NEM aprofundará desigualdades
Novo Ensino Médio viola autonomia de escolas e aprofundará desigualdades no RS, dizem especialistas
No ano de 2022, o Rio Grande do Sul passará por mudanças profundas na vida escolar. O prazo para a implantação do Novo Ensino Médio começou a correr e despertou em integrantes da comunidade e estudiosos sentimentos de angústia e expectativa para esta etapa da educação gaúcha e brasileira. A secretária estadual Raquel Teixeira não esconde o entusiasmo pela reforma, a qual define como “uma possibilidade de enriquecimento curricular da escola que o Brasil não tinha”. A animação de Teixeira, entretanto, já não é partilhada por especialistas e pesquisadores do Ensino Médio. Para eles, as alterações curriculares violam a autonomia das escolas, desconsideram particularidades das regiões e aprofundarão a desigualdade no ambiente escolar.
As mudanças prometidas pelo Novo Ensino Médio ainda são desconhecidas do grande público. A alteração principal está na redução da carga horária do currículo obrigatório, que engloba as matérias comuns a todos os estudantes. Essa diminuição tem como compensação a possibilidade do aluno selecionar o restante da grade, em conformidade com seus interesses. A reforma, que segundo a secretária Raquel Teixeira já era estudada desde 2012, foi consolidada na Lei 13.415 de 2017. O texto previa adaptações dos Estados ao modelo proposto nos anos seguintes para que a implantação ocorresse em 2020. No entanto, o processo foi atrasado pela pandemia do coronavírus, jogando o prazo obrigatório para este ano.
De acordo com a secretária, o documento referente à implementação do Novo Ensino Médio no Rio Grande do Sul já foi aprovado pelo Conselho Estadual de Educação. “Aqui no Estado, o Conselho conduziu audiências e 22 instituições se cadastraram oficialmente. Estamos completamente habilitados para começar a reforma”, diz. Neste ano, as escolas públicas e privadas deverão oferecer, do total de 3 mil horas, 1,8 mil de Formação Geral Básica e as demais 1,2 mil horas como itinerário formativos, que serão optativos e ofertados de acordo com cada instituição.
As disciplinas, como conhecemos, não deixarão de existir, mas ganharão uma nova nomenclatura e passarão a ser chamadas de “áreas do conhecimento”, termo que já é conhecido de quem participa do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) e de outros vestibulares. Agora, Artes, Educação Física, Língua Inglesa e Língua Portuguesa estarão englobadas nas Linguagens e suas tecnologias, assim como Biologia, Física e Química formarão as Ciências da Natureza e suas tecnologias. Filosofia, História, Geografia e Sociologia irão compor a Ciências Humanas e Sociais Aplicadas, enquanto a Matemática será Matemática e suas Tecnologias.
Conforme a Secretaria Estadual de Educação (Seduc), no RS, os itinerários formativos que serão implementados já neste ano são projeto de vida, mundo do trabalho, cultura digital e iniciação científica. “É importante salientar que no primeiro ano teremos Formação Geral Básica, e os itinerários. Para quem está no segundo e no terceiro ano permanece como está. Isso quer dizer que quem já está no Ensino Médio vai terminar o período no modelo em que entrou. Em 2023, os alunos que estão hoje no primeiro ano estarão no segundo e aí eles irão escolher os itinerários formativos. Além disso, pela primeira vez, o Ensino Médio terá Educação Profissional e Técnica”, explica.
Raquel Teixeira destacou que o Novo Ensino Médio já é uma realidade em cinco estados do Brasil: Goiás, Pernambuco, Rio de Janeiro, Minas Gerais e São Paulo. “Já há turmas no Brasil que concluíram este modelo em 2020”, cita. “Este modelo, depois de vivido, ninguém quer voltar atrás.”
“Planejamento fracassou”
Se para secretária de educação, o Novo Ensino Médio é uma realidade, para pesquisadores e especialistas no tema a reforma é inadequada e apartada do contexto social. “A disputa pelo controle da formação dos jovens tem se apresentado na história da educação brasileira de diversas formas, sendo a do ensino médio e o acesso ao ensino superior as mais intensas. Nas últimas cinco décadas (desde 1970), diversas propostas e ideologias reformistas foram testadas – sendo que a grande maioria fracassou –, mas, continuamos produzindo descontinuidades de políticas educacionais de Estado e promovendo reformas isoladas do contexto social dos estudantes e, o mais grave, sempre culpabilizando a escola, os professores e os próprios jovens pela falta de engajamento. Eu temo que os jovens sejam enganados novamente. O melhor para os reformistas da educação, não é o melhor para o presente e futuro dos estudantes”, argumentou o professor e doutor Gabriel Grabowski, da Universidade Feevale, especialista em Educação e representante da Associação de Escolas de Formação de Profissionais do Ensino do Rio Grande do Sul no Conselho Estadual de Educação.
Grabowski citou ainda as principais reclamações de quem faz parte do ambiente escolar. “Passados mais de cinco anos de tramitação e preparação, a reforma chegou nas escolas que reclamam: falta de diálogo, preparação das instituições, formação de professores, melhoria das condições de infraestrutura, evasão de estudantes em função da pandemia. Em síntese, o planejamento fracassou, e os estudantes não irão receber o que lhes foi prometido: uma escola melhor, um currículo melhor e sua participação no processo, que inclusive não foram partícipes da construção”, indica.
O doutor em Educação pela UFRGS e pesquisador do Ensino Médio Mateus Saraiva ampliou o discurso de Grabowski ao mencionar a ansiedade de quem não sabe o que irá acontecer nos próximos anos. “É um processo bem extenso que está acontecendo. Eu vejo entre outros pesquisadores um sentimento de angústia muito forte, de não saber como lidar com esta mudança. E sem saber lidar não propriamente com a questão de formação, mas também com o quadro de pessoal para dar conta com qualidade do que está previsto em lei”, coloca.
Já o professor pesquisador Éder da Silva Silveira, integrante do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade de Santa Cruz do Sul, acredita que as escolas permanecerão com os mesmos recursos humanos e de infraestrutura, ainda mais por conta da Emenda Constitucional 95/2016, que instituiu uma nova regulamentação do Teto de Gastos e limitou investimentos importantes na Educação e em outras áreas pelos próximos 20 anos. “Aumentará ainda mais o número de professores ministrando disciplinas sem ter tido uma formação inicial ou continuada que dê o suporte necessário. A reforma do Ensino Médio é dotada de profundos descompassos em relação às políticas de formação e valorização de professores e de financiamento da educação pública”, afirma.
Atualmente, segundo dados da Seduc, o número de professores de Ensino Médio é de 21.728, atuando diretamente em sala de aula. Houve ainda a contratação de 4 mil docentes temporários nos últimos meses. A secretária Raquel Teixeira considera que o atual quadro poderá corresponder às necessidades da reforma. “O Novo Ensino Médio vai acabar com o professor auleiro, que dá uma aula aqui e sai correndo para outra escola. É claro que tem uma implicação de carreira que temos de trabalhar, mas estamos estimulando e buscando contratos de 40 horas, de preferência com dedicação exclusiva”, pondera.
Itinerários formativos
Os itinerários formativos, visto como oportunidades para que os alunos do Ensino Médio saiam preparados para o mercado de trabalho, também são alvo de críticas dos especialistas. Enquanto que para a secretária Raquel Teixeira essas disciplinas servem para “dar uma formação profissional técnica para o estudante sem o desqualificar para a universidade”, os especialistas acreditam que a ideia é simplesmente muito bonita no papel, mas sem funcionalidade alguma.
“Tem uma disciplina que é o projeto de vida. É na verdade uma tentativa de trazer o ‘coaching’ para dentro da escola. É aquela ideia de que ‘você pode, você consegue e tem de estabelecer metas para conseguir. Imagina um professor dizendo isso para um aluno de periferia que tem de trabalhar a tarde inteira e chega cansado na sala de aula”, cita o doutor em Educação Mateus Saraiva. “O problema disso é a materialização não só para o estudante, mas também para o professor. Imagina o docente tendo que passar essa mensagem diante da precariedade em que ele vive.”
O professor Éder Silveira considera impossível a maioria das escolas ter condições de oferecer os itinerários formativos: “O que ficou na lei é que os itinerários formativos serão ofertados de acordo com a disponibilidade e condições dos sistemas de ensino, isto é, nenhuma escola ficou obrigada a oferecer todos os itinerários. Em municípios com poucas escolas de Ensino Médio será ofertado um ou no máximo dois itinerários formativos porque não há recursos humanos e investimento na rede pública estadual para efetivar o discurso da escolha. Há muita ilusão em relação ao conceito de escolha no Novo Ensino Médio”, sustenta.
No final de dezembro de 2021, a Portaria nº 350 da Seduc trouxe a nova organização curricular do Ensino Fundamental e do Ensino Médio da rede pública estadual para este ano. Segundo o documento, Arte, Educação Física, Ensino Religioso, Sociologia e Filosofia só terão apenas um período semanal e serão ministradas em um único ano da última etapa escolar. Além disso, História e Geografia serão ministradas duas vezes por semana no primeiro ano e uma vez por semana nos segundo e terceiro anos.
A secretária Raquel Teixeira afirma que a redução está amparada na lei federal e gera estranheza por causa da nomenclatura: “Se você olhar, Educação Física no primeiro ano tem uma 1 hora. No segundo ano aparece zero e no terceiro também zero. Não é que não vai ter aula, mas é que agora a disciplina consta nos componentes curriculares por área. A nomenclatura mudou e essa flexibilidade dá um conceito novo”, explica.
O professor Gabriel Grabowski considera que a portaria apresenta problemas de conteúdo e método. “No conteúdo reduz carga horária das Ciências Humanas (Geografia, Filosofia, Sociologia, História, Artes, Educação Física, etc) e das Ciências da Natureza (Biologia, Química e Física). A pandemia demonstrou que estas áreas são imprescindíveis atualmente. Na educação do século XXI precisamos reformar a formação humana, a educação, a ética, a Psicologia e as Ciências da Natureza. A crise ambiental e climática estão dadas. O vírus da covid-19 veio da destruição do meio natural. Já no método é a imposição feita no último dia do ano, pegando escolas de surpresa, afetando o planejamento deste ano”, afirma. “Quem entende do processo escolar é quem está na escola. Reforma sem apoio de professores e estudantes não prosperará.”
RS está abaixo da meta no Ideb
O Rio Grande do Sul ainda precisa evoluir no que diz respeito ao Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb), principalmente quando o assunto é Ensino Médio. Segundo dados de 2019, o Ideb gaúcho neste nível atingiu 4,2, o que representa um crescimento em relação a 2017 quando era 3,7. A nota fica em 4 quando são consideradas apenas as escolas estaduais – o que já representa o maior resultado dessas escolas no Ideb –, mas aumenta para 6,1 nas privadas.
Criado em 2007, o Ideb reúne, em um só indicador, os resultados de dois conceitos importantes para a qualidade da educação: o fluxo escolar e as médias de desempenho nas avaliações. O Ideb é calculado a partir dos dados sobre aprovação escolar, obtidos no Censo Escolar, e das médias de desempenho no Sistema de Avaliação da Educação Básica (Saeb), aplicado a cada dois anos.