro lugar, como analisa a saída de Luiz Henrique Mandetta do Ministério da Saúde em meio ao ápice do coronavírus no Brasil?
Aldira Dominguez: Eu vejo que no curto prazo a resposta do sistema de saúde brasileiro no combate ao coronavírus tem sido razoável e satisfatória, e muito disso se deve à gestão do ministro Mandetta e ao compromisso assumido por governadores e prefeitos. Se compararmos a situação do Brasil com a de outros países que retardaram a adoção do isolamento social preconizado pelos organismos internacionais, como a OPS/OMS, a situação por aqui, apesar das perdas e baixas, ainda é mais controlada com relação ao número de casos e mortes.
Lastimavelmente, interesses econômicos e talvez políticos estão se sobressaindo sobre os interesses na saúde e vida das pessoas. Eu lamentei muito a exoneração do ministro, mas acho que o legado deixado por ele é respeitável e tem impacto direto sobre o controle que estamos tendo na propagação da pandemia dentro do país.
Correio da Cidadania: O que comenta de sua gestão à frente do Ministério, inclusive antes da pandemia?
Aldira Dominguez: Eu como profissional da saúde sempre o achei um ministro centrado e focado. Mesmo com várias desordens no governo ele continuava fazendo seu trabalho. Acho que atuou com responsabilidade e profissionalismo. Ele tem o meu respeito.
Correio da Cidadania: O presidente Jair Bolsonaro sabotou sua atuação diante do corona? Como analisa o governo federal neste contexto?
Aldira Dominguez: O que eu percebo é que o presidente se apossou de um discurso um pouco mais economicista, o que não é totalmente negativo, pois as pessoas realmente precisam trabalhar, mas o presidente passou a desdenhar das recomendações dos órgãos internacionais, passou a fazer chacota de uma doença que já matou mais de seis mil pessoas no Brasil e quase 300 mil no mundo. Eu acho que falta seriedade, responsabilidade e equilíbrio do presidente neste contexto. A situação é muito preocupante.
Correio da Cidadania: Em relação ao novo ministro, como avalia seu início de gestão e primeiras declarações?
Aldira Dominguez: O Ministro Teich a meu ver tem um grande desafio neste momento, que é promover o relaxamento do distanciamento social para atender a visão economicista do presidente da República sem gerar um colapso no sistema de saúde. Todos nós sabemos que a melhor medida que se tem hoje para evitar o alastramento do vírus é o isolamento social. Nos seus discursos Teich deixa a entender que o isolamento social vai começar a ser gradualmente suspenso aqui no Brasil. Isso é preocupante, pois ainda o pico da pandemia não foi alcançado. A suspensão do isolamento já vem acontecendo em outros países, só que nestes países a pandemia começou antes e, aparentemente, o pico já passou.
Outro ponto que gostaria de considerar é que, como professora de gestão do trabalho em saúde, defendo que os cargos de gestão pública em saúde deveriam ser ocupados não só por médico, mas também por profissionais com formação em saúde coletiva e em gestão em saúde, como os sanitaristas. O ministro Teich, ainda que tenha estudos em economia da saúde, aparentemente ainda não foi gestor de fato, ou seja, sanitarista com responsabilidade em gestão pública dentro do sistema de saúde. Vamos acompanhar para vermos como será seu desempenho, mas particularmente torço para que consiga fazer um trabalho de forma condizente com as reais necessidades sociais em saúde no contexto da crise sanitária provocada pelo coronavírus.
Preocupa também outra situação: normalmente os ministros têm a possibilidade de nomear seus assessores diretos e no caso de Teich houve uma imposição por parte do governo federal. Assim, temos um militar, o General Pazuello, como auxiliar do ministro e o número dois da saúde no Brasil. Preocupa porque vejo como uma tendência a militarização dentro do governo. Isso já vem ocorrendo em outras áreas, o que dá a impressão de que os militares estão interessados em se apropriar dessa área também.
Pode até ser que dentro das forças armadas tenha um departamento de saúde, mas colocar um general como o segundo nome no escalão do Ministério da Saúde pede no mínimo uma boa reflexão e atenção.
Correio da Cidadania: Quanto aos governos estaduais, o que comenta de suas medidas de modo geral?
Aldira Dominguez: Os governadores e os prefeitos das cidades mais atingidas têm a opinião de manter o isolamento social, porque o impacto dessa pandemia tem sido terrível. Inclusive muitas autoridades estaduais e municipais passaram a ter um enfoque mais pragmático e técnico e deixaram de lado a questão ideológica, coisa que o presidente não quer deixar. Isso é algo é interessante, o próprio Supremo Tribunal Federal autorizou que as decisões e medidas sanitárias mais urgentes podem ser tomadas pelos prefeitos e governadores dos municípios e Estados em benefício do bem comum e da saúde da população, embora isso possa atingir algumas atividades de logística e de infraestrutura que ficam bloqueadas.
Eu vejo também que alguns governadores e prefeitos aproveitaram a pandemia para ponderar seus discursos e falar não somente para seus grupos de eleitores, em um contexto polarização política, mas para o conjunto da comunidade. E vejo que isso tem sido importante para eles, pois ganharam respaldo e popularidade, como aconteceu com os governadores de São Paulo e Rio de Janeiro; eles assumiram uma liderança política na condução da crise sanitária e hoje conseguem dialogar com os mais variados setores políticos e sociais. É positivo para eles e a sociedade.
Correio da Cidadania: O que pensa da quarentena e do comportamento da população brasileira frente a esta recomendação?
Aldira Dominguez: Com certeza, tanto a quarentena para as pessoas infectadas quanto o isolamento social para controle do avanço da pandemia trazem muitas implicações políticas, sociais, econômicas, familiares, dentre outras. Aqui destaco os perigos a que ficam expostas pessoas dependentes e vulneráveis. Cuidados devem ser redobrados por partes das autoridades para que abusos contra crianças, idosos e mulheres sejam evitados durante o período de confinamento. Destaco ainda a importância de se ter um olhar especial sobre aumento no número de casos de crise de ansiedade, síndrome do pânico, depressão e outras doenças mentais advindas do medo introjetado nas pessoas com relação a doenças.
Acho que a adesão ao isolamento social já foi mais forte, hoje percebo que aos poucos as pessoas estão circulando mais nas ruas e as pesquisas têm mostrado isso também. Como o vírus é invisível e o número de casos e mortes tem sido, na minha opinião, amenizado pelas medidas já tomadas, as pessoas parecem desacreditar que o risco de contaminação é real. Em todo caso, compartilho da ideia de que ainda não é a hora de se retornar às atividades – e se necessário for, medidas mais restritivas devem ser tomadas.
Correio da Cidadania: O que prevê sobre o número de casos nos próximos momentos? Podemos já considerar que a subnotificação é imensa?
Aldira Dominguez: Com certeza. Estima-se que só uma décima quinta parte da população está sendo testada. Primeiro porque os testes são muito caros; segundo porque não tem condição de em uma população com duzentos milhões de pessoas todas serem testadas. Em nenhum país tem sido possível o teste em massa.
Em algumas cidades sistemas de drive thru vêm sendo usados para realizar exames em pessoas sintomáticas. Reconheço a importância da medida, mas percebo algumas limitações, como o fato de pessoas sintomáticas e que não tenham carro realizarem o exame.
Correio da Cidadania: O que você imagina que ocorrerá com os sistemas públicos e privados de saúde?
Aldira Dominguez: Acho que podemos ter uma reação positiva da sociedade com relação ao sistema de saúde. Antes da pandemia a assistência em saúde já era considerada como a principal preocupação da população brasileira, segundo pesquisas de opinião. Outro tema importante é o financiamento da saúde, porque a economia brasileira e mundial vai ficar bastante fragilizada e sob pressão, o que cria tensões. Eu vejo também que a empregabilidade dos profissionais de saúde, enfermeiros e médicos vai crescer.
Com relação ao setor privado de saúde, penso que pode vir a perder muitos dos usuários que têm plano privado de saúde. Em alguns casos isso pode levar a uma reorganização do setor privado. Pelo que tenho observado nenhum usuário do setor privado tem tido recusado seus direitos de receber atendimento em um primeiro momento. Claro que os hospitais de referência para tratamento da Covid-19 são os públicos. Em todo caso reconheço que o fato de o novo ministro ter um histórico de vinculação a hospitais privados pode ser algo positivo no sentido de mobilizar recursos para o sistema de saúde em geral.
Correio da Cidadania: Como está a vida dos profissionais da saúde? Estão recebendo as condições adequadas?
Aldira Dominguez: A situação dos profissionais de saúde que estão na linha de frente no tratamento dos infectados é bastante delicada. A falta de Equipamentos de Proteção Individual (EPIs) é bastante comum nos serviços. Já ouvi vários relatos preocupantes de colegas da área da saúde que estão dentro dos hospitais neste momento de pandemia com relação, por exemplo, a reaproveitamento de máscaras, falta de luvas, profissionais se contaminando porque não sabem manusear adequadamente os EPIS; profissionais que estão comprando mantas de proteção com dinheiro do próprio bolso porque a secretaria de saúde não disponibiliza, dentre outros. Porém, para mim, o mais grave e que talvez não esteja sendo considerado neste momento é o adoecimento mental destes profissionais.
Há dilemas éticos bem marcantes neste processo, como decidir quem deve viver ou morrer devido à falta de leitos com respiradores. Ouvi de uma colega que o clima emocional dentro dos hospitais é de muito medo e ansiedade, devido ao despreparo das equipes para receber os casos suspeitos da doença, sem falar na rotina de cuidados que devem ter ao irem para casa, para que não sejam multiplicadores da doença entre os familiares.
Portanto, vejo que se faz necessário um olhar voltado à saúde mental destes profissionais que têm se colocados na linha de frente, para evitar mais adoecimentos e baixas no quadro, já que os servidores com mais de 60 anos e com comorbidade já estão afastados da linha de frente e estão atuando em espaço seguro do vírus.
Correio da Cidadania: É possível prever o fim da pandemia?
Aldira Dominguez: Eu penso que sim. Em três ou quatro meses podemos ter a fase mais crítica já vencida. No entanto, é importante ter claro que o vírus vai continuar existindo e as contaminações também. O ideal, e o que se espera ansiosamente, é a criação de uma vacina para imunização em massa.
As pessoas precisam entender que o isolamento social é uma estratégia para conter a explosão de casos e o colapso do sistema de saúde. É um tempo necessário para que a gestão pública prepare a rede de assistência, aumente o número de leitos, adquira mais respiradores, monte hospitais de campanha, compre mais equipamentos de proteção individual, recrute mais profissionais para a linha de frente etc.
O fim do isolamento social não significa o fim do vírus, mas um sinal de que o sistema de saúde já tem condição de atender e dar respostas favoráveis a todos os contaminados. Sem o dilema ético de decidir quem morre ou quem vive.
Correio da Cidadania: Como especialista em gestão e professora, você destacaria um papel das Universidades no combate à pandemia?
Aldira Dominguez: Eu, como pesquisadora e professora universitária, vejo que em meio à crise sanitária em que estamos inseridos devido a COVID-19 a universidade conseguiu se legitimar e se consolidar enquanto órgão de referência em pesquisa e inovação tecnológica. Sofrendo com cortes no orçamento e em pesquisa há mais de cinco anos, fomos capazes, mesmo com recursos escassos, de responder de forma responsável e consistente às demandas da sociedade. A universidade onde trabalho publicou um edital para o desenvolvimento de pesquisa sobre a COVID-19 e em uma semana mais de 100 propostas foram apresentadas por pesquisadores das mais diversas áreas do conhecimento dentro da universidade. Uma capacidade de resposta impressionante.
Temos pesquisadores realizando estudos para a produção de máscaras com nanopartículas, pesquisadores produzindo respiradores, aparelhos para desinfecção de equipamentos, tecnologias leves, como a confecção de materiais educativos e informativos dentre outros. Essa pandemia tem evidenciado para as universidades a necessidade em fortalecer as ações de pesquisa e extensão para enfrentar crises tão graves como a atual.
Antes da pandemia existia uma opinião crítica com relação à ciência que afetou o investimento nas universidades. Isso tinha relação com as restrições orçamentárias, mas também uma concepção irracional e anti-intelectual de algumas pessoas do governo e da sociedade. As universidades eram tidas como oposicionistas aos governos de direita radical e isso determinou que muitos programas de pesquisa fossem atingidos com cortes de bolsas de pesquisa e orçamento restrito.
Curiosamente, disciplinas das ciências naturais, especificamente de biologia evolutiva, foram também atingidas, porque o que passou a predominar dentro do governo foi uma posição quase teocrática da sociedade, excessivamente religiosa, de que não deveríamos ser em um Estado laico e republicano.
Em termos globais existem cooperações internacionais em termo de ciência e inovação tecnológica para encontrar respostas, o mais rápido possível, especialmente em termos de produção de vacina. No Brasil, a Fiocruz, além de atender o próprio Brasil, dialoga com outros países da América Latina para intercâmbio de experiências e até transferência de tecnologia, o que é muito importante. Assim, a ciência e a universidade ganham apoio e simpatia popular no processo de divulgação de conhecimento.
Correio da Cidadania: Considerando o ambiente de origem do vírus, é preciso repensar questões mais amplas, como nossos modos de produção e consumo?
Aldira Dominguez: A destruição da natureza e o uso abusivo dos recursos naturais não podem ser esquecidos. Há uma certa arrogância dos seres humanos em relação ao planeta e isso precisa de mudanças. As últimas pandemias surgiram na China e se você for observar a questão da poluição provocada pelo crescimento econômico do país é seríssima para a saúde da população. Além de problemas como hábitos alimentares e higiene que precisam ser verificados.
Aqui no Brasil eventos semelhantes estão acontecendo em relação à degradação do meio ambiente como a destruição dos biomas e quem sabe no futuro isso possa gerar doenças. A gripe espanhola que surgiu nos Estados Unidos foi parecida: o vírus surgiu em fazendas que criavam porcos; depois, o vírus sofreu mutação e passou a afetar os seres humanos; era a época da primeira guerra mundial e o vírus foi levado por soldados para a Europa, provocando uma tragédia em nível mundial.
Eu penso que a emergência climática e o que estamos fazendo com o meio ambiente atingem também as condições de saúde da população. Tomara que a gente entenda o aviso de que o planeta está chegando a seu limite e precisamos modificar e moderar nossos estilos de consumo e atitudes, a fim de avançar em uma sociedade um pouco mais justa e sustentável.
Eu defendo a tese de que deveriam ser considerados países desenvolvidos os capazes de recuperar e preservar seus recursos naturais. Hoje são considerados desenvolvidos os países cuja população tem maior potencial de consumo, só que já sabemos que esse modelo não se sustenta mais, os recursos naturais existentes no planeta são limitados e estão cada vez mais escassos. Sem falar que quanto mais somos incentivados a consumir para promover o crescimento econômico, mais destruímos o planeta, mais adoecemos e eventos como este de pandemia podem se repetir.
Gabriel Brito é jornalista e editor do Correio da Cidadania.
O corona vírus segue seu alastramento pela população e o Brasil já se firma como um dos países com maior número de mortes. Sem dúvidas, o descalabro político tocado pelo presidente da República e sua conduta anticientífica potencializaram o problema. Não bastasse a demissão de Luiz Henrique Mandetta sem nenhuma razão técnica, o governo mergulhou de vez em crise a partir da saída de Sergio Moro do Ministério da Justiça. No meio disso, uma população com dificuldades de entender as recomendações médicas. É sobre todo este perigoso quadro que o Correio entrevistou Aldira Dominguez, especialista em gestão da saúde.
“O que eu percebo é que o presidente se apossou de um discurso um pouco mais economicista, o que não é totalmente negativo, pois as pessoas realmente precisam trabalhar, mas o presidente passou a desdenhar das recomendações dos órgãos internacionais, passou a fazer chacota de uma doença que já matou mais de seis mil pessoas no Brasil e quase 300 mil no mundo. Eu acho que falta seriedade, responsabilidade e equilíbrio do presidente neste contexto”.
Além de comentar as dificuldades dos profissionais de saúde, nem sempre com toda a estrutura material necessária à própria preservação, Aldira, que é professora do curso de Saúde Coletiva da Faculdade de Ceilândia da Universidade de Brasília, lamenta que a conduta da população, menos rigorosa do que semanas atrás. Apesar dos números, a entrevistada diz que poderiam ser ainda maiores não fossem as medidas executadas e que devemos nos preparar para mais alguns meses de quarentena.
“As pessoas precisam entender que o isolamento social é uma estratégia para conter a explosão de casos e o colapso do sistema de saúde. É um tempo necessário para que a gestão pública prepare a rede de assistência, aumente o número de leitos, adquira mais respiradores, monte hospitais de campanha, compre mais equipamentos de proteção individual, recrute mais profissionais para a linha de frente etc”.
Sem deixar de reconhecer a necessidade econômica, por sinal imposta ao novo ministro da saúde em sua atuação, Aldira Dominguez destaca que a pandemia exige a revisão de diversos hábitos de produção e consumo, que tem relação direta com a relação do ser humano com a natureza e o aparecimento do vírus. Como dado positivo, afirma que as universidades e o sistema público de saúde voltaram a se legitimar ao público como garantidores de bem estar e capacidade de resposta a problemas como este.
“A universidade conseguiu se consolidar enquanto órgão de referência em pesquisa e inovação tecnológica. Sofrendo com cortes no orçamento e em pesquisa há mais de cinco anos, fomos capazes, mesmo com recursos escassos, de responder de forma responsável e consistente às demandas da sociedade”.
A entrevista completa com Aldira Dominguez pode ser lida a seguir.
Correio da Cidadania: Em primeiro lugar, como analisa a saída de Luiz Henrique Mandetta do Ministério da Saúde em meio ao ápice do coronavírus no Brasil?
Aldira Dominguez: Eu vejo que no curto prazo a resposta do sistema de saúde brasileiro no combate ao coronavírus tem sido razoável e satisfatória, e muito disso se deve à gestão do ministro Mandetta e ao compromisso assumido por governadores e prefeitos. Se compararmos a situação do Brasil com a de outros países que retardaram a adoção do isolamento social preconizado pelos organismos internacionais, como a OPS/OMS, a situação por aqui, apesar das perdas e baixas, ainda é mais controlada com relação ao número de casos e mortes.
Lastimavelmente, interesses econômicos e talvez políticos estão se sobressaindo sobre os interesses na saúde e vida das pessoas. Eu lamentei muito a exoneração do ministro, mas acho que o legado deixado por ele é respeitável e tem impacto direto sobre o controle que estamos tendo na propagação da pandemia dentro do país.
Correio da Cidadania: O que comenta de sua gestão à frente do Ministério, inclusive antes da pandemia?
Aldira Dominguez: Eu como profissional da saúde sempre o achei um ministro centrado e focado. Mesmo com várias desordens no governo ele continuava fazendo seu trabalho. Acho que atuou com responsabilidade e profissionalismo. Ele tem o meu respeito.
Correio da Cidadania: O presidente Jair Bolsonaro sabotou sua atuação diante do corona? Como analisa o governo federal neste contexto?
Aldira Dominguez: O que eu percebo é que o presidente se apossou de um discurso um pouco mais economicista, o que não é totalmente negativo, pois as pessoas realmente precisam trabalhar, mas o presidente passou a desdenhar das recomendações dos órgãos internacionais, passou a fazer chacota de uma doença que já matou mais de seis mil pessoas no Brasil e quase 300 mil no mundo. Eu acho que falta seriedade, responsabilidade e equilíbrio do presidente neste contexto. A situação é muito preocupante.
Correio da Cidadania: Em relação ao novo ministro, como avalia seu início de gestão e primeiras declarações?
Aldira Dominguez: O Ministro Teich a meu ver tem um grande desafio neste momento, que é promover o relaxamento do distanciamento social para atender a visão economicista do presidente da República sem gerar um colapso no sistema de saúde. Todos nós sabemos que a melhor medida que se tem hoje para evitar o alastramento do vírus é o isolamento social. Nos seus discursos Teich deixa a entender que o isolamento social vai começar a ser gradualmente suspenso aqui no Brasil. Isso é preocupante, pois ainda o pico da pandemia não foi alcançado. A suspensão do isolamento já vem acontecendo em outros países, só que nestes países a pandemia começou antes e, aparentemente, o pico já passou.
Outro ponto que gostaria de considerar é que, como professora de gestão do trabalho em saúde, defendo que os cargos de gestão pública em saúde deveriam ser ocupados não só por médico, mas também por profissionais com formação em saúde coletiva e em gestão em saúde, como os sanitaristas. O ministro Teich, ainda que tenha estudos em economia da saúde, aparentemente ainda não foi gestor de fato, ou seja, sanitarista com responsabilidade em gestão pública dentro do sistema de saúde. Vamos acompanhar para vermos como será seu desempenho, mas particularmente torço para que consiga fazer um trabalho de forma condizente com as reais necessidades sociais em saúde no contexto da crise sanitária provocada pelo coronavírus.
Preocupa também outra situação: normalmente os ministros têm a possibilidade de nomear seus assessores diretos e no caso de Teich houve uma imposição por parte do governo federal. Assim, temos um militar, o General Pazuello, como auxiliar do ministro e o número dois da saúde no Brasil. Preocupa porque vejo como uma tendência a militarização dentro do governo. Isso já vem ocorrendo em outras áreas, o que dá a impressão de que os militares estão interessados em se apropriar dessa área também.
Pode até ser que dentro das forças armadas tenha um departamento de saúde, mas colocar um general como o segundo nome no escalão do Ministério da Saúde pede no mínimo uma boa reflexão e atenção.
Correio da Cidadania: Quanto aos governos estaduais, o que comenta de suas medidas de modo geral?
Aldira Dominguez: Os governadores e os prefeitos das cidades mais atingidas têm a opinião de manter o isolamento social, porque o impacto dessa pandemia tem sido terrível. Inclusive muitas autoridades estaduais e municipais passaram a ter um enfoque mais pragmático e técnico e deixaram de lado a questão ideológica, coisa que o presidente não quer deixar. Isso é algo é interessante, o próprio Supremo Tribunal Federal autorizou que as decisões e medidas sanitárias mais urgentes podem ser tomadas pelos prefeitos e governadores dos municípios e Estados em benefício do bem comum e da saúde da população, embora isso possa atingir algumas atividades de logística e de infraestrutura que ficam bloqueadas.
Eu vejo também que alguns governadores e prefeitos aproveitaram a pandemia para ponderar seus discursos e falar não somente para seus grupos de eleitores, em um contexto polarização política, mas para o conjunto da comunidade. E vejo que isso tem sido importante para eles, pois ganharam respaldo e popularidade, como aconteceu com os governadores de São Paulo e Rio de Janeiro; eles assumiram uma liderança política na condução da crise sanitária e hoje conseguem dialogar com os mais variados setores políticos e sociais. É positivo para eles e a sociedade.
Correio da Cidadania: O que pensa da quarentena e do comportamento da população brasileira frente a esta recomendação?
Aldira Dominguez: Com certeza, tanto a quarentena para as pessoas infectadas quanto o isolamento social para controle do avanço da pandemia trazem muitas implicações políticas, sociais, econômicas, familiares, dentre outras. Aqui destaco os perigos a que ficam expostas pessoas dependentes e vulneráveis. Cuidados devem ser redobrados por partes das autoridades para que abusos contra crianças, idosos e mulheres sejam evitados durante o período de confinamento. Destaco ainda a importância de se ter um olhar especial sobre aumento no número de casos de crise de ansiedade, síndrome do pânico, depressão e outras doenças mentais advindas do medo introjetado nas pessoas com relação a doenças.
Acho que a adesão ao isolamento social já foi mais forte, hoje percebo que aos poucos as pessoas estão circulando mais nas ruas e as pesquisas têm mostrado isso também. Como o vírus é invisível e o número de casos e mortes tem sido, na minha opinião, amenizado pelas medidas já tomadas, as pessoas parecem desacreditar que o risco de contaminação é real. Em todo caso, compartilho da ideia de que ainda não é a hora de se retornar às atividades – e se necessário for, medidas mais restritivas devem ser tomadas.
Correio da Cidadania: O que prevê sobre o número de casos nos próximos momentos? Podemos já considerar que a subnotificação é imensa?
Aldira Dominguez: Com certeza. Estima-se que só uma décima quinta parte da população está sendo testada. Primeiro porque os testes são muito caros; segundo porque não tem condição de em uma população com duzentos milhões de pessoas todas serem testadas. Em nenhum país tem sido possível o teste em massa.
Em algumas cidades sistemas de drive thru vêm sendo usados para realizar exames em pessoas sintomáticas. Reconheço a importância da medida, mas percebo algumas limitações, como o fato de pessoas sintomáticas e que não tenham carro realizarem o exame.
Correio da Cidadania: O que você imagina que ocorrerá com os sistemas públicos e privados de saúde?
Aldira Dominguez: Acho que podemos ter uma reação positiva da sociedade com relação ao sistema de saúde. Antes da pandemia a assistência em saúde já era considerada como a principal preocupação da população brasileira, segundo pesquisas de opinião. Outro tema importante é o financiamento da saúde, porque a economia brasileira e mundial vai ficar bastante fragilizada e sob pressão, o que cria tensões. Eu vejo também que a empregabilidade dos profissionais de saúde, enfermeiros e médicos vai crescer.
Com relação ao setor privado de saúde, penso que pode vir a perder muitos dos usuários que têm plano privado de saúde. Em alguns casos isso pode levar a uma reorganização do setor privado. Pelo que tenho observado nenhum usuário do setor privado tem tido recusado seus direitos de receber atendimento em um primeiro momento. Claro que os hospitais de referência para tratamento da Covid-19 são os públicos. Em todo caso reconheço que o fato de o novo ministro ter um histórico de vinculação a hospitais privados pode ser algo positivo no sentido de mobilizar recursos para o sistema de saúde em geral.
Correio da Cidadania: Como está a vida dos profissionais da saúde? Estão recebendo as condições adequadas?
Aldira Dominguez: A situação dos profissionais de saúde que estão na linha de frente no tratamento dos infectados é bastante delicada. A falta de Equipamentos de Proteção Individual (EPIs) é bastante comum nos serviços. Já ouvi vários relatos preocupantes de colegas da área da saúde que estão dentro dos hospitais neste momento de pandemia com relação, por exemplo, a reaproveitamento de máscaras, falta de luvas, profissionais se contaminando porque não sabem manusear adequadamente os EPIS; profissionais que estão comprando mantas de proteção com dinheiro do próprio bolso porque a secretaria de saúde não disponibiliza, dentre outros. Porém, para mim, o mais grave e que talvez não esteja sendo considerado neste momento é o adoecimento mental destes profissionais.
Há dilemas éticos bem marcantes neste processo, como decidir quem deve viver ou morrer devido à falta de leitos com respiradores. Ouvi de uma colega que o clima emocional dentro dos hospitais é de muito medo e ansiedade, devido ao despreparo das equipes para receber os casos suspeitos da doença, sem falar na rotina de cuidados que devem ter ao irem para casa, para que não sejam multiplicadores da doença entre os familiares.
Portanto, vejo que se faz necessário um olhar voltado à saúde mental destes profissionais que têm se colocados na linha de frente, para evitar mais adoecimentos e baixas no quadro, já que os servidores com mais de 60 anos e com comorbidade já estão afastados da linha de frente e estão atuando em espaço seguro do vírus.
Correio da Cidadania: É possível prever o fim da pandemia?
Aldira Dominguez: Eu penso que sim. Em três ou quatro meses podemos ter a fase mais crítica já vencida. No entanto, é importante ter claro que o vírus vai continuar existindo e as contaminações também. O ideal, e o que se espera ansiosamente, é a criação de uma vacina para imunização em massa.
As pessoas precisam entender que o isolamento social é uma estratégia para conter a explosão de casos e o colapso do sistema de saúde. É um tempo necessário para que a gestão pública prepare a rede de assistência, aumente o número de leitos, adquira mais respiradores, monte hospitais de campanha, compre mais equipamentos de proteção individual, recrute mais profissionais para a linha de frente etc.
O fim do isolamento social não significa o fim do vírus, mas um sinal de que o sistema de saúde já tem condição de atender e dar respostas favoráveis a todos os contaminados. Sem o dilema ético de decidir quem morre ou quem vive.
Correio da Cidadania: Como especialista em gestão e professora, você destacaria um papel das Universidades no combate à pandemia?
Aldira Dominguez: Eu, como pesquisadora e professora universitária, vejo que em meio à crise sanitária em que estamos inseridos devido a COVID-19 a universidade conseguiu se legitimar e se consolidar enquanto órgão de referência em pesquisa e inovação tecnológica. Sofrendo com cortes no orçamento e em pesquisa há mais de cinco anos, fomos capazes, mesmo com recursos escassos, de responder de forma responsável e consistente às demandas da sociedade. A universidade onde trabalho publicou um edital para o desenvolvimento de pesquisa sobre a COVID-19 e em uma semana mais de 100 propostas foram apresentadas por pesquisadores das mais diversas áreas do conhecimento dentro da universidade. Uma capacidade de resposta impressionante.
Temos pesquisadores realizando estudos para a produção de máscaras com nanopartículas, pesquisadores produzindo respiradores, aparelhos para desinfecção de equipamentos, tecnologias leves, como a confecção de materiais educativos e informativos dentre outros. Essa pandemia tem evidenciado para as universidades a necessidade em fortalecer as ações de pesquisa e extensão para enfrentar crises tão graves como a atual.
Antes da pandemia existia uma opinião crítica com relação à ciência que afetou o investimento nas universidades. Isso tinha relação com as restrições orçamentárias, mas também uma concepção irracional e anti-intelectual de algumas pessoas do governo e da sociedade. As universidades eram tidas como oposicionistas aos governos de direita radical e isso determinou que muitos programas de pesquisa fossem atingidos com cortes de bolsas de pesquisa e orçamento restrito.
Curiosamente, disciplinas das ciências naturais, especificamente de biologia evolutiva, foram também atingidas, porque o que passou a predominar dentro do governo foi uma posição quase teocrática da sociedade, excessivamente religiosa, de que não deveríamos ser em um Estado laico e republicano.
Em termos globais existem cooperações internacionais em termo de ciência e inovação tecnológica para encontrar respostas, o mais rápido possível, especialmente em termos de produção de vacina. No Brasil, a Fiocruz, além de atender o próprio Brasil, dialoga com outros países da América Latina para intercâmbio de experiências e até transferência de tecnologia, o que é muito importante. Assim, a ciência e a universidade ganham apoio e simpatia popular no processo de divulgação de conhecimento.
Correio da Cidadania: Considerando o ambiente de origem do vírus, é preciso repensar questões mais amplas, como nossos modos de produção e consumo?
Aldira Dominguez: A destruição da natureza e o uso abusivo dos recursos naturais não podem ser esquecidos. Há uma certa arrogância dos seres humanos em relação ao planeta e isso precisa de mudanças. As últimas pandemias surgiram na China e se você for observar a questão da poluição provocada pelo crescimento econômico do país é seríssima para a saúde da população. Além de problemas como hábitos alimentares e higiene que precisam ser verificados.
Aqui no Brasil eventos semelhantes estão acontecendo em relação à degradação do meio ambiente como a destruição dos biomas e quem sabe no futuro isso possa gerar doenças. A gripe espanhola que surgiu nos Estados Unidos foi parecida: o vírus surgiu em fazendas que criavam porcos; depois, o vírus sofreu mutação e passou a afetar os seres humanos; era a época da primeira guerra mundial e o vírus foi levado por soldados para a Europa, provocando uma tragédia em nível mundial.
Eu penso que a emergência climática e o que estamos fazendo com o meio ambiente atingem também as condições de saúde da população. Tomara que a gente entenda o aviso de que o planeta está chegando a seu limite e precisamos modificar e moderar nossos estilos de consumo e atitudes, a fim de avançar em uma sociedade um pouco mais justa e sustentável.
Eu defendo a tese de que deveriam ser considerados países desenvolvidos os capazes de recuperar e preservar seus recursos naturais. Hoje são considerados desenvolvidos os países cuja população tem maior potencial de consumo, só que já sabemos que esse modelo não se sustenta mais, os recursos naturais existentes no planeta são limitados e estão cada vez mais escassos. Sem falar que quanto mais somos incentivados a consumir para promover o crescimento econômico, mais destruímos o planeta, mais adoecemos e eventos como este de pandemia podem se repetir.
Gabriel Brito é jornalista e editor do Correio da Cidadania.
O corona vírus segue seu alastramento pela população e o Brasil já se firma como um dos países com maior número de mortes. Sem dúvidas, o descalabro político tocado pelo presidente da República e sua conduta anticientífica potencializaram o problema. Não bastasse a demissão de Luiz Henrique Mandetta sem nenhuma razão técnica, o governo mergulhou de vez em crise a partir da saída de Sergio Moro do Ministério da Justiça. No meio disso, uma população com dificuldades de entender as recomendações médicas. É sobre todo este perigoso quadro que o Correio entrevistou Aldira Dominguez, especialista em gestão da saúde.
“O que eu percebo é que o presidente se apossou de um discurso um pouco mais economicista, o que não é totalmente negativo, pois as pessoas realmente precisam trabalhar, mas o presidente passou a desdenhar das recomendações dos órgãos internacionais, passou a fazer chacota de uma doença que já matou mais de seis mil pessoas no Brasil e quase 300 mil no mundo. Eu acho que falta seriedade, responsabilidade e equilíbrio do presidente neste contexto”.
Além de comentar as dificuldades dos profissionais de saúde, nem sempre com toda a estrutura material necessária à própria preservação, Aldira, que é professora do curso de Saúde Coletiva da Faculdade de Ceilândia da Universidade de Brasília, lamenta que a conduta da população, menos rigorosa do que semanas atrás. Apesar dos números, a entrevistada diz que poderiam ser ainda maiores não fossem as medidas executadas e que devemos nos preparar para mais alguns meses de quarentena.
“As pessoas precisam entender que o isolamento social é uma estratégia para conter a explosão de casos e o colapso do sistema de saúde. É um tempo necessário para que a gestão pública prepare a rede de assistência, aumente o número de leitos, adquira mais respiradores, monte hospitais de campanha, compre mais equipamentos de proteção individual, recrute mais profissionais para a linha de frente etc”.
Sem deixar de reconhecer a necessidade econômica, por sinal imposta ao novo ministro da saúde em sua atuação, Aldira Dominguez destaca que a pandemia exige a revisão de diversos hábitos de produção e consumo, que tem relação direta com a relação do ser humano com a natureza e o aparecimento do vírus. Como dado positivo, afirma que as universidades e o sistema público de saúde voltaram a se legitimar ao público como garantidores de bem estar e capacidade de resposta a problemas como este.
“A universidade conseguiu se consolidar enquanto órgão de referência em pesquisa e inovação tecnológica. Sofrendo com cortes no orçamento e em pesquisa há mais de cinco anos, fomos capazes, mesmo com recursos escassos, de responder de forma responsável e consistente às demandas da sociedade”.
A entrevista completa com Aldira Dominguez pode ser lida a seguir.
Correio da Cidadania: Em primeiro lugar, como analisa a saída de Luiz Henrique Mandetta do Ministério da Saúde em meio ao ápice do coronavírus no Brasil?
Aldira Dominguez: Eu vejo que no curto prazo a resposta do sistema de saúde brasileiro no combate ao coronavírus tem sido razoável e satisfatória, e muito disso se deve à gestão do ministro Mandetta e ao compromisso assumido por governadores e prefeitos. Se compararmos a situação do Brasil com a de outros países que retardaram a adoção do isolamento social preconizado pelos organismos internacionais, como a OPS/OMS, a situação por aqui, apesar das perdas e baixas, ainda é mais controlada com relação ao número de casos e mortes.
Lastimavelmente, interesses econômicos e talvez políticos estão se sobressaindo sobre os interesses na saúde e vida das pessoas. Eu lamentei muito a exoneração do ministro, mas acho que o legado deixado por ele é respeitável e tem impacto direto sobre o controle que estamos tendo na propagação da pandemia dentro do país.
Correio da Cidadania: O que comenta de sua gestão à frente do Ministério, inclusive antes da pandemia?
Aldira Dominguez: Eu como profissional da saúde sempre o achei um ministro centrado e focado. Mesmo com várias desordens no governo ele continuava fazendo seu trabalho. Acho que atuou com responsabilidade e profissionalismo. Ele tem o meu respeito.
Correio da Cidadania: O presidente Jair Bolsonaro sabotou sua atuação diante do corona? Como analisa o governo federal neste contexto?
Aldira Dominguez: O que eu percebo é que o presidente se apossou de um discurso um pouco mais economicista, o que não é totalmente negativo, pois as pessoas realmente precisam trabalhar, mas o presidente passou a desdenhar das recomendações dos órgãos internacionais, passou a fazer chacota de uma doença que já matou mais de seis mil pessoas no Brasil e quase 300 mil no mundo. Eu acho que falta seriedade, responsabilidade e equilíbrio do presidente neste contexto. A situação é muito preocupante.
Correio da Cidadania: Em relação ao novo ministro, como avalia seu início de gestão e primeiras declarações?
Aldira Dominguez: O Ministro Teich a meu ver tem um grande desafio neste momento, que é promover o relaxamento do distanciamento social para atender a visão economicista do presidente da República sem gerar um colapso no sistema de saúde. Todos nós sabemos que a melhor medida que se tem hoje para evitar o alastramento do vírus é o isolamento social. Nos seus discursos Teich deixa a entender que o isolamento social vai começar a ser gradualmente suspenso aqui no Brasil. Isso é preocupante, pois ainda o pico da pandemia não foi alcançado. A suspensão do isolamento já vem acontecendo em outros países, só que nestes países a pandemia começou antes e, aparentemente, o pico já passou.
Outro ponto que gostaria de considerar é que, como professora de gestão do trabalho em saúde, defendo que os cargos de gestão pública em saúde deveriam ser ocupados não só por médico, mas também por profissionais com formação em saúde coletiva e em gestão em saúde, como os sanitaristas. O ministro Teich, ainda que tenha estudos em economia da saúde, aparentemente ainda não foi gestor de fato, ou seja, sanitarista com responsabilidade em gestão pública dentro do sistema de saúde. Vamos acompanhar para vermos como será seu desempenho, mas particularmente torço para que consiga fazer um trabalho de forma condizente com as reais necessidades sociais em saúde no contexto da crise sanitária provocada pelo coronavírus.
Preocupa também outra situação: normalmente os ministros têm a possibilidade de nomear seus assessores diretos e no caso de Teich houve uma imposição por parte do governo federal. Assim, temos um militar, o General Pazuello, como auxiliar do ministro e o número dois da saúde no Brasil. Preocupa porque vejo como uma tendência a militarização dentro do governo. Isso já vem ocorrendo em outras áreas, o que dá a impressão de que os militares estão interessados em se apropriar dessa área também.
Pode até ser que dentro das forças armadas tenha um departamento de saúde, mas colocar um general como o segundo nome no escalão do Ministério da Saúde pede no mínimo uma boa reflexão e atenção.
Correio da Cidadania: Quanto aos governos estaduais, o que comenta de suas medidas de modo geral?
Aldira Dominguez: Os governadores e os prefeitos das cidades mais atingidas têm a opinião de manter o isolamento social, porque o impacto dessa pandemia tem sido terrível. Inclusive muitas autoridades estaduais e municipais passaram a ter um enfoque mais pragmático e técnico e deixaram de lado a questão ideológica, coisa que o presidente não quer deixar. Isso é algo é interessante, o próprio Supremo Tribunal Federal autorizou que as decisões e medidas sanitárias mais urgentes podem ser tomadas pelos prefeitos e governadores dos municípios e Estados em benefício do bem comum e da saúde da população, embora isso possa atingir algumas atividades de logística e de infraestrutura que ficam bloqueadas.
Eu vejo também que alguns governadores e prefeitos aproveitaram a pandemia para ponderar seus discursos e falar não somente para seus grupos de eleitores, em um contexto polarização política, mas para o conjunto da comunidade. E vejo que isso tem sido importante para eles, pois ganharam respaldo e popularidade, como aconteceu com os governadores de São Paulo e Rio de Janeiro; eles assumiram uma liderança política na condução da crise sanitária e hoje conseguem dialogar com os mais variados setores políticos e sociais. É positivo para eles e a sociedade.
Correio da Cidadania: O que pensa da quarentena e do comportamento da população brasileira frente a esta recomendação?
Aldira Dominguez: Com certeza, tanto a quarentena para as pessoas infectadas quanto o isolamento social para controle do avanço da pandemia trazem muitas implicações políticas, sociais, econômicas, familiares, dentre outras. Aqui destaco os perigos a que ficam expostas pessoas dependentes e vulneráveis. Cuidados devem ser redobrados por partes das autoridades para que abusos contra crianças, idosos e mulheres sejam evitados durante o período de confinamento. Destaco ainda a importância de se ter um olhar especial sobre aumento no número de casos de crise de ansiedade, síndrome do pânico, depressão e outras doenças mentais advindas do medo introjetado nas pessoas com relação a doenças.
Acho que a adesão ao isolamento social já foi mais forte, hoje percebo que aos poucos as pessoas estão circulando mais nas ruas e as pesquisas têm mostrado isso também. Como o vírus é invisível e o número de casos e mortes tem sido, na minha opinião, amenizado pelas medidas já tomadas, as pessoas parecem desacreditar que o risco de contaminação é real. Em todo caso, compartilho da ideia de que ainda não é a hora de se retornar às atividades – e se necessário for, medidas mais restritivas devem ser tomadas.
Correio da Cidadania: O que prevê sobre o número de casos nos próximos momentos? Podemos já considerar que a subnotificação é imensa?
Aldira Dominguez: Com certeza. Estima-se que só uma décima quinta parte da população está sendo testada. Primeiro porque os testes são muito caros; segundo porque não tem condição de em uma população com duzentos milhões de pessoas todas serem testadas. Em nenhum país tem sido possível o teste em massa.
Em algumas cidades sistemas de drive thru vêm sendo usados para realizar exames em pessoas sintomáticas. Reconheço a importância da medida, mas percebo algumas limitações, como o fato de pessoas sintomáticas e que não tenham carro realizarem o exame.
Correio da Cidadania: O que você imagina que ocorrerá com os sistemas públicos e privados de saúde?
Aldira Dominguez: Acho que podemos ter uma reação positiva da sociedade com relação ao sistema de saúde. Antes da pandemia a assistência em saúde já era considerada como a principal preocupação da população brasileira, segundo pesquisas de opinião. Outro tema importante é o financiamento da saúde, porque a economia brasileira e mundial vai ficar bastante fragilizada e sob pressão, o que cria tensões. Eu vejo também que a empregabilidade dos profissionais de saúde, enfermeiros e médicos vai crescer.
Com relação ao setor privado de saúde, penso que pode vir a perder muitos dos usuários que têm plano privado de saúde. Em alguns casos isso pode levar a uma reorganização do setor privado. Pelo que tenho observado nenhum usuário do setor privado tem tido recusado seus direitos de receber atendimento em um primeiro momento. Claro que os hospitais de referência para tratamento da Covid-19 são os públicos. Em todo caso reconheço que o fato de o novo ministro ter um histórico de vinculação a hospitais privados pode ser algo positivo no sentido de mobilizar recursos para o sistema de saúde em geral.
Correio da Cidadania: Como está a vida dos profissionais da saúde? Estão recebendo as condições adequadas?
Aldira Dominguez: A situação dos profissionais de saúde que estão na linha de frente no tratamento dos infectados é bastante delicada. A falta de Equipamentos de Proteção Individual (EPIs) é bastante comum nos serviços. Já ouvi vários relatos preocupantes de colegas da área da saúde que estão dentro dos hospitais neste momento de pandemia com relação, por exemplo, a reaproveitamento de máscaras, falta de luvas, profissionais se contaminando porque não sabem manusear adequadamente os EPIS; profissionais que estão comprando mantas de proteção com dinheiro do próprio bolso porque a secretaria de saúde não disponibiliza, dentre outros. Porém, para mim, o mais grave e que talvez não esteja sendo considerado neste momento é o adoecimento mental destes profissionais.
Há dilemas éticos bem marcantes neste processo, como decidir quem deve viver ou morrer devido à falta de leitos com respiradores. Ouvi de uma colega que o clima emocional dentro dos hospitais é de muito medo e ansiedade, devido ao despreparo das equipes para receber os casos suspeitos da doença, sem falar na rotina de cuidados que devem ter ao irem para casa, para que não sejam multiplicadores da doença entre os familiares.
Portanto, vejo que se faz necessário um olhar voltado à saúde mental destes profissionais que têm se colocados na linha de frente, para evitar mais adoecimentos e baixas no quadro, já que os servidores com mais de 60 anos e com comorbidade já estão afastados da linha de frente e estão atuando em espaço seguro do vírus.
Correio da Cidadania: É possível prever o fim da pandemia?
Aldira Dominguez: Eu penso que sim. Em três ou quatro meses podemos ter a fase mais crítica já vencida. No entanto, é importante ter claro que o vírus vai continuar existindo e as contaminações também. O ideal, e o que se espera ansiosamente, é a criação de uma vacina para imunização em massa.
As pessoas precisam entender que o isolamento social é uma estratégia para conter a explosão de casos e o colapso do sistema de saúde. É um tempo necessário para que a gestão pública prepare a rede de assistência, aumente o número de leitos, adquira mais respiradores, monte hospitais de campanha, compre mais equipamentos de proteção individual, recrute mais profissionais para a linha de frente etc.
O fim do isolamento social não significa o fim do vírus, mas um sinal de que o sistema de saúde já tem condição de atender e dar respostas favoráveis a todos os contaminados. Sem o dilema ético de decidir quem morre ou quem vive.
Correio da Cidadania: Como especialista em gestão e professora, você destacaria um papel das Universidades no combate à pandemia?
Aldira Dominguez: Eu, como pesquisadora e professora universitária, vejo que em meio à crise sanitária em que estamos inseridos devido a COVID-19 a universidade conseguiu se legitimar e se consolidar enquanto órgão de referência em pesquisa e inovação tecnológica. Sofrendo com cortes no orçamento e em pesquisa há mais de cinco anos, fomos capazes, mesmo com recursos escassos, de responder de forma responsável e consistente às demandas da sociedade. A universidade onde trabalho publicou um edital para o desenvolvimento de pesquisa sobre a COVID-19 e em uma semana mais de 100 propostas foram apresentadas por pesquisadores das mais diversas áreas do conhecimento dentro da universidade. Uma capacidade de resposta impressionante.
Temos pesquisadores realizando estudos para a produção de máscaras com nanopartículas, pesquisadores produzindo respiradores, aparelhos para desinfecção de equipamentos, tecnologias leves, como a confecção de materiais educativos e informativos dentre outros. Essa pandemia tem evidenciado para as universidades a necessidade em fortalecer as ações de pesquisa e extensão para enfrentar crises tão graves como a atual.
Antes da pandemia existia uma opinião crítica com relação à ciência que afetou o investimento nas universidades. Isso tinha relação com as restrições orçamentárias, mas também uma concepção irracional e anti-intelectual de algumas pessoas do governo e da sociedade. As universidades eram tidas como oposicionistas aos governos de direita radical e isso determinou que muitos programas de pesquisa fossem atingidos com cortes de bolsas de pesquisa e orçamento restrito.
Curiosamente, disciplinas das ciências naturais, especificamente de biologia evolutiva, foram também atingidas, porque o que passou a predominar dentro do governo foi uma posição quase teocrática da sociedade, excessivamente religiosa, de que não deveríamos ser em um Estado laico e republicano.
Em termos globais existem cooperações internacionais em termo de ciência e inovação tecnológica para encontrar respostas, o mais rápido possível, especialmente em termos de produção de vacina. No Brasil, a Fiocruz, além de atender o próprio Brasil, dialoga com outros países da América Latina para intercâmbio de experiências e até transferência de tecnologia, o que é muito importante. Assim, a ciência e a universidade ganham apoio e simpatia popular no processo de divulgação de conhecimento.
Correio da Cidadania: Considerando o ambiente de origem do vírus, é preciso repensar questões mais amplas, como nossos modos de produção e consumo?
Aldira Dominguez: A destruição da natureza e o uso abusivo dos recursos naturais não podem ser esquecidos. Há uma certa arrogância dos seres humanos em relação ao planeta e isso precisa de mudanças. As últimas pandemias surgiram na China e se você for observar a questão da poluição provocada pelo crescimento econômico do país é seríssima para a saúde da população. Além de problemas como hábitos alimentares e higiene que precisam ser verificados.
Aqui no Brasil eventos semelhantes estão acontecendo em relação à degradação do meio ambiente como a destruição dos biomas e quem sabe no futuro isso possa gerar doenças. A gripe espanhola que surgiu nos Estados Unidos foi parecida: o vírus surgiu em fazendas que criavam porcos; depois, o vírus sofreu mutação e passou a afetar os seres humanos; era a época da primeira guerra mundial e o vírus foi levado por soldados para a Europa, provocando uma tragédia em nível mundial.
Eu penso que a emergência climática e o que estamos fazendo com o meio ambiente atingem também as condições de saúde da população. Tomara que a gente entenda o aviso de que o planeta está chegando a seu limite e precisamos modificar e moderar nossos estilos de consumo e atitudes, a fim de avançar em uma sociedade um pouco mais justa e sustentável.
Eu defendo a tese de que deveriam ser considerados países desenvolvidos os capazes de recuperar e preservar seus recursos naturais. Hoje são considerados desenvolvidos os países cuja população tem maior potencial de consumo, só que já sabemos que esse modelo não se sustenta mais, os recursos naturais existentes no planeta são limitados e estão cada vez mais escassos. Sem falar que quanto mais somos incentivados a consumir para promover o crescimento econômico, mais destruímos o planeta, mais adoecemos e eventos como este de pandemia podem se repetir.
Gabriel Brito é jornalista e editor do Correio da Cidadania.
O corona vírus segue seu alastramento pela população e o Brasil já se firma como um dos países com maior número de mortes. Sem dúvidas, o descalabro político tocado pelo presidente da República e sua conduta anticientífica potencializaram o problema. Não bastasse a demissão de Luiz Henrique Mandetta sem nenhuma razão técnica, o governo mergulhou de vez em crise a partir da saída de Sergio Moro do Ministério da Justiça. No meio disso, uma população com dificuldades de entender as recomendações médicas. É sobre todo este perigoso quadro que o Correio entrevistou Aldira Dominguez, especialista em gestão da saúde.
“O que eu percebo é que o presidente se apossou de um discurso um pouco mais economicista, o que não é totalmente negativo, pois as pessoas realmente precisam trabalhar, mas o presidente passou a desdenhar das recomendações dos órgãos internacionais, passou a fazer chacota de uma doença que já matou mais de seis mil pessoas no Brasil e quase 300 mil no mundo. Eu acho que falta seriedade, responsabilidade e equilíbrio do presidente neste contexto”.
Além de comentar as dificuldades dos profissionais de saúde, nem sempre com toda a estrutura material necessária à própria preservação, Aldira, que é professora do curso de Saúde Coletiva da Faculdade de Ceilândia da Universidade de Brasília, lamenta que a conduta da população, menos rigorosa do que semanas atrás. Apesar dos números, a entrevistada diz que poderiam ser ainda maiores não fossem as medidas executadas e que devemos nos preparar para mais alguns meses de quarentena.
“As pessoas precisam entender que o isolamento social é uma estratégia para conter a explosão de casos e o colapso do sistema de saúde. É um tempo necessário para que a gestão pública prepare a rede de assistência, aumente o número de leitos, adquira mais respiradores, monte hospitais de campanha, compre mais equipamentos de proteção individual, recrute mais profissionais para a linha de frente etc”.
Sem deixar de reconhecer a necessidade econômica, por sinal imposta ao novo ministro da saúde em sua atuação, Aldira Dominguez destaca que a pandemia exige a revisão de diversos hábitos de produção e consumo, que tem relação direta com a relação do ser humano com a natureza e o aparecimento do vírus. Como dado positivo, afirma que as universidades e o sistema público de saúde voltaram a se legitimar ao público como garantidores de bem estar e capacidade de resposta a problemas como este.
“A universidade conseguiu se consolidar enquanto órgão de referência em pesquisa e inovação tecnológica. Sofrendo com cortes no orçamento e em pesquisa há mais de cinco anos, fomos capazes, mesmo com recursos escassos, de responder de forma responsável e consistente às demandas da sociedade”.
A entrevista completa com Aldira Dominguez pode ser lida a seguir.
Correio da Cidadania: Em primeiro lugar, como analisa a saída de Luiz Henrique Mandetta do Ministério da Saúde em meio ao ápice do coronavírus no Brasil?
Aldira Dominguez: Eu vejo que no curto prazo a resposta do sistema de saúde brasileiro no combate ao coronavírus tem sido razoável e satisfatória, e muito disso se deve à gestão do ministro Mandetta e ao compromisso assumido por governadores e prefeitos. Se compararmos a situação do Brasil com a de outros países que retardaram a adoção do isolamento social preconizado pelos organismos internacionais, como a OPS/OMS, a situação por aqui, apesar das perdas e baixas, ainda é mais controlada com relação ao número de casos e mortes.
Lastimavelmente, interesses econômicos e talvez políticos estão se sobressaindo sobre os interesses na saúde e vida das pessoas. Eu lamentei muito a exoneração do ministro, mas acho que o legado deixado por ele é respeitável e tem impacto direto sobre o controle que estamos tendo na propagação da pandemia dentro do país.
Correio da Cidadania: O que comenta de sua gestão à frente do Ministério, inclusive antes da pandemia?
Aldira Dominguez: Eu como profissional da saúde sempre o achei um ministro centrado e focado. Mesmo com várias desordens no governo ele continuava fazendo seu trabalho. Acho que atuou com responsabilidade e profissionalismo. Ele tem o meu respeito.
Correio da Cidadania: O presidente Jair Bolsonaro sabotou sua atuação diante do corona? Como analisa o governo federal neste contexto?
Aldira Dominguez: O que eu percebo é que o presidente se apossou de um discurso um pouco mais economicista, o que não é totalmente negativo, pois as pessoas realmente precisam trabalhar, mas o presidente passou a desdenhar das recomendações dos órgãos internacionais, passou a fazer chacota de uma doença que já matou mais de seis mil pessoas no Brasil e quase 300 mil no mundo. Eu acho que falta seriedade, responsabilidade e equilíbrio do presidente neste contexto. A situação é muito preocupante.
Correio da Cidadania: Em relação ao novo ministro, como avalia seu início de gestão e primeiras declarações?
Aldira Dominguez: O Ministro Teich a meu ver tem um grande desafio neste momento, que é promover o relaxamento do distanciamento social para atender a visão economicista do presidente da República sem gerar um colapso no sistema de saúde. Todos nós sabemos que a melhor medida que se tem hoje para evitar o alastramento do vírus é o isolamento social. Nos seus discursos Teich deixa a entender que o isolamento social vai começar a ser gradualmente suspenso aqui no Brasil. Isso é preocupante, pois ainda o pico da pandemia não foi alcançado. A suspensão do isolamento já vem acontecendo em outros países, só que nestes países a pandemia começou antes e, aparentemente, o pico já passou.
Outro ponto que gostaria de considerar é que, como professora de gestão do trabalho em saúde, defendo que os cargos de gestão pública em saúde deveriam ser ocupados não só por médico, mas também por profissionais com formação em saúde coletiva e em gestão em saúde, como os sanitaristas. O ministro Teich, ainda que tenha estudos em economia da saúde, aparentemente ainda não foi gestor de fato, ou seja, sanitarista com responsabilidade em gestão pública dentro do sistema de saúde. Vamos acompanhar para vermos como será seu desempenho, mas particularmente torço para que consiga fazer um trabalho de forma condizente com as reais necessidades sociais em saúde no contexto da crise sanitária provocada pelo coronavírus.
Preocupa também outra situação: normalmente os ministros têm a possibilidade de nomear seus assessores diretos e no caso de Teich houve uma imposição por parte do governo federal. Assim, temos um militar, o General Pazuello, como auxiliar do ministro e o número dois da saúde no Brasil. Preocupa porque vejo como uma tendência a militarização dentro do governo. Isso já vem ocorrendo em outras áreas, o que dá a impressão de que os militares estão interessados em se apropriar dessa área também.
Pode até ser que dentro das forças armadas tenha um departamento de saúde, mas colocar um general como o segundo nome no escalão do Ministério da Saúde pede no mínimo uma boa reflexão e atenção.
Correio da Cidadania: Quanto aos governos estaduais, o que comenta de suas medidas de modo geral?
Aldira Dominguez: Os governadores e os prefeitos das cidades mais atingidas têm a opinião de manter o isolamento social, porque o impacto dessa pandemia tem sido terrível. Inclusive muitas autoridades estaduais e municipais passaram a ter um enfoque mais pragmático e técnico e deixaram de lado a questão ideológica, coisa que o presidente não quer deixar. Isso é algo é interessante, o próprio Supremo Tribunal Federal autorizou que as decisões e medidas sanitárias mais urgentes podem ser tomadas pelos prefeitos e governadores dos municípios e Estados em benefício do bem comum e da saúde da população, embora isso possa atingir algumas atividades de logística e de infraestrutura que ficam bloqueadas.
Eu vejo também que alguns governadores e prefeitos aproveitaram a pandemia para ponderar seus discursos e falar não somente para seus grupos de eleitores, em um contexto polarização política, mas para o conjunto da comunidade. E vejo que isso tem sido importante para eles, pois ganharam respaldo e popularidade, como aconteceu com os governadores de São Paulo e Rio de Janeiro; eles assumiram uma liderança política na condução da crise sanitária e hoje conseguem dialogar com os mais variados setores políticos e sociais. É positivo para eles e a sociedade.
Correio da Cidadania: O que pensa da quarentena e do comportamento da população brasileira frente a esta recomendação?
Aldira Dominguez: Com certeza, tanto a quarentena para as pessoas infectadas quanto o isolamento social para controle do avanço da pandemia trazem muitas implicações políticas, sociais, econômicas, familiares, dentre outras. Aqui destaco os perigos a que ficam expostas pessoas dependentes e vulneráveis. Cuidados devem ser redobrados por partes das autoridades para que abusos contra crianças, idosos e mulheres sejam evitados durante o período de confinamento. Destaco ainda a importância de se ter um olhar especial sobre aumento no número de casos de crise de ansiedade, síndrome do pânico, depressão e outras doenças mentais advindas do medo introjetado nas pessoas com relação a doenças.
Acho que a adesão ao isolamento social já foi mais forte, hoje percebo que aos poucos as pessoas estão circulando mais nas ruas e as pesquisas têm mostrado isso também. Como o vírus é invisível e o número de casos e mortes tem sido, na minha opinião, amenizado pelas medidas já tomadas, as pessoas parecem desacreditar que o risco de contaminação é real. Em todo caso, compartilho da ideia de que ainda não é a hora de se retornar às atividades – e se necessário for, medidas mais restritivas devem ser tomadas.
Correio da Cidadania: O que prevê sobre o número de casos nos próximos momentos? Podemos já considerar que a subnotificação é imensa?
Aldira Dominguez: Com certeza. Estima-se que só uma décima quinta parte da população está sendo testada. Primeiro porque os testes são muito caros; segundo porque não tem condição de em uma população com duzentos milhões de pessoas todas serem testadas. Em nenhum país tem sido possível o teste em massa.
Em algumas cidades sistemas de drive thru vêm sendo usados para realizar exames em pessoas sintomáticas. Reconheço a importância da medida, mas percebo algumas limitações, como o fato de pessoas sintomáticas e que não tenham carro realizarem o exame.
Correio da Cidadania: O que você imagina que ocorrerá com os sistemas públicos e privados de saúde?
Aldira Dominguez: Acho que podemos ter uma reação positiva da sociedade com relação ao sistema de saúde. Antes da pandemia a assistência em saúde já era considerada como a principal preocupação da população brasileira, segundo pesquisas de opinião. Outro tema importante é o financiamento da saúde, porque a economia brasileira e mundial vai ficar bastante fragilizada e sob pressão, o que cria tensões. Eu vejo também que a empregabilidade dos profissionais de saúde, enfermeiros e médicos vai crescer.
Com relação ao setor privado de saúde, penso que pode vir a perder muitos dos usuários que têm plano privado de saúde. Em alguns casos isso pode levar a uma reorganização do setor privado. Pelo que tenho observado nenhum usuário do setor privado tem tido recusado seus direitos de receber atendimento em um primeiro momento. Claro que os hospitais de referência para tratamento da Covid-19 são os públicos. Em todo caso reconheço que o fato de o novo ministro ter um histórico de vinculação a hospitais privados pode ser algo positivo no sentido de mobilizar recursos para o sistema de saúde em geral.
Correio da Cidadania: Como está a vida dos profissionais da saúde? Estão recebendo as condições adequadas?
Aldira Dominguez: A situação dos profissionais de saúde que estão na linha de frente no tratamento dos infectados é bastante delicada. A falta de Equipamentos de Proteção Individual (EPIs) é bastante comum nos serviços. Já ouvi vários relatos preocupantes de colegas da área da saúde que estão dentro dos hospitais neste momento de pandemia com relação, por exemplo, a reaproveitamento de máscaras, falta de luvas, profissionais se contaminando porque não sabem manusear adequadamente os EPIS; profissionais que estão comprando mantas de proteção com dinheiro do próprio bolso porque a secretaria de saúde não disponibiliza, dentre outros. Porém, para mim, o mais grave e que talvez não esteja sendo considerado neste momento é o adoecimento mental destes profissionais.
Há dilemas éticos bem marcantes neste processo, como decidir quem deve viver ou morrer devido à falta de leitos com respiradores. Ouvi de uma colega que o clima emocional dentro dos hospitais é de muito medo e ansiedade, devido ao despreparo das equipes para receber os casos suspeitos da doença, sem falar na rotina de cuidados que devem ter ao irem para casa, para que não sejam multiplicadores da doença entre os familiares.
Portanto, vejo que se faz necessário um olhar voltado à saúde mental destes profissionais que têm se colocados na linha de frente, para evitar mais adoecimentos e baixas no quadro, já que os servidores com mais de 60 anos e com comorbidade já estão afastados da linha de frente e estão atuando em espaço seguro do vírus.
Correio da Cidadania: É possível prever o fim da pandemia?
Aldira Dominguez: Eu penso que sim. Em três ou quatro meses podemos ter a fase mais crítica já vencida. No entanto, é importante ter claro que o vírus vai continuar existindo e as contaminações também. O ideal, e o que se espera ansiosamente, é a criação de uma vacina para imunização em massa.
As pessoas precisam entender que o isolamento social é uma estratégia para conter a explosão de casos e o colapso do sistema de saúde. É um tempo necessário para que a gestão pública prepare a rede de assistência, aumente o número de leitos, adquira mais respiradores, monte hospitais de campanha, compre mais equipamentos de proteção individual, recrute mais profissionais para a linha de frente etc.
O fim do isolamento social não significa o fim do vírus, mas um sinal de que o sistema de saúde já tem condição de atender e dar respostas favoráveis a todos os contaminados. Sem o dilema ético de decidir quem morre ou quem vive.
Correio da Cidadania: Como especialista em gestão e professora, você destacaria um papel das Universidades no combate à pandemia?
Aldira Dominguez: Eu, como pesquisadora e professora universitária, vejo que em meio à crise sanitária em que estamos inseridos devido a COVID-19 a universidade conseguiu se legitimar e se consolidar enquanto órgão de referência em pesquisa e inovação tecnológica. Sofrendo com cortes no orçamento e em pesquisa há mais de cinco anos, fomos capazes, mesmo com recursos escassos, de responder de forma responsável e consistente às demandas da sociedade. A universidade onde trabalho publicou um edital para o desenvolvimento de pesquisa sobre a COVID-19 e em uma semana mais de 100 propostas foram apresentadas por pesquisadores das mais diversas áreas do conhecimento dentro da universidade. Uma capacidade de resposta impressionante.
Temos pesquisadores realizando estudos para a produção de máscaras com nanopartículas, pesquisadores produzindo respiradores, aparelhos para desinfecção de equipamentos, tecnologias leves, como a confecção de materiais educativos e informativos dentre outros. Essa pandemia tem evidenciado para as universidades a necessidade em fortalecer as ações de pesquisa e extensão para enfrentar crises tão graves como a atual.
Antes da pandemia existia uma opinião crítica com relação à ciência que afetou o investimento nas universidades. Isso tinha relação com as restrições orçamentárias, mas também uma concepção irracional e anti-intelectual de algumas pessoas do governo e da sociedade. As universidades eram tidas como oposicionistas aos governos de direita radical e isso determinou que muitos programas de pesquisa fossem atingidos com cortes de bolsas de pesquisa e orçamento restrito.
Curiosamente, disciplinas das ciências naturais, especificamente de biologia evolutiva, foram também atingidas, porque o que passou a predominar dentro do governo foi uma posição quase teocrática da sociedade, excessivamente religiosa, de que não deveríamos ser em um Estado laico e republicano.
Em termos globais existem cooperações internacionais em termo de ciência e inovação tecnológica para encontrar respostas, o mais rápido possível, especialmente em termos de produção de vacina. No Brasil, a Fiocruz, além de atender o próprio Brasil, dialoga com outros países da América Latina para intercâmbio de experiências e até transferência de tecnologia, o que é muito importante. Assim, a ciência e a universidade ganham apoio e simpatia popular no processo de divulgação de conhecimento.
Correio da Cidadania: Considerando o ambiente de origem do vírus, é preciso repensar questões mais amplas, como nossos modos de produção e consumo?
Aldira Dominguez: A destruição da natureza e o uso abusivo dos recursos naturais não podem ser esquecidos. Há uma certa arrogância dos seres humanos em relação ao planeta e isso precisa de mudanças. As últimas pandemias surgiram na China e se você for observar a questão da poluição provocada pelo crescimento econômico do país é seríssima para a saúde da população. Além de problemas como hábitos alimentares e higiene que precisam ser verificados.
Aqui no Brasil eventos semelhantes estão acontecendo em relação à degradação do meio ambiente como a destruição dos biomas e quem sabe no futuro isso possa gerar doenças. A gripe espanhola que surgiu nos Estados Unidos foi parecida: o vírus surgiu em fazendas que criavam porcos; depois, o vírus sofreu mutação e passou a afetar os seres humanos; era a época da primeira guerra mundial e o vírus foi levado por soldados para a Europa, provocando uma tragédia em nível mundial.
Eu penso que a emergência climática e o que estamos fazendo com o meio ambiente atingem também as condições de saúde da população. Tomara que a gente entenda o aviso de que o planeta está chegando a seu limite e precisamos modificar e moderar nossos estilos de consumo e atitudes, a fim de avançar em uma sociedade um pouco mais justa e sustentável.
Eu defendo a tese de que deveriam ser considerados países desenvolvidos os capazes de recuperar e preservar seus recursos naturais. Hoje são considerados desenvolvidos os países cuja população tem maior potencial de consumo, só que já sabemos que esse modelo não se sustenta mais, os recursos naturais existentes no planeta são limitados e estão cada vez mais escassos. Sem falar que quanto mais somos incentivados a consumir para promover o crescimento econômico, mais destruímos o planeta, mais adoecemos e eventos como este de pandemia podem se repetir.
Gabriel Brito é jornalista e editor do Correio da Cidadania.