Não é hora de retornar

Não é hora de retornar

“Não é hora de retornar às atividades. Em três ou quatro meses podemos ter a fase mais crítica vencida”

Brasil tem a 8ª maior taxa de letalidade de coronavírus no mundo


O co­rona vírus segue seu alas­tra­mento pela po­pu­lação e o Brasil já se firma como um dos países com maior nú­mero de mortes. Sem dú­vidas, o des­ca­labro po­lí­tico to­cado pelo pre­si­dente da Re­pú­blica e sua con­duta an­ti­ci­en­tí­fica po­ten­ci­a­li­zaram o pro­blema. Não bas­tasse a de­missão de Luiz Hen­rique Man­detta sem ne­nhuma razão téc­nica, o go­verno mer­gu­lhou de vez em crise a partir da saída de Sergio Moro do Mi­nis­tério da Jus­tiça. No meio disso, uma po­pu­lação com di­fi­cul­dades de en­tender as re­co­men­da­ções mé­dicas. É sobre todo este pe­ri­goso quadro que o Cor­reio en­tre­vistou Al­dira Do­min­guez, es­pe­ci­a­lista em gestão da saúde.

“O que eu per­cebo é que o pre­si­dente se apossou de um dis­curso um pouco mais eco­no­mi­cista, o que não é to­tal­mente ne­ga­tivo, pois as pes­soas re­al­mente pre­cisam tra­ba­lhar, mas o pre­si­dente passou a des­de­nhar das re­co­men­da­ções dos ór­gãos in­ter­na­ci­o­nais, passou a fazer cha­cota de uma do­ença que já matou mais de seis mil pes­soas no Brasil e quase 300 mil no mundo. Eu acho que falta se­ri­e­dade, res­pon­sa­bi­li­dade e equi­lí­brio do pre­si­dente neste con­texto”.

Além de co­mentar as di­fi­cul­dades dos pro­fis­si­o­nais de saúde, nem sempre com toda a es­tru­tura ma­te­rial ne­ces­sária à pró­pria pre­ser­vação, Al­dira, que é pro­fes­sora do curso de Saúde Co­le­tiva da Fa­cul­dade de Cei­lândia da Uni­ver­si­dade de Bra­sília, la­menta que a con­duta da po­pu­lação, menos ri­go­rosa do que se­manas atrás. Apesar dos nú­meros, a en­tre­vis­tada diz que po­de­riam ser ainda mai­ores não fossem as me­didas exe­cu­tadas e que de­vemos nos pre­parar para mais al­guns meses de qua­ren­tena.

“As pes­soas pre­cisam en­tender que o iso­la­mento so­cial é uma es­tra­tégia para conter a ex­plosão de casos e o co­lapso do sis­tema de saúde. É um tempo ne­ces­sário para que a gestão pú­blica pre­pare a rede de as­sis­tência, au­mente o nú­mero de leitos, ad­quira mais res­pi­ra­dores, monte hos­pi­tais de cam­panha, compre mais equi­pa­mentos de pro­teção in­di­vi­dual, re­crute mais pro­fis­si­o­nais para a linha de frente etc”.

Sem deixar de re­co­nhecer a ne­ces­si­dade econô­mica, por sinal im­posta ao novo mi­nistro da saúde em sua atu­ação, Al­dira Do­min­guez des­taca que a pan­demia exige a re­visão de di­versos há­bitos de pro­dução e con­sumo, que tem re­lação di­reta com a re­lação do ser hu­mano com a na­tu­reza e o apa­re­ci­mento do vírus. Como dado po­si­tivo, afirma que as uni­ver­si­dades e o sis­tema pú­blico de saúde vol­taram a se le­gi­timar ao pú­blico como ga­ran­ti­dores de bem estar e ca­pa­ci­dade de res­posta a pro­blemas como este.

“A uni­ver­si­dade con­se­guiu se con­so­lidar en­quanto órgão de re­fe­rência em pes­quisa e ino­vação tec­no­ló­gica. So­frendo com cortes no or­ça­mento e em pes­quisa há mais de cinco anos, fomos ca­pazes, mesmo com re­cursos es­cassos, de res­ponder de forma res­pon­sável e con­sis­tente às de­mandas da so­ci­e­dade”.

A en­tre­vista com­pleta com Al­dira Do­min­guez pode ser lida a se­guir.

Cor­reio da Ci­da­dania: Em pri­meiro lugar, como ana­lisa a saída de Luiz Hen­rique Man­detta do Mi­nis­tério da Saúde em meio ao ápice do co­ro­na­vírus no Brasil?

Al­dira Do­min­guez: Eu vejo que no curto prazo a res­posta do sis­tema de saúde bra­si­leiro no com­bate ao co­ro­na­vírus tem sido ra­zoável e sa­tis­fa­tória, e muito disso se deve à gestão do mi­nistro Man­detta e ao com­pro­misso as­su­mido por go­ver­na­dores e pre­feitos. Se com­pa­rarmos a si­tu­ação do Brasil com a de ou­tros países que re­tar­daram a adoção do iso­la­mento so­cial pre­co­ni­zado pelos or­ga­nismos in­ter­na­ci­o­nais, como a OPS/OMS, a si­tu­ação por aqui, apesar das perdas e baixas, ainda é mais con­tro­lada com re­lação ao nú­mero de casos e mortes.

Las­ti­ma­vel­mente, in­te­resses econô­micos e talvez po­lí­ticos estão se so­bres­saindo sobre os in­te­resses na saúde e vida das pes­soas. Eu la­mentei muito a exo­ne­ração do mi­nistro, mas acho que o le­gado dei­xado por ele é res­pei­tável e tem im­pacto di­reto sobre o con­trole que es­tamos tendo na pro­pa­gação da pan­demia dentro do país.

Cor­reio da Ci­da­dania: O que co­menta de sua gestão à frente do Mi­nis­tério, in­clu­sive antes da pan­demia?

Al­dira Do­min­guez: Eu como pro­fis­si­onal da saúde sempre o achei um mi­nistro cen­trado e fo­cado. Mesmo com vá­rias de­sor­dens no go­verno ele con­ti­nuava fa­zendo seu tra­balho. Acho que atuou com res­pon­sa­bi­li­dade e pro­fis­si­o­na­lismo. Ele tem o meu res­peito.

Cor­reio da Ci­da­dania: O pre­si­dente Jair Bol­so­naro sa­botou sua atu­ação di­ante do co­rona? Como ana­lisa o go­verno fe­deral neste con­texto?

Al­dira Do­min­guez: O que eu per­cebo é que o pre­si­dente se apossou de um dis­curso um pouco mais eco­no­mi­cista, o que não é to­tal­mente ne­ga­tivo, pois as pes­soas re­al­mente pre­cisam tra­ba­lhar, mas o pre­si­dente passou a des­de­nhar das re­co­men­da­ções dos ór­gãos in­ter­na­ci­o­nais, passou a fazer cha­cota de uma do­ença que já matou mais de seis mil pes­soas no Brasil e quase 300 mil no mundo. Eu acho que falta se­ri­e­dade, res­pon­sa­bi­li­dade e equi­lí­brio do pre­si­dente neste con­texto. A si­tu­ação é muito pre­o­cu­pante.

Cor­reio da Ci­da­dania: Em re­lação ao novo mi­nistro, como avalia seu início de gestão e pri­meiras de­cla­ra­ções?

Al­dira Do­min­guez: O Mi­nistro Teich a meu ver tem um grande de­safio neste mo­mento, que é pro­mover o re­la­xa­mento do dis­tan­ci­a­mento so­cial para atender a visão eco­no­mi­cista do pre­si­dente da Re­pú­blica sem gerar um co­lapso no sis­tema de saúde. Todos nós sa­bemos que a me­lhor me­dida que se tem hoje para evitar o alas­tra­mento do vírus é o iso­la­mento so­cial. Nos seus dis­cursos Teich deixa a en­tender que o iso­la­mento so­cial vai co­meçar a ser gra­du­al­mente sus­penso aqui no Brasil. Isso é pre­o­cu­pante, pois ainda o pico da pan­demia não foi al­can­çado. A sus­pensão do iso­la­mento já vem acon­te­cendo em ou­tros países, só que nestes países a pan­demia co­meçou antes e, apa­ren­te­mente, o pico já passou.

Outro ponto que gos­taria de con­si­derar é que, como pro­fes­sora de gestão do tra­balho em saúde, de­fendo que os cargos de gestão pú­blica em saúde de­ve­riam ser ocu­pados não só por mé­dico, mas também por pro­fis­si­o­nais com for­mação em saúde co­le­tiva e em gestão em saúde, como os sa­ni­ta­ristas. O mi­nistro Teich, ainda que tenha es­tudos em eco­nomia da saúde, apa­ren­te­mente ainda não foi gestor de fato, ou seja, sa­ni­ta­rista com res­pon­sa­bi­li­dade em gestão pú­blica dentro do sis­tema de saúde. Vamos acom­pa­nhar para vermos como será seu de­sem­penho, mas par­ti­cu­lar­mente torço para que con­siga fazer um tra­balho de forma con­di­zente com as reais ne­ces­si­dades so­ciais em saúde no con­texto da crise sa­ni­tária pro­vo­cada pelo co­ro­na­vírus.

Pre­o­cupa também outra si­tu­ação: nor­mal­mente os mi­nis­tros têm a pos­si­bi­li­dade de no­mear seus as­ses­sores di­retos e no caso de Teich houve uma im­po­sição por parte do go­verno fe­deral. Assim, temos um mi­litar, o Ge­neral Pa­zu­ello, como au­xi­liar do mi­nistro e o nú­mero dois da saúde no Brasil. Pre­o­cupa porque vejo como uma ten­dência a mi­li­ta­ri­zação dentro do go­verno. Isso já vem ocor­rendo em ou­tras áreas, o que dá a im­pressão de que os mi­li­tares estão in­te­res­sados em se apro­priar dessa área também.

Pode até ser que dentro das forças ar­madas tenha um de­par­ta­mento de saúde, mas co­locar um ge­neral como o se­gundo nome no es­calão do Mi­nis­tério da Saúde pede no mí­nimo uma boa re­flexão e atenção.

Cor­reio da Ci­da­dania: Quanto aos go­vernos es­ta­duais, o que co­menta de suas me­didas de modo geral?

Al­dira Do­min­guez: Os go­ver­na­dores e os pre­feitos das ci­dades mais atin­gidas têm a opi­nião de manter o iso­la­mento so­cial, porque o im­pacto dessa pan­demia tem sido ter­rível. In­clu­sive muitas au­to­ri­dades es­ta­duais e mu­ni­ci­pais pas­saram a ter um en­foque mais prag­má­tico e téc­nico e dei­xaram de lado a questão ide­o­ló­gica, coisa que o pre­si­dente não quer deixar. Isso é algo é in­te­res­sante, o pró­prio Su­premo Tri­bunal Fe­deral au­to­rizou que as de­ci­sões e me­didas sa­ni­tá­rias mais ur­gentes podem ser to­madas pelos pre­feitos e go­ver­na­dores dos mu­ni­cí­pios e Es­tados em be­ne­fício do bem comum e da saúde da po­pu­lação, em­bora isso possa atingir al­gumas ati­vi­dades de lo­gís­tica e de in­fra­es­tru­tura que ficam blo­que­adas.

Eu vejo também que al­guns go­ver­na­dores e pre­feitos apro­vei­taram a pan­demia para pon­derar seus dis­cursos e falar não so­mente para seus grupos de elei­tores, em um con­texto po­la­ri­zação po­lí­tica, mas para o con­junto da co­mu­ni­dade. E vejo que isso tem sido im­por­tante para eles, pois ga­nharam res­paldo e po­pu­la­ri­dade, como acon­teceu com os go­ver­na­dores de São Paulo e Rio de Ja­neiro; eles as­su­miram uma li­de­rança po­lí­tica na con­dução da crise sa­ni­tária e hoje con­se­guem di­a­logar com os mais va­ri­ados se­tores po­lí­ticos e so­ciais. É po­si­tivo para eles e a so­ci­e­dade.

Cor­reio da Ci­da­dania: O que pensa da qua­ren­tena e do com­por­ta­mento da po­pu­lação bra­si­leira frente a esta re­co­men­dação?

Al­dira Do­min­guez: Com cer­teza, tanto a qua­ren­tena para as pes­soas in­fec­tadas quanto o iso­la­mento so­cial para con­trole do avanço da pan­demia trazem muitas im­pli­ca­ções po­lí­ticas, so­ciais, econô­micas, fa­mi­li­ares, dentre ou­tras. Aqui des­taco os pe­rigos a que ficam ex­postas pes­soas de­pen­dentes e vul­ne­rá­veis. Cui­dados devem ser re­do­brados por partes das au­to­ri­dades para que abusos contra cri­anças, idosos e mu­lheres sejam evi­tados du­rante o pe­ríodo de con­fi­na­mento. Des­taco ainda a im­por­tância de se ter um olhar es­pe­cial sobre au­mento no nú­mero de casos de crise de an­si­e­dade, sín­drome do pâ­nico, de­pressão e ou­tras do­enças men­tais ad­vindas do medo in­tro­je­tado nas pes­soas com re­lação a do­enças.

Acho que a adesão ao iso­la­mento so­cial já foi mais forte, hoje per­cebo que aos poucos as pes­soas estão cir­cu­lando mais nas ruas e as pes­quisas têm mos­trado isso também. Como o vírus é in­vi­sível e o nú­mero de casos e mortes tem sido, na minha opi­nião, ame­ni­zado pelas me­didas já to­madas, as pes­soas pa­recem de­sa­cre­ditar que o risco de con­ta­mi­nação é real. Em todo caso, com­par­tilho da ideia de que ainda não é a hora de se re­tornar às ati­vi­dades – e se ne­ces­sário for, me­didas mais res­tri­tivas devem ser to­madas.

Cor­reio da Ci­da­dania: O que prevê sobre o nú­mero de casos nos pró­ximos mo­mentos? Po­demos já con­si­derar que a sub­no­ti­fi­cação é imensa?

Al­dira Do­min­guez: Com cer­teza. Es­tima-se que só uma dé­cima quinta parte da po­pu­lação está sendo tes­tada. Pri­meiro porque os testes são muito caros; se­gundo porque não tem con­dição de em uma po­pu­lação com du­zentos mi­lhões de pes­soas todas serem tes­tadas. Em ne­nhum país tem sido pos­sível o teste em massa.

Em al­gumas ci­dades sis­temas de drive thru vêm sendo usados para re­a­lizar exames em pes­soas sin­to­má­ticas. Re­co­nheço a im­por­tância da me­dida, mas per­cebo al­gumas li­mi­ta­ções, como o fato de pes­soas sin­to­má­ticas e que não te­nham carro re­a­li­zarem o exame.

Cor­reio da Ci­da­dania: O que você ima­gina que ocor­rerá com os sis­temas pú­blicos e pri­vados de saúde?

Al­dira Do­min­guez: Acho que po­demos ter uma re­ação po­si­tiva da so­ci­e­dade com re­lação ao sis­tema de saúde. Antes da pan­demia a as­sis­tência em saúde já era con­si­de­rada como a prin­cipal pre­o­cu­pação da po­pu­lação bra­si­leira, se­gundo pes­quisas de opi­nião. Outro tema im­por­tante é o fi­nan­ci­a­mento da saúde, porque a eco­nomia bra­si­leira e mun­dial vai ficar bas­tante fra­gi­li­zada e sob pressão, o que cria ten­sões. Eu vejo também que a em­pre­ga­bi­li­dade dos pro­fis­si­o­nais de saúde, en­fer­meiros e mé­dicos vai crescer.

Com re­lação ao setor pri­vado de saúde, penso que pode vir a perder muitos dos usuá­rios que têm plano pri­vado de saúde. Em al­guns casos isso pode levar a uma re­or­ga­ni­zação do setor pri­vado. Pelo que tenho ob­ser­vado ne­nhum usuário do setor pri­vado tem tido re­cu­sado seus di­reitos de re­ceber aten­di­mento em um pri­meiro mo­mento. Claro que os hos­pi­tais de re­fe­rência para tra­ta­mento da Covid-19 são os pú­blicos. Em todo caso re­co­nheço que o fato de o novo mi­nistro ter um his­tó­rico de vin­cu­lação a hos­pi­tais pri­vados pode ser algo po­si­tivo no sen­tido de mo­bi­lizar re­cursos para o sis­tema de saúde em geral.

Cor­reio da Ci­da­dania: Como está a vida dos pro­fis­si­o­nais da saúde? Estão re­ce­bendo as con­di­ções ade­quadas?

Al­dira Do­min­guez: A si­tu­ação dos pro­fis­si­o­nais de saúde que estão na linha de frente no tra­ta­mento dos in­fec­tados é bas­tante de­li­cada. A falta de Equi­pa­mentos de Pro­teção In­di­vi­dual (EPIs) é bas­tante comum nos ser­viços. Já ouvi vá­rios re­latos pre­o­cu­pantes de co­legas da área da saúde que estão dentro dos hos­pi­tais neste mo­mento de pan­demia com re­lação, por exemplo, a re­a­pro­vei­ta­mento de más­caras, falta de luvas, pro­fis­si­o­nais se con­ta­mi­nando porque não sabem ma­nu­sear ade­qua­da­mente os EPIS; pro­fis­si­o­nais que estão com­prando mantas de pro­teção com di­nheiro do pró­prio bolso porque a se­cre­taria de saúde não dis­po­ni­bi­liza, dentre ou­tros. Porém, para mim, o mais grave e que talvez não es­teja sendo con­si­de­rado neste mo­mento é o ado­e­ci­mento mental destes pro­fis­si­o­nais.

Há di­lemas éticos bem mar­cantes neste pro­cesso, como de­cidir quem deve viver ou morrer de­vido à falta de leitos com res­pi­ra­dores. Ouvi de uma co­lega que o clima emo­ci­onal dentro dos hos­pi­tais é de muito medo e an­si­e­dade, de­vido ao des­pre­paro das equipes para re­ceber os casos sus­peitos da do­ença, sem falar na ro­tina de cui­dados que devem ter ao irem para casa, para que não sejam mul­ti­pli­ca­dores da do­ença entre os fa­mi­li­ares.

Por­tanto, vejo que se faz ne­ces­sário um olhar vol­tado à saúde mental destes pro­fis­si­o­nais que têm se co­lo­cados na linha de frente, para evitar mais ado­e­ci­mentos e baixas no quadro, já que os ser­vi­dores com mais de 60 anos e com co­mor­bi­dade já estão afas­tados da linha de frente e estão atu­ando em es­paço se­guro do vírus.

Cor­reio da Ci­da­dania: É pos­sível prever o fim da pan­demia?

Al­dira Do­min­guez: Eu penso que sim. Em três ou quatro meses po­demos ter a fase mais crí­tica já ven­cida. No en­tanto, é im­por­tante ter claro que o vírus vai con­ti­nuar exis­tindo e as con­ta­mi­na­ções também. O ideal, e o que se es­pera an­si­o­sa­mente, é a cri­ação de uma va­cina para imu­ni­zação em massa.

As pes­soas pre­cisam en­tender que o iso­la­mento so­cial é uma es­tra­tégia para conter a ex­plosão de casos e o co­lapso do sis­tema de saúde. É um tempo ne­ces­sário para que a gestão pú­blica pre­pare a rede de as­sis­tência, au­mente o nú­mero de leitos, ad­quira mais res­pi­ra­dores, monte hos­pi­tais de cam­panha, compre mais equi­pa­mentos de pro­teção in­di­vi­dual, re­crute mais pro­fis­si­o­nais para a linha de frente etc.

O fim do iso­la­mento so­cial não sig­ni­fica o fim do vírus, mas um sinal de que o sis­tema de saúde já tem con­dição de atender e dar res­postas fa­vo­rá­veis a todos os con­ta­mi­nados. Sem o di­lema ético de de­cidir quem morre ou quem vive.

Cor­reio da Ci­da­dania: Como es­pe­ci­a­lista em gestão e pro­fes­sora, você des­ta­caria um papel das Uni­ver­si­dades no com­bate à pan­demia?

Al­dira Do­min­guez: Eu, como pes­qui­sa­dora e pro­fes­sora uni­ver­si­tária, vejo que em meio à crise sa­ni­tária em que es­tamos in­se­ridos de­vido a COVID-19 a uni­ver­si­dade con­se­guiu se le­gi­timar e se con­so­lidar en­quanto órgão de re­fe­rência em pes­quisa e ino­vação tec­no­ló­gica. So­frendo com cortes no or­ça­mento e em pes­quisa há mais de cinco anos, fomos ca­pazes, mesmo com re­cursos es­cassos, de res­ponder de forma res­pon­sável e con­sis­tente às de­mandas da so­ci­e­dade. A uni­ver­si­dade onde tra­balho pu­blicou um edital para o de­sen­vol­vi­mento de pes­quisa sobre a COVID-19 e em uma se­mana mais de 100 pro­postas foram apre­sen­tadas por pes­qui­sa­dores das mais di­versas áreas do co­nhe­ci­mento dentro da uni­ver­si­dade. Uma ca­pa­ci­dade de res­posta im­pres­si­o­nante.

Temos pes­qui­sa­dores re­a­li­zando es­tudos para a pro­dução de más­caras com na­no­par­tí­culas, pes­qui­sa­dores pro­du­zindo res­pi­ra­dores, apa­re­lhos para de­sin­fecção de equi­pa­mentos, tec­no­lo­gias leves, como a con­fecção de ma­te­riais edu­ca­tivos e in­for­ma­tivos dentre ou­tros. Essa pan­demia tem evi­den­ciado para as uni­ver­si­dades a ne­ces­si­dade em for­ta­lecer as ações de pes­quisa e ex­tensão para en­frentar crises tão graves como a atual.

Antes da pan­demia existia uma opi­nião crí­tica com re­lação à ci­ência que afetou o in­ves­ti­mento nas uni­ver­si­dades. Isso tinha re­lação com as res­tri­ções or­ça­men­tá­rias, mas também uma con­cepção ir­ra­ci­onal e anti-in­te­lec­tual de al­gumas pes­soas do go­verno e da so­ci­e­dade. As uni­ver­si­dades eram tidas como opo­si­ci­o­nistas aos go­vernos de di­reita ra­dical e isso de­ter­minou que muitos pro­gramas de pes­quisa fossem atin­gidos com cortes de bolsas de pes­quisa e or­ça­mento res­trito.

Cu­ri­o­sa­mente, dis­ci­plinas das ci­ên­cias na­tu­rais, es­pe­ci­fi­ca­mente de bi­o­logia evo­lu­tiva, foram também atin­gidas, porque o que passou a pre­do­minar dentro do go­verno foi uma po­sição quase te­o­crá­tica da so­ci­e­dade, ex­ces­si­va­mente re­li­giosa, de que não de­ve­ríamos ser em um Es­tado laico e re­pu­bli­cano.

Em termos glo­bais existem co­o­pe­ra­ções in­ter­na­ci­o­nais em termo de ci­ência e ino­vação tec­no­ló­gica para en­con­trar res­postas, o mais rá­pido pos­sível, es­pe­ci­al­mente em termos de pro­dução de va­cina. No Brasil, a Fi­o­cruz, além de atender o pró­prio Brasil, di­a­loga com ou­tros países da Amé­rica La­tina para in­ter­câmbio de ex­pe­ri­ên­cias e até trans­fe­rência de tec­no­logia, o que é muito im­por­tante. Assim, a ci­ência e a uni­ver­si­dade ga­nham apoio e sim­patia po­pular no pro­cesso de di­vul­gação de co­nhe­ci­mento.

Cor­reio da Ci­da­dania: Con­si­de­rando o am­bi­ente de origem do vírus, é pre­ciso re­pensar ques­tões mais am­plas, como nossos modos de pro­dução e con­sumo?

Al­dira Do­min­guez: A des­truição da na­tu­reza e o uso abu­sivo dos re­cursos na­tu­rais não podem ser es­que­cidos. Há uma certa ar­ro­gância dos seres hu­manos em re­lação ao pla­neta e isso pre­cisa de mu­danças. As úl­timas pan­de­mias sur­giram na China e se você for ob­servar a questão da po­luição pro­vo­cada pelo cres­ci­mento econô­mico do país é se­rís­sima para a saúde da po­pu­lação. Além de pro­blemas como há­bitos ali­men­tares e hi­giene que pre­cisam ser ve­ri­fi­cados.

Aqui no Brasil eventos se­me­lhantes estão acon­te­cendo em re­lação à de­gra­dação do meio am­bi­ente como a des­truição dos bi­omas e quem sabe no fu­turo isso possa gerar do­enças. A gripe es­pa­nhola que surgiu nos Es­tados Unidos foi pa­re­cida: o vírus surgiu em fa­zendas que cri­avam porcos; de­pois, o vírus so­freu mu­tação e passou a afetar os seres hu­manos; era a época da pri­meira guerra mun­dial e o vírus foi le­vado por sol­dados para a Eu­ropa, pro­vo­cando uma tra­gédia em nível mun­dial.

Eu penso que a emer­gência cli­má­tica e o que es­tamos fa­zendo com o meio am­bi­ente atingem também as con­di­ções de saúde da po­pu­lação. To­mara que a gente en­tenda o aviso de que o pla­neta está che­gando a seu li­mite e pre­ci­samos mo­di­ficar e mo­derar nossos es­tilos de con­sumo e ati­tudes, a fim de avançar em uma so­ci­e­dade um pouco mais justa e sus­ten­tável.

Eu de­fendo a tese de que de­ve­riam ser con­si­de­rados países de­sen­vol­vidos os ca­pazes de re­cu­perar e pre­servar seus re­cursos na­tu­rais. Hoje são con­si­de­rados de­sen­vol­vidos os países cuja po­pu­lação tem maior po­ten­cial de con­sumo, só que já sa­bemos que esse mo­delo não se sus­tenta mais, os re­cursos na­tu­rais exis­tentes no pla­neta são li­mi­tados e estão cada vez mais es­cassos. Sem falar que quanto mais somos in­cen­ti­vados a con­sumir para pro­mover o cres­ci­mento econô­mico, mais des­truímos o pla­neta, mais ado­e­cemos e eventos como este de pan­demia podem se re­petir.

Ga­briel Brito é jor­na­lista e editor do Cor­reio da Ci­da­dania.

 

https://www.correiocidadania.com.br/34-artigos/manchete/14161-nao-e-hora-de-retornar-as-atividades-em-tres-ou-quatro-meses-podemos-ter-a-fase-mais-critica-vencida

O corona vírus segue seu alastramento pela população e o Brasil já se firma como um dos países com maior número de mortes. Sem dúvidas, o descalabro político tocado pelo presidente da República e sua conduta anticientífica potencializaram o problema. Não bastasse a demissão de Luiz Henrique Mandetta sem nenhuma razão técnica, o governo mergulhou de vez em crise a partir da saída de Sergio Moro do Ministério da Justiça. No meio disso, uma população com dificuldades de entender as recomendações médicas. É sobre todo este perigoso quadro que o Correio entrevistou Aldira Dominguez, especialista em gestão da saúde.

“O que eu percebo é que o presidente se apossou de um discurso um pouco mais economicista, o que não é totalmente negativo, pois as pessoas realmente precisam trabalhar, mas o presidente passou a desdenhar das recomendações dos órgãos internacionais, passou a fazer chacota de uma doença que já matou mais de seis mil pessoas no Brasil e quase 300 mil no mundo. Eu acho que falta seriedade, responsabilidade e equilíbrio do presidente neste contexto”.

Além de comentar as dificuldades dos profissionais de saúde, nem sempre com toda a estrutura material necessária à própria preservação, Aldira, que é professora do curso de Saúde Coletiva da Faculdade de Ceilândia da Universidade de Brasília, lamenta que a conduta da população, menos rigorosa do que semanas atrás. Apesar dos números, a entrevistada diz que poderiam ser ainda maiores não fossem as medidas executadas e que devemos nos preparar para mais alguns meses de quarentena.

“As pessoas precisam entender que o isolamento social é uma estratégia para conter a explosão de casos e o colapso do sistema de saúde. É um tempo necessário para que a gestão pública prepare a rede de assistência, aumente o número de leitos, adquira mais respiradores, monte hospitais de campanha, compre mais equipamentos de proteção individual, recrute mais profissionais para a linha de frente etc”.

Sem deixar de reconhecer a necessidade econômica, por sinal imposta ao novo ministro da saúde em sua atuação, Aldira Dominguez destaca que a pandemia exige a revisão de diversos hábitos de produção e consumo, que tem relação direta com a relação do ser humano com a natureza e o aparecimento do vírus. Como dado positivo, afirma que as universidades e o sistema público de saúde voltaram a se legitimar ao público como garantidores de bem estar e capacidade de resposta a problemas como este.

“A universidade conseguiu se consolidar enquanto órgão de referência em pesquisa e inovação tecnológica. Sofrendo com cortes no orçamento e em pesquisa há mais de cinco anos, fomos capazes, mesmo com recursos escassos, de responder de forma responsável e consistente às demandas da sociedade”.

A entrevista completa com Aldira Dominguez pode ser lida a seguir.

Correio da Cidadania: Em primeiro lugar, como analisa a saída de Luiz Henrique Mandetta do Ministério da Saúde em meio ao ápice do coronavírus no Brasil?

Aldira Dominguez: Eu vejo que no curto prazo a resposta do sistema de saúde brasileiro no combate ao coronavírus tem sido razoável e satisfatória, e muito disso se deve à gestão do ministro Mandetta e ao compromisso assumido por governadores e prefeitos. Se compararmos a situação do Brasil com a de outros países que retardaram a adoção do isolamento social preconizado pelos organismos internacionais, como a OPS/OMS, a situação por aqui, apesar das perdas e baixas, ainda é mais controlada com relação ao número de casos e mortes.

Lastimavelmente, interesses econômicos e talvez políticos estão se sobressaindo sobre os interesses na saúde e vida das pessoas. Eu lamentei muito a exoneração do ministro, mas acho que o legado deixado por ele é respeitável e tem impacto direto sobre o controle que estamos tendo na propagação da pandemia dentro do país.

Correio da Cidadania: O que comenta de sua gestão à frente do Ministério, inclusive antes da pandemia?

Aldira Dominguez: Eu como profissional da saúde sempre o achei um ministro centrado e focado. Mesmo com várias desordens no governo ele continuava fazendo seu trabalho. Acho que atuou com responsabilidade e profissionalismo. Ele tem o meu respeito.

Correio da Cidadania: O presidente Jair Bolsonaro sabotou sua atuação diante do corona? Como analisa o governo federal neste contexto?

Aldira Dominguez: O que eu percebo é que o presidente se apossou de um discurso um pouco mais economicista, o que não é totalmente negativo, pois as pessoas realmente precisam trabalhar, mas o presidente passou a desdenhar das recomendações dos órgãos internacionais, passou a fazer chacota de uma doença que já matou mais de seis mil pessoas no Brasil e quase 300 mil no mundo. Eu acho que falta seriedade, responsabilidade e equilíbrio do presidente neste contexto. A situação é muito preocupante.

Correio da Cidadania: Em relação ao novo ministro, como avalia seu início de gestão e primeiras declarações?

Aldira Dominguez: O Ministro Teich a meu ver tem um grande desafio neste momento, que é promover o relaxamento do distanciamento social para atender a visão economicista do presidente da República sem gerar um colapso no sistema de saúde. Todos nós sabemos que a melhor medida que se tem hoje para evitar o alastramento do vírus é o isolamento social. Nos seus discursos Teich deixa a entender que o isolamento social vai começar a ser gradualmente suspenso aqui no Brasil. Isso é preocupante, pois ainda o pico da pandemia não foi alcançado. A suspensão do isolamento já vem acontecendo em outros países, só que nestes países a pandemia começou antes e, aparentemente, o pico já passou.

Outro ponto que gostaria de considerar é que, como professora de gestão do trabalho em saúde, defendo que os cargos de gestão pública em saúde deveriam ser ocupados não só por médico, mas também por profissionais com formação em saúde coletiva e em gestão em saúde, como os sanitaristas. O ministro Teich, ainda que tenha estudos em economia da saúde, aparentemente ainda não foi gestor de fato, ou seja, sanitarista com responsabilidade em gestão pública dentro do sistema de saúde. Vamos acompanhar para vermos como será seu desempenho, mas particularmente torço para que consiga fazer um trabalho de forma condizente com as reais necessidades sociais em saúde no contexto da crise sanitária provocada pelo coronavírus.

Preocupa também outra situação: normalmente os ministros têm a possibilidade de nomear seus assessores diretos e no caso de Teich houve uma imposição por parte do governo federal. Assim, temos um militar, o General Pazuello, como auxiliar do ministro e o número dois da saúde no Brasil. Preocupa porque vejo como uma tendência a militarização dentro do governo. Isso já vem ocorrendo em outras áreas, o que dá a impressão de que os militares estão interessados em se apropriar dessa área também.

Pode até ser que dentro das forças armadas tenha um departamento de saúde, mas colocar um general como o segundo nome no escalão do Ministério da Saúde pede no mínimo uma boa reflexão e atenção.

Correio da Cidadania: Quanto aos governos estaduais, o que comenta de suas medidas de modo geral?

Aldira Dominguez: Os governadores e os prefeitos das cidades mais atingidas têm a opinião de manter o isolamento social, porque o impacto dessa pandemia tem sido terrível. Inclusive muitas autoridades estaduais e municipais passaram a ter um enfoque mais pragmático e técnico e deixaram de lado a questão ideológica, coisa que o presidente não quer deixar. Isso é algo é interessante, o próprio Supremo Tribunal Federal autorizou que as decisões e medidas sanitárias mais urgentes podem ser tomadas pelos prefeitos e governadores dos municípios e Estados em benefício do bem comum e da saúde da população, embora isso possa atingir algumas atividades de logística e de infraestrutura que ficam bloqueadas.

Eu vejo também que alguns governadores e prefeitos aproveitaram a pandemia para ponderar seus discursos e falar não somente para seus grupos de eleitores, em um contexto polarização política, mas para o conjunto da comunidade. E vejo que isso tem sido importante para eles, pois ganharam respaldo e popularidade, como aconteceu com os governadores de São Paulo e Rio de Janeiro; eles assumiram uma liderança política na condução da crise sanitária e hoje conseguem dialogar com os mais variados setores políticos e sociais. É positivo para eles e a sociedade.

Correio da Cidadania: O que pensa da quarentena e do comportamento da população brasileira frente a esta recomendação?

Aldira Dominguez: Com certeza, tanto a quarentena para as pessoas infectadas quanto o isolamento social para controle do avanço da pandemia trazem muitas implicações políticas, sociais, econômicas, familiares, dentre outras. Aqui destaco os perigos a que ficam expostas pessoas dependentes e vulneráveis. Cuidados devem ser redobrados por partes das autoridades para que abusos contra crianças, idosos e mulheres sejam evitados durante o período de confinamento. Destaco ainda a importância de se ter um olhar especial sobre aumento no número de casos de crise de ansiedade, síndrome do pânico, depressão e outras doenças mentais advindas do medo introjetado nas pessoas com relação a doenças.

Acho que a adesão ao isolamento social já foi mais forte, hoje percebo que aos poucos as pessoas estão circulando mais nas ruas e as pesquisas têm mostrado isso também. Como o vírus é invisível e o número de casos e mortes tem sido, na minha opinião, amenizado pelas medidas já tomadas, as pessoas parecem desacreditar que o risco de contaminação é real. Em todo caso, compartilho da ideia de que ainda não é a hora de se retornar às atividades – e se necessário for, medidas mais restritivas devem ser tomadas.

Correio da Cidadania: O que prevê sobre o número de casos nos próximos momentos? Podemos já considerar que a subnotificação é imensa?

Aldira Dominguez: Com certeza. Estima-se que só uma décima quinta parte da população está sendo testada. Primeiro porque os testes são muito caros; segundo porque não tem condição de em uma população com duzentos milhões de pessoas todas serem testadas. Em nenhum país tem sido possível o teste em massa.

Em algumas cidades sistemas de drive thru vêm sendo usados para realizar exames em pessoas sintomáticas. Reconheço a importância da medida, mas percebo algumas limitações, como o fato de pessoas sintomáticas e que não tenham carro realizarem o exame.

Correio da Cidadania: O que você imagina que ocorrerá com os sistemas públicos e privados de saúde?

Aldira Dominguez: Acho que podemos ter uma reação positiva da sociedade com relação ao sistema de saúde. Antes da pandemia a assistência em saúde já era considerada como a principal preocupação da população brasileira, segundo pesquisas de opinião. Outro tema importante é o financiamento da saúde, porque a economia brasileira e mundial vai ficar bastante fragilizada e sob pressão, o que cria tensões. Eu vejo também que a empregabilidade dos profissionais de saúde, enfermeiros e médicos vai crescer.

Com relação ao setor privado de saúde, penso que pode vir a perder muitos dos usuários que têm plano privado de saúde. Em alguns casos isso pode levar a uma reorganização do setor privado. Pelo que tenho observado nenhum usuário do setor privado tem tido recusado seus direitos de receber atendimento em um primeiro momento. Claro que os hospitais de referência para tratamento da Covid-19 são os públicos. Em todo caso reconheço que o fato de o novo ministro ter um histórico de vinculação a hospitais privados pode ser algo positivo no sentido de mobilizar recursos para o sistema de saúde em geral.

Correio da Cidadania: Como está a vida dos profissionais da saúde? Estão recebendo as condições adequadas?

Aldira Dominguez: A situação dos profissionais de saúde que estão na linha de frente no tratamento dos infectados é bastante delicada. A falta de Equipamentos de Proteção Individual (EPIs) é bastante comum nos serviços. Já ouvi vários relatos preocupantes de colegas da área da saúde que estão dentro dos hospitais neste momento de pandemia com relação, por exemplo, a reaproveitamento de máscaras, falta de luvas, profissionais se contaminando porque não sabem manusear adequadamente os EPIS; profissionais que estão comprando mantas de proteção com dinheiro do próprio bolso porque a secretaria de saúde não disponibiliza, dentre outros. Porém, para mim, o mais grave e que talvez não esteja sendo considerado neste momento é o adoecimento mental destes profissionais.

Há dilemas éticos bem marcantes neste processo, como decidir quem deve viver ou morrer devido à falta de leitos com respiradores. Ouvi de uma colega que o clima emocional dentro dos hospitais é de muito medo e ansiedade, devido ao despreparo das equipes para receber os casos suspeitos da doença, sem falar na rotina de cuidados que devem ter ao irem para casa, para que não sejam multiplicadores da doença entre os familiares.

Portanto, vejo que se faz necessário um olhar voltado à saúde mental destes profissionais que têm se colocados na linha de frente, para evitar mais adoecimentos e baixas no quadro, já que os servidores com mais de 60 anos e com comorbidade já estão afastados da linha de frente e estão atuando em espaço seguro do vírus.

Correio da Cidadania: É possível prever o fim da pandemia?

Aldira Dominguez: Eu penso que sim. Em três ou quatro meses podemos ter a fase mais crítica já vencida. No entanto, é importante ter claro que o vírus vai continuar existindo e as contaminações também. O ideal, e o que se espera ansiosamente, é a criação de uma vacina para imunização em massa.

As pessoas precisam entender que o isolamento social é uma estratégia para conter a explosão de casos e o colapso do sistema de saúde. É um tempo necessário para que a gestão pública prepare a rede de assistência, aumente o número de leitos, adquira mais respiradores, monte hospitais de campanha, compre mais equipamentos de proteção individual, recrute mais profissionais para a linha de frente etc.

O fim do isolamento social não significa o fim do vírus, mas um sinal de que o sistema de saúde já tem condição de atender e dar respostas favoráveis a todos os contaminados. Sem o dilema ético de decidir quem morre ou quem vive.

Correio da Cidadania: Como especialista em gestão e professora, você destacaria um papel das Universidades no combate à pandemia?

Aldira Dominguez: Eu, como pesquisadora e professora universitária, vejo que em meio à crise sanitária em que estamos inseridos devido a COVID-19 a universidade conseguiu se legitimar e se consolidar enquanto órgão de referência em pesquisa e inovação tecnológica. Sofrendo com cortes no orçamento e em pesquisa há mais de cinco anos, fomos capazes, mesmo com recursos escassos, de responder de forma responsável e consistente às demandas da sociedade. A universidade onde trabalho publicou um edital para o desenvolvimento de pesquisa sobre a COVID-19 e em uma semana mais de 100 propostas foram apresentadas por pesquisadores das mais diversas áreas do conhecimento dentro da universidade. Uma capacidade de resposta impressionante.

Temos pesquisadores realizando estudos para a produção de máscaras com nanopartículas, pesquisadores produzindo respiradores, aparelhos para desinfecção de equipamentos, tecnologias leves, como a confecção de materiais educativos e informativos dentre outros. Essa pandemia tem evidenciado para as universidades a necessidade em fortalecer as ações de pesquisa e extensão para enfrentar crises tão graves como a atual.

Antes da pandemia existia uma opinião crítica com relação à ciência que afetou o investimento nas universidades. Isso tinha relação com as restrições orçamentárias, mas também uma concepção irracional e anti-intelectual de algumas pessoas do governo e da sociedade. As universidades eram tidas como oposicionistas aos governos de direita radical e isso determinou que muitos programas de pesquisa fossem atingidos com cortes de bolsas de pesquisa e orçamento restrito.

Curiosamente, disciplinas das ciências naturais, especificamente de biologia evolutiva, foram também atingidas, porque o que passou a predominar dentro do governo foi uma posição quase teocrática da sociedade, excessivamente religiosa, de que não deveríamos ser em um Estado laico e republicano.

Em termos globais existem cooperações internacionais em termo de ciência e inovação tecnológica para encontrar respostas, o mais rápido possível, especialmente em termos de produção de vacina. No Brasil, a Fiocruz, além de atender o próprio Brasil, dialoga com outros países da América Latina para intercâmbio de experiências e até transferência de tecnologia, o que é muito importante. Assim, a ciência e a universidade ganham apoio e simpatia popular no processo de divulgação de conhecimento.

Correio da Cidadania: Considerando o ambiente de origem do vírus, é preciso repensar questões mais amplas, como nossos modos de produção e consumo?

Aldira Dominguez: A destruição da natureza e o uso abusivo dos recursos naturais não podem ser esquecidos. Há uma certa arrogância dos seres humanos em relação ao planeta e isso precisa de mudanças. As últimas pandemias surgiram na China e se você for observar a questão da poluição provocada pelo crescimento econômico do país é seríssima para a saúde da população. Além de problemas como hábitos alimentares e higiene que precisam ser verificados.

Aqui no Brasil eventos semelhantes estão acontecendo em relação à degradação do meio ambiente como a destruição dos biomas e quem sabe no futuro isso possa gerar doenças. A gripe espanhola que surgiu nos Estados Unidos foi parecida: o vírus surgiu em fazendas que criavam porcos; depois, o vírus sofreu mutação e passou a afetar os seres humanos; era a época da primeira guerra mundial e o vírus foi levado por soldados para a Europa, provocando uma tragédia em nível mundial.

Eu penso que a emergência climática e o que estamos fazendo com o meio ambiente atingem também as condições de saúde da população. Tomara que a gente entenda o aviso de que o planeta está chegando a seu limite e precisamos modificar e moderar nossos estilos de consumo e atitudes, a fim de avançar em uma sociedade um pouco mais justa e sustentável.

Eu defendo a tese de que deveriam ser considerados países desenvolvidos os capazes de recuperar e preservar seus recursos naturais. Hoje são considerados desenvolvidos os países cuja população tem maior potencial de consumo, só que já sabemos que esse modelo não se sustenta mais, os recursos naturais existentes no planeta são limitados e estão cada vez mais escassos. Sem falar que quanto mais somos incentivados a consumir para promover o crescimento econômico, mais destruímos o planeta, mais adoecemos e eventos como este de pandemia podem se repetir.

Gabriel Brito é jornalista e editor do Correio da Cidadania.

 

O corona vírus segue seu alastramento pela população e o Brasil já se firma como um dos países com maior número de mortes. Sem dúvidas, o descalabro político tocado pelo presidente da República e sua conduta anticientífica potencializaram o problema. Não bastasse a demissão de Luiz Henrique Mandetta sem nenhuma razão técnica, o governo mergulhou de vez em crise a partir da saída de Sergio Moro do Ministério da Justiça. No meio disso, uma população com dificuldades de entender as recomendações médicas. É sobre todo este perigoso quadro que o Correio entrevistou Aldira Dominguez, especialista em gestão da saúde.

“O que eu percebo é que o presidente se apossou de um discurso um pouco mais economicista, o que não é totalmente negativo, pois as pessoas realmente precisam trabalhar, mas o presidente passou a desdenhar das recomendações dos órgãos internacionais, passou a fazer chacota de uma doença que já matou mais de seis mil pessoas no Brasil e quase 300 mil no mundo. Eu acho que falta seriedade, responsabilidade e equilíbrio do presidente neste contexto”.

Além de comentar as dificuldades dos profissionais de saúde, nem sempre com toda a estrutura material necessária à própria preservação, Aldira, que é professora do curso de Saúde Coletiva da Faculdade de Ceilândia da Universidade de Brasília, lamenta que a conduta da população, menos rigorosa do que semanas atrás. Apesar dos números, a entrevistada diz que poderiam ser ainda maiores não fossem as medidas executadas e que devemos nos preparar para mais alguns meses de quarentena.

“As pessoas precisam entender que o isolamento social é uma estratégia para conter a explosão de casos e o colapso do sistema de saúde. É um tempo necessário para que a gestão pública prepare a rede de assistência, aumente o número de leitos, adquira mais respiradores, monte hospitais de campanha, compre mais equipamentos de proteção individual, recrute mais profissionais para a linha de frente etc”.

Sem deixar de reconhecer a necessidade econômica, por sinal imposta ao novo ministro da saúde em sua atuação, Aldira Dominguez destaca que a pandemia exige a revisão de diversos hábitos de produção e consumo, que tem relação direta com a relação do ser humano com a natureza e o aparecimento do vírus. Como dado positivo, afirma que as universidades e o sistema público de saúde voltaram a se legitimar ao público como garantidores de bem estar e capacidade de resposta a problemas como este.

“A universidade conseguiu se consolidar enquanto órgão de referência em pesquisa e inovação tecnológica. Sofrendo com cortes no orçamento e em pesquisa há mais de cinco anos, fomos capazes, mesmo com recursos escassos, de responder de forma responsável e consistente às demandas da sociedade”.

A entrevista completa com Aldira Dominguez pode ser lida a seguir.

Correio da Cidadania: Em primeiro lugar, como analisa a saída de Luiz Henrique Mandetta do Ministério da Saúde em meio ao ápice do coronavírus no Brasil?

Aldira Dominguez: Eu vejo que no curto prazo a resposta do sistema de saúde brasileiro no combate ao coronavírus tem sido razoável e satisfatória, e muito disso se deve à gestão do ministro Mandetta e ao compromisso assumido por governadores e prefeitos. Se compararmos a situação do Brasil com a de outros países que retardaram a adoção do isolamento social preconizado pelos organismos internacionais, como a OPS/OMS, a situação por aqui, apesar das perdas e baixas, ainda é mais controlada com relação ao número de casos e mortes.

Lastimavelmente, interesses econômicos e talvez políticos estão se sobressaindo sobre os interesses na saúde e vida das pessoas. Eu lamentei muito a exoneração do ministro, mas acho que o legado deixado por ele é respeitável e tem impacto direto sobre o controle que estamos tendo na propagação da pandemia dentro do país.

Correio da Cidadania: O que comenta de sua gestão à frente do Ministério, inclusive antes da pandemia?

Aldira Dominguez: Eu como profissional da saúde sempre o achei um ministro centrado e focado. Mesmo com várias desordens no governo ele continuava fazendo seu trabalho. Acho que atuou com responsabilidade e profissionalismo. Ele tem o meu respeito.

Correio da Cidadania: O presidente Jair Bolsonaro sabotou sua atuação diante do corona? Como analisa o governo federal neste contexto?

Aldira Dominguez: O que eu percebo é que o presidente se apossou de um discurso um pouco mais economicista, o que não é totalmente negativo, pois as pessoas realmente precisam trabalhar, mas o presidente passou a desdenhar das recomendações dos órgãos internacionais, passou a fazer chacota de uma doença que já matou mais de seis mil pessoas no Brasil e quase 300 mil no mundo. Eu acho que falta seriedade, responsabilidade e equilíbrio do presidente neste contexto. A situação é muito preocupante.

Correio da Cidadania: Em relação ao novo ministro, como avalia seu início de gestão e primeiras declarações?

Aldira Dominguez: O Ministro Teich a meu ver tem um grande desafio neste momento, que é promover o relaxamento do distanciamento social para atender a visão economicista do presidente da República sem gerar um colapso no sistema de saúde. Todos nós sabemos que a melhor medida que se tem hoje para evitar o alastramento do vírus é o isolamento social. Nos seus discursos Teich deixa a entender que o isolamento social vai começar a ser gradualmente suspenso aqui no Brasil. Isso é preocupante, pois ainda o pico da pandemia não foi alcançado. A suspensão do isolamento já vem acontecendo em outros países, só que nestes países a pandemia começou antes e, aparentemente, o pico já passou.

Outro ponto que gostaria de considerar é que, como professora de gestão do trabalho em saúde, defendo que os cargos de gestão pública em saúde deveriam ser ocupados não só por médico, mas também por profissionais com formação em saúde coletiva e em gestão em saúde, como os sanitaristas. O ministro Teich, ainda que tenha estudos em economia da saúde, aparentemente ainda não foi gestor de fato, ou seja, sanitarista com responsabilidade em gestão pública dentro do sistema de saúde. Vamos acompanhar para vermos como será seu desempenho, mas particularmente torço para que consiga fazer um trabalho de forma condizente com as reais necessidades sociais em saúde no contexto da crise sanitária provocada pelo coronavírus.

Preocupa também outra situação: normalmente os ministros têm a possibilidade de nomear seus assessores diretos e no caso de Teich houve uma imposição por parte do governo federal. Assim, temos um militar, o General Pazuello, como auxiliar do ministro e o número dois da saúde no Brasil. Preocupa porque vejo como uma tendência a militarização dentro do governo. Isso já vem ocorrendo em outras áreas, o que dá a impressão de que os militares estão interessados em se apropriar dessa área também.

Pode até ser que dentro das forças armadas tenha um departamento de saúde, mas colocar um general como o segundo nome no escalão do Ministério da Saúde pede no mínimo uma boa reflexão e atenção.

Correio da Cidadania: Quanto aos governos estaduais, o que comenta de suas medidas de modo geral?

Aldira Dominguez: Os governadores e os prefeitos das cidades mais atingidas têm a opinião de manter o isolamento social, porque o impacto dessa pandemia tem sido terrível. Inclusive muitas autoridades estaduais e municipais passaram a ter um enfoque mais pragmático e técnico e deixaram de lado a questão ideológica, coisa que o presidente não quer deixar. Isso é algo é interessante, o próprio Supremo Tribunal Federal autorizou que as decisões e medidas sanitárias mais urgentes podem ser tomadas pelos prefeitos e governadores dos municípios e Estados em benefício do bem comum e da saúde da população, embora isso possa atingir algumas atividades de logística e de infraestrutura que ficam bloqueadas.

Eu vejo também que alguns governadores e prefeitos aproveitaram a pandemia para ponderar seus discursos e falar não somente para seus grupos de eleitores, em um contexto polarização política, mas para o conjunto da comunidade. E vejo que isso tem sido importante para eles, pois ganharam respaldo e popularidade, como aconteceu com os governadores de São Paulo e Rio de Janeiro; eles assumiram uma liderança política na condução da crise sanitária e hoje conseguem dialogar com os mais variados setores políticos e sociais. É positivo para eles e a sociedade.

Correio da Cidadania: O que pensa da quarentena e do comportamento da população brasileira frente a esta recomendação?

Aldira Dominguez: Com certeza, tanto a quarentena para as pessoas infectadas quanto o isolamento social para controle do avanço da pandemia trazem muitas implicações políticas, sociais, econômicas, familiares, dentre outras. Aqui destaco os perigos a que ficam expostas pessoas dependentes e vulneráveis. Cuidados devem ser redobrados por partes das autoridades para que abusos contra crianças, idosos e mulheres sejam evitados durante o período de confinamento. Destaco ainda a importância de se ter um olhar especial sobre aumento no número de casos de crise de ansiedade, síndrome do pânico, depressão e outras doenças mentais advindas do medo introjetado nas pessoas com relação a doenças.

Acho que a adesão ao isolamento social já foi mais forte, hoje percebo que aos poucos as pessoas estão circulando mais nas ruas e as pesquisas têm mostrado isso também. Como o vírus é invisível e o número de casos e mortes tem sido, na minha opinião, amenizado pelas medidas já tomadas, as pessoas parecem desacreditar que o risco de contaminação é real. Em todo caso, compartilho da ideia de que ainda não é a hora de se retornar às atividades – e se necessário for, medidas mais restritivas devem ser tomadas.

Correio da Cidadania: O que prevê sobre o número de casos nos próximos momentos? Podemos já considerar que a subnotificação é imensa?

Aldira Dominguez: Com certeza. Estima-se que só uma décima quinta parte da população está sendo testada. Primeiro porque os testes são muito caros; segundo porque não tem condição de em uma população com duzentos milhões de pessoas todas serem testadas. Em nenhum país tem sido possível o teste em massa.

Em algumas cidades sistemas de drive thru vêm sendo usados para realizar exames em pessoas sintomáticas. Reconheço a importância da medida, mas percebo algumas limitações, como o fato de pessoas sintomáticas e que não tenham carro realizarem o exame.

Correio da Cidadania: O que você imagina que ocorrerá com os sistemas públicos e privados de saúde?

Aldira Dominguez: Acho que podemos ter uma reação positiva da sociedade com relação ao sistema de saúde. Antes da pandemia a assistência em saúde já era considerada como a principal preocupação da população brasileira, segundo pesquisas de opinião. Outro tema importante é o financiamento da saúde, porque a economia brasileira e mundial vai ficar bastante fragilizada e sob pressão, o que cria tensões. Eu vejo também que a empregabilidade dos profissionais de saúde, enfermeiros e médicos vai crescer.

Com relação ao setor privado de saúde, penso que pode vir a perder muitos dos usuários que têm plano privado de saúde. Em alguns casos isso pode levar a uma reorganização do setor privado. Pelo que tenho observado nenhum usuário do setor privado tem tido recusado seus direitos de receber atendimento em um primeiro momento. Claro que os hospitais de referência para tratamento da Covid-19 são os públicos. Em todo caso reconheço que o fato de o novo ministro ter um histórico de vinculação a hospitais privados pode ser algo positivo no sentido de mobilizar recursos para o sistema de saúde em geral.

Correio da Cidadania: Como está a vida dos profissionais da saúde? Estão recebendo as condições adequadas?

Aldira Dominguez: A situação dos profissionais de saúde que estão na linha de frente no tratamento dos infectados é bastante delicada. A falta de Equipamentos de Proteção Individual (EPIs) é bastante comum nos serviços. Já ouvi vários relatos preocupantes de colegas da área da saúde que estão dentro dos hospitais neste momento de pandemia com relação, por exemplo, a reaproveitamento de máscaras, falta de luvas, profissionais se contaminando porque não sabem manusear adequadamente os EPIS; profissionais que estão comprando mantas de proteção com dinheiro do próprio bolso porque a secretaria de saúde não disponibiliza, dentre outros. Porém, para mim, o mais grave e que talvez não esteja sendo considerado neste momento é o adoecimento mental destes profissionais.

Há dilemas éticos bem marcantes neste processo, como decidir quem deve viver ou morrer devido à falta de leitos com respiradores. Ouvi de uma colega que o clima emocional dentro dos hospitais é de muito medo e ansiedade, devido ao despreparo das equipes para receber os casos suspeitos da doença, sem falar na rotina de cuidados que devem ter ao irem para casa, para que não sejam multiplicadores da doença entre os familiares.

Portanto, vejo que se faz necessário um olhar voltado à saúde mental destes profissionais que têm se colocados na linha de frente, para evitar mais adoecimentos e baixas no quadro, já que os servidores com mais de 60 anos e com comorbidade já estão afastados da linha de frente e estão atuando em espaço seguro do vírus.

Correio da Cidadania: É possível prever o fim da pandemia?

Aldira Dominguez: Eu penso que sim. Em três ou quatro meses podemos ter a fase mais crítica já vencida. No entanto, é importante ter claro que o vírus vai continuar existindo e as contaminações também. O ideal, e o que se espera ansiosamente, é a criação de uma vacina para imunização em massa.

As pessoas precisam entender que o isolamento social é uma estratégia para conter a explosão de casos e o colapso do sistema de saúde. É um tempo necessário para que a gestão pública prepare a rede de assistência, aumente o número de leitos, adquira mais respiradores, monte hospitais de campanha, compre mais equipamentos de proteção individual, recrute mais profissionais para a linha de frente etc.

O fim do isolamento social não significa o fim do vírus, mas um sinal de que o sistema de saúde já tem condição de atender e dar respostas favoráveis a todos os contaminados. Sem o dilema ético de decidir quem morre ou quem vive.

Correio da Cidadania: Como especialista em gestão e professora, você destacaria um papel das Universidades no combate à pandemia?

Aldira Dominguez: Eu, como pesquisadora e professora universitária, vejo que em meio à crise sanitária em que estamos inseridos devido a COVID-19 a universidade conseguiu se legitimar e se consolidar enquanto órgão de referência em pesquisa e inovação tecnológica. Sofrendo com cortes no orçamento e em pesquisa há mais de cinco anos, fomos capazes, mesmo com recursos escassos, de responder de forma responsável e consistente às demandas da sociedade. A universidade onde trabalho publicou um edital para o desenvolvimento de pesquisa sobre a COVID-19 e em uma semana mais de 100 propostas foram apresentadas por pesquisadores das mais diversas áreas do conhecimento dentro da universidade. Uma capacidade de resposta impressionante.

Temos pesquisadores realizando estudos para a produção de máscaras com nanopartículas, pesquisadores produzindo respiradores, aparelhos para desinfecção de equipamentos, tecnologias leves, como a confecção de materiais educativos e informativos dentre outros. Essa pandemia tem evidenciado para as universidades a necessidade em fortalecer as ações de pesquisa e extensão para enfrentar crises tão graves como a atual.

Antes da pandemia existia uma opinião crítica com relação à ciência que afetou o investimento nas universidades. Isso tinha relação com as restrições orçamentárias, mas também uma concepção irracional e anti-intelectual de algumas pessoas do governo e da sociedade. As universidades eram tidas como oposicionistas aos governos de direita radical e isso determinou que muitos programas de pesquisa fossem atingidos com cortes de bolsas de pesquisa e orçamento restrito.

Curiosamente, disciplinas das ciências naturais, especificamente de biologia evolutiva, foram também atingidas, porque o que passou a predominar dentro do governo foi uma posição quase teocrática da sociedade, excessivamente religiosa, de que não deveríamos ser em um Estado laico e republicano.

Em termos globais existem cooperações internacionais em termo de ciência e inovação tecnológica para encontrar respostas, o mais rápido possível, especialmente em termos de produção de vacina. No Brasil, a Fiocruz, além de atender o próprio Brasil, dialoga com outros países da América Latina para intercâmbio de experiências e até transferência de tecnologia, o que é muito importante. Assim, a ciência e a universidade ganham apoio e simpatia popular no processo de divulgação de conhecimento.

Correio da Cidadania: Considerando o ambiente de origem do vírus, é preciso repensar questões mais amplas, como nossos modos de produção e consumo?

Aldira Dominguez: A destruição da natureza e o uso abusivo dos recursos naturais não podem ser esquecidos. Há uma certa arrogância dos seres humanos em relação ao planeta e isso precisa de mudanças. As últimas pandemias surgiram na China e se você for observar a questão da poluição provocada pelo crescimento econômico do país é seríssima para a saúde da população. Além de problemas como hábitos alimentares e higiene que precisam ser verificados.

Aqui no Brasil eventos semelhantes estão acontecendo em relação à degradação do meio ambiente como a destruição dos biomas e quem sabe no futuro isso possa gerar doenças. A gripe espanhola que surgiu nos Estados Unidos foi parecida: o vírus surgiu em fazendas que criavam porcos; depois, o vírus sofreu mutação e passou a afetar os seres humanos; era a época da primeira guerra mundial e o vírus foi levado por soldados para a Europa, provocando uma tragédia em nível mundial.

Eu penso que a emergência climática e o que estamos fazendo com o meio ambiente atingem também as condições de saúde da população. Tomara que a gente entenda o aviso de que o planeta está chegando a seu limite e precisamos modificar e moderar nossos estilos de consumo e atitudes, a fim de avançar em uma sociedade um pouco mais justa e sustentável.

Eu defendo a tese de que deveriam ser considerados países desenvolvidos os capazes de recuperar e preservar seus recursos naturais. Hoje são considerados desenvolvidos os países cuja população tem maior potencial de consumo, só que já sabemos que esse modelo não se sustenta mais, os recursos naturais existentes no planeta são limitados e estão cada vez mais escassos. Sem falar que quanto mais somos incentivados a consumir para promover o crescimento econômico, mais destruímos o planeta, mais adoecemos e eventos como este de pandemia podem se repetir.

Gabriel Brito é jornalista e editor do Correio da Cidadania.

O corona vírus segue seu alastramento pela população e o Brasil já se firma como um dos países com maior número de mortes. Sem dúvidas, o descalabro político tocado pelo presidente da República e sua conduta anticientífica potencializaram o problema. Não bastasse a demissão de Luiz Henrique Mandetta sem nenhuma razão técnica, o governo mergulhou de vez em crise a partir da saída de Sergio Moro do Ministério da Justiça. No meio disso, uma população com dificuldades de entender as recomendações médicas. É sobre todo este perigoso quadro que o Correio entrevistou Aldira Dominguez, especialista em gestão da saúde.

“O que eu percebo é que o presidente se apossou de um discurso um pouco mais economicista, o que não é totalmente negativo, pois as pessoas realmente precisam trabalhar, mas o presidente passou a desdenhar das recomendações dos órgãos internacionais, passou a fazer chacota de uma doença que já matou mais de seis mil pessoas no Brasil e quase 300 mil no mundo. Eu acho que falta seriedade, responsabilidade e equilíbrio do presidente neste contexto”.

Além de comentar as dificuldades dos profissionais de saúde, nem sempre com toda a estrutura material necessária à própria preservação, Aldira, que é professora do curso de Saúde Coletiva da Faculdade de Ceilândia da Universidade de Brasília, lamenta que a conduta da população, menos rigorosa do que semanas atrás. Apesar dos números, a entrevistada diz que poderiam ser ainda maiores não fossem as medidas executadas e que devemos nos preparar para mais alguns meses de quarentena.

“As pessoas precisam entender que o isolamento social é uma estratégia para conter a explosão de casos e o colapso do sistema de saúde. É um tempo necessário para que a gestão pública prepare a rede de assistência, aumente o número de leitos, adquira mais respiradores, monte hospitais de campanha, compre mais equipamentos de proteção individual, recrute mais profissionais para a linha de frente etc”.

Sem deixar de reconhecer a necessidade econômica, por sinal imposta ao novo ministro da saúde em sua atuação, Aldira Dominguez destaca que a pandemia exige a revisão de diversos hábitos de produção e consumo, que tem relação direta com a relação do ser humano com a natureza e o aparecimento do vírus. Como dado positivo, afirma que as universidades e o sistema público de saúde voltaram a se legitimar ao público como garantidores de bem estar e capacidade de resposta a problemas como este.

“A universidade conseguiu se consolidar enquanto órgão de referência em pesquisa e inovação tecnológica. Sofrendo com cortes no orçamento e em pesquisa há mais de cinco anos, fomos capazes, mesmo com recursos escassos, de responder de forma responsável e consistente às demandas da sociedade”.

A entrevista completa com Aldira Dominguez pode ser lida a seguir.

Correio da Cidadania: Em primeiro lugar, como analisa a saída de Luiz Henrique Mandetta do Ministério da Saúde em meio ao ápice do coronavírus no Brasil?

Aldira Dominguez: Eu vejo que no curto prazo a resposta do sistema de saúde brasileiro no combate ao coronavírus tem sido razoável e satisfatória, e muito disso se deve à gestão do ministro Mandetta e ao compromisso assumido por governadores e prefeitos. Se compararmos a situação do Brasil com a de outros países que retardaram a adoção do isolamento social preconizado pelos organismos internacionais, como a OPS/OMS, a situação por aqui, apesar das perdas e baixas, ainda é mais controlada com relação ao número de casos e mortes.

Lastimavelmente, interesses econômicos e talvez políticos estão se sobressaindo sobre os interesses na saúde e vida das pessoas. Eu lamentei muito a exoneração do ministro, mas acho que o legado deixado por ele é respeitável e tem impacto direto sobre o controle que estamos tendo na propagação da pandemia dentro do país.

Correio da Cidadania: O que comenta de sua gestão à frente do Ministério, inclusive antes da pandemia?

Aldira Dominguez: Eu como profissional da saúde sempre o achei um ministro centrado e focado. Mesmo com várias desordens no governo ele continuava fazendo seu trabalho. Acho que atuou com responsabilidade e profissionalismo. Ele tem o meu respeito.

Correio da Cidadania: O presidente Jair Bolsonaro sabotou sua atuação diante do corona? Como analisa o governo federal neste contexto?

Aldira Dominguez: O que eu percebo é que o presidente se apossou de um discurso um pouco mais economicista, o que não é totalmente negativo, pois as pessoas realmente precisam trabalhar, mas o presidente passou a desdenhar das recomendações dos órgãos internacionais, passou a fazer chacota de uma doença que já matou mais de seis mil pessoas no Brasil e quase 300 mil no mundo. Eu acho que falta seriedade, responsabilidade e equilíbrio do presidente neste contexto. A situação é muito preocupante.

Correio da Cidadania: Em relação ao novo ministro, como avalia seu início de gestão e primeiras declarações?

Aldira Dominguez: O Ministro Teich a meu ver tem um grande desafio neste momento, que é promover o relaxamento do distanciamento social para atender a visão economicista do presidente da República sem gerar um colapso no sistema de saúde. Todos nós sabemos que a melhor medida que se tem hoje para evitar o alastramento do vírus é o isolamento social. Nos seus discursos Teich deixa a entender que o isolamento social vai começar a ser gradualmente suspenso aqui no Brasil. Isso é preocupante, pois ainda o pico da pandemia não foi alcançado. A suspensão do isolamento já vem acontecendo em outros países, só que nestes países a pandemia começou antes e, aparentemente, o pico já passou.

Outro ponto que gostaria de considerar é que, como professora de gestão do trabalho em saúde, defendo que os cargos de gestão pública em saúde deveriam ser ocupados não só por médico, mas também por profissionais com formação em saúde coletiva e em gestão em saúde, como os sanitaristas. O ministro Teich, ainda que tenha estudos em economia da saúde, aparentemente ainda não foi gestor de fato, ou seja, sanitarista com responsabilidade em gestão pública dentro do sistema de saúde. Vamos acompanhar para vermos como será seu desempenho, mas particularmente torço para que consiga fazer um trabalho de forma condizente com as reais necessidades sociais em saúde no contexto da crise sanitária provocada pelo coronavírus.

Preocupa também outra situação: normalmente os ministros têm a possibilidade de nomear seus assessores diretos e no caso de Teich houve uma imposição por parte do governo federal. Assim, temos um militar, o General Pazuello, como auxiliar do ministro e o número dois da saúde no Brasil. Preocupa porque vejo como uma tendência a militarização dentro do governo. Isso já vem ocorrendo em outras áreas, o que dá a impressão de que os militares estão interessados em se apropriar dessa área também.

Pode até ser que dentro das forças armadas tenha um departamento de saúde, mas colocar um general como o segundo nome no escalão do Ministério da Saúde pede no mínimo uma boa reflexão e atenção.

Correio da Cidadania: Quanto aos governos estaduais, o que comenta de suas medidas de modo geral?

Aldira Dominguez: Os governadores e os prefeitos das cidades mais atingidas têm a opinião de manter o isolamento social, porque o impacto dessa pandemia tem sido terrível. Inclusive muitas autoridades estaduais e municipais passaram a ter um enfoque mais pragmático e técnico e deixaram de lado a questão ideológica, coisa que o presidente não quer deixar. Isso é algo é interessante, o próprio Supremo Tribunal Federal autorizou que as decisões e medidas sanitárias mais urgentes podem ser tomadas pelos prefeitos e governadores dos municípios e Estados em benefício do bem comum e da saúde da população, embora isso possa atingir algumas atividades de logística e de infraestrutura que ficam bloqueadas.

Eu vejo também que alguns governadores e prefeitos aproveitaram a pandemia para ponderar seus discursos e falar não somente para seus grupos de eleitores, em um contexto polarização política, mas para o conjunto da comunidade. E vejo que isso tem sido importante para eles, pois ganharam respaldo e popularidade, como aconteceu com os governadores de São Paulo e Rio de Janeiro; eles assumiram uma liderança política na condução da crise sanitária e hoje conseguem dialogar com os mais variados setores políticos e sociais. É positivo para eles e a sociedade.

Correio da Cidadania: O que pensa da quarentena e do comportamento da população brasileira frente a esta recomendação?

Aldira Dominguez: Com certeza, tanto a quarentena para as pessoas infectadas quanto o isolamento social para controle do avanço da pandemia trazem muitas implicações políticas, sociais, econômicas, familiares, dentre outras. Aqui destaco os perigos a que ficam expostas pessoas dependentes e vulneráveis. Cuidados devem ser redobrados por partes das autoridades para que abusos contra crianças, idosos e mulheres sejam evitados durante o período de confinamento. Destaco ainda a importância de se ter um olhar especial sobre aumento no número de casos de crise de ansiedade, síndrome do pânico, depressão e outras doenças mentais advindas do medo introjetado nas pessoas com relação a doenças.

Acho que a adesão ao isolamento social já foi mais forte, hoje percebo que aos poucos as pessoas estão circulando mais nas ruas e as pesquisas têm mostrado isso também. Como o vírus é invisível e o número de casos e mortes tem sido, na minha opinião, amenizado pelas medidas já tomadas, as pessoas parecem desacreditar que o risco de contaminação é real. Em todo caso, compartilho da ideia de que ainda não é a hora de se retornar às atividades – e se necessário for, medidas mais restritivas devem ser tomadas.

Correio da Cidadania: O que prevê sobre o número de casos nos próximos momentos? Podemos já considerar que a subnotificação é imensa?

Aldira Dominguez: Com certeza. Estima-se que só uma décima quinta parte da população está sendo testada. Primeiro porque os testes são muito caros; segundo porque não tem condição de em uma população com duzentos milhões de pessoas todas serem testadas. Em nenhum país tem sido possível o teste em massa.

Em algumas cidades sistemas de drive thru vêm sendo usados para realizar exames em pessoas sintomáticas. Reconheço a importância da medida, mas percebo algumas limitações, como o fato de pessoas sintomáticas e que não tenham carro realizarem o exame.

Correio da Cidadania: O que você imagina que ocorrerá com os sistemas públicos e privados de saúde?

Aldira Dominguez: Acho que podemos ter uma reação positiva da sociedade com relação ao sistema de saúde. Antes da pandemia a assistência em saúde já era considerada como a principal preocupação da população brasileira, segundo pesquisas de opinião. Outro tema importante é o financiamento da saúde, porque a economia brasileira e mundial vai ficar bastante fragilizada e sob pressão, o que cria tensões. Eu vejo também que a empregabilidade dos profissionais de saúde, enfermeiros e médicos vai crescer.

Com relação ao setor privado de saúde, penso que pode vir a perder muitos dos usuários que têm plano privado de saúde. Em alguns casos isso pode levar a uma reorganização do setor privado. Pelo que tenho observado nenhum usuário do setor privado tem tido recusado seus direitos de receber atendimento em um primeiro momento. Claro que os hospitais de referência para tratamento da Covid-19 são os públicos. Em todo caso reconheço que o fato de o novo ministro ter um histórico de vinculação a hospitais privados pode ser algo positivo no sentido de mobilizar recursos para o sistema de saúde em geral.

Correio da Cidadania: Como está a vida dos profissionais da saúde? Estão recebendo as condições adequadas?

Aldira Dominguez: A situação dos profissionais de saúde que estão na linha de frente no tratamento dos infectados é bastante delicada. A falta de Equipamentos de Proteção Individual (EPIs) é bastante comum nos serviços. Já ouvi vários relatos preocupantes de colegas da área da saúde que estão dentro dos hospitais neste momento de pandemia com relação, por exemplo, a reaproveitamento de máscaras, falta de luvas, profissionais se contaminando porque não sabem manusear adequadamente os EPIS; profissionais que estão comprando mantas de proteção com dinheiro do próprio bolso porque a secretaria de saúde não disponibiliza, dentre outros. Porém, para mim, o mais grave e que talvez não esteja sendo considerado neste momento é o adoecimento mental destes profissionais.

Há dilemas éticos bem marcantes neste processo, como decidir quem deve viver ou morrer devido à falta de leitos com respiradores. Ouvi de uma colega que o clima emocional dentro dos hospitais é de muito medo e ansiedade, devido ao despreparo das equipes para receber os casos suspeitos da doença, sem falar na rotina de cuidados que devem ter ao irem para casa, para que não sejam multiplicadores da doença entre os familiares.

Portanto, vejo que se faz necessário um olhar voltado à saúde mental destes profissionais que têm se colocados na linha de frente, para evitar mais adoecimentos e baixas no quadro, já que os servidores com mais de 60 anos e com comorbidade já estão afastados da linha de frente e estão atuando em espaço seguro do vírus.

Correio da Cidadania: É possível prever o fim da pandemia?

Aldira Dominguez: Eu penso que sim. Em três ou quatro meses podemos ter a fase mais crítica já vencida. No entanto, é importante ter claro que o vírus vai continuar existindo e as contaminações também. O ideal, e o que se espera ansiosamente, é a criação de uma vacina para imunização em massa.

As pessoas precisam entender que o isolamento social é uma estratégia para conter a explosão de casos e o colapso do sistema de saúde. É um tempo necessário para que a gestão pública prepare a rede de assistência, aumente o número de leitos, adquira mais respiradores, monte hospitais de campanha, compre mais equipamentos de proteção individual, recrute mais profissionais para a linha de frente etc.

O fim do isolamento social não significa o fim do vírus, mas um sinal de que o sistema de saúde já tem condição de atender e dar respostas favoráveis a todos os contaminados. Sem o dilema ético de decidir quem morre ou quem vive.

Correio da Cidadania: Como especialista em gestão e professora, você destacaria um papel das Universidades no combate à pandemia?

Aldira Dominguez: Eu, como pesquisadora e professora universitária, vejo que em meio à crise sanitária em que estamos inseridos devido a COVID-19 a universidade conseguiu se legitimar e se consolidar enquanto órgão de referência em pesquisa e inovação tecnológica. Sofrendo com cortes no orçamento e em pesquisa há mais de cinco anos, fomos capazes, mesmo com recursos escassos, de responder de forma responsável e consistente às demandas da sociedade. A universidade onde trabalho publicou um edital para o desenvolvimento de pesquisa sobre a COVID-19 e em uma semana mais de 100 propostas foram apresentadas por pesquisadores das mais diversas áreas do conhecimento dentro da universidade. Uma capacidade de resposta impressionante.

Temos pesquisadores realizando estudos para a produção de máscaras com nanopartículas, pesquisadores produzindo respiradores, aparelhos para desinfecção de equipamentos, tecnologias leves, como a confecção de materiais educativos e informativos dentre outros. Essa pandemia tem evidenciado para as universidades a necessidade em fortalecer as ações de pesquisa e extensão para enfrentar crises tão graves como a atual.

Antes da pandemia existia uma opinião crítica com relação à ciência que afetou o investimento nas universidades. Isso tinha relação com as restrições orçamentárias, mas também uma concepção irracional e anti-intelectual de algumas pessoas do governo e da sociedade. As universidades eram tidas como oposicionistas aos governos de direita radical e isso determinou que muitos programas de pesquisa fossem atingidos com cortes de bolsas de pesquisa e orçamento restrito.

Curiosamente, disciplinas das ciências naturais, especificamente de biologia evolutiva, foram também atingidas, porque o que passou a predominar dentro do governo foi uma posição quase teocrática da sociedade, excessivamente religiosa, de que não deveríamos ser em um Estado laico e republicano.

Em termos globais existem cooperações internacionais em termo de ciência e inovação tecnológica para encontrar respostas, o mais rápido possível, especialmente em termos de produção de vacina. No Brasil, a Fiocruz, além de atender o próprio Brasil, dialoga com outros países da América Latina para intercâmbio de experiências e até transferência de tecnologia, o que é muito importante. Assim, a ciência e a universidade ganham apoio e simpatia popular no processo de divulgação de conhecimento.

Correio da Cidadania: Considerando o ambiente de origem do vírus, é preciso repensar questões mais amplas, como nossos modos de produção e consumo?

Aldira Dominguez: A destruição da natureza e o uso abusivo dos recursos naturais não podem ser esquecidos. Há uma certa arrogância dos seres humanos em relação ao planeta e isso precisa de mudanças. As últimas pandemias surgiram na China e se você for observar a questão da poluição provocada pelo crescimento econômico do país é seríssima para a saúde da população. Além de problemas como hábitos alimentares e higiene que precisam ser verificados.

Aqui no Brasil eventos semelhantes estão acontecendo em relação à degradação do meio ambiente como a destruição dos biomas e quem sabe no futuro isso possa gerar doenças. A gripe espanhola que surgiu nos Estados Unidos foi parecida: o vírus surgiu em fazendas que criavam porcos; depois, o vírus sofreu mutação e passou a afetar os seres humanos; era a época da primeira guerra mundial e o vírus foi levado por soldados para a Europa, provocando uma tragédia em nível mundial.

Eu penso que a emergência climática e o que estamos fazendo com o meio ambiente atingem também as condições de saúde da população. Tomara que a gente entenda o aviso de que o planeta está chegando a seu limite e precisamos modificar e moderar nossos estilos de consumo e atitudes, a fim de avançar em uma sociedade um pouco mais justa e sustentável.

Eu defendo a tese de que deveriam ser considerados países desenvolvidos os capazes de recuperar e preservar seus recursos naturais. Hoje são considerados desenvolvidos os países cuja população tem maior potencial de consumo, só que já sabemos que esse modelo não se sustenta mais, os recursos naturais existentes no planeta são limitados e estão cada vez mais escassos. Sem falar que quanto mais somos incentivados a consumir para promover o crescimento econômico, mais destruímos o planeta, mais adoecemos e eventos como este de pandemia podem se repetir.

Gabriel Brito é jornalista e editor do Correio da Cidadania.




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