Nibiru está próximo
"Minhas jornadas de trabalho são tão esgotantes que, por esses dias, com um café em mãos, me peguei a esboçar um sorriso ao ler um anuncio em que se afirmava "Nibiru está próximo". Ler que este corpo celeste sem calor e luz próprios, o planeta Nibiru, está chegando e que um dia, sabe-se lá quando, vai entrar na nossa atmosfera, e arrebentar com tudo, foi a melhor notícia daquele dia. O único problema é a espera: afinal, a entrada de Nibiru no nosso sistema solar, estaria afetando a nossa gravidade e também os eventos na Terra, e segundo alguns, interferindo na capacidade cognitiva de uma parte da população.
Há uns 4 bilhões de anos, antes de inventarem as famílias perfeitas que comem em lanchonetes e vão para casa dormir e ficar doentes, um planeta chamado Theia se chocou com a Terra. Era ali o momento certo para tudo ter acabado. Poderíamos ter evitado milhares de queimados vivos pela Inquisição, as milhões de mortes pela Gripe Espanhola, os Progrons, os Campos de concentração, as chacinas nas periferias, o genocídio indígena, e claro, o nascimento de uma praga como os Bolsonaro. Mas sabe-la lá porque, Deus olhou e disse "Vocês vão prosseguir". E hoje, após tudo, existem os Bolsonaro.
Uns 25 anos atrás, em um fanzine, eu publiquei um manifesto em prol da bomba. Não que eu seja, por obvio, um belicista em defesa de uma Guerra atômica, mas defendo que parem de nos coagir, amedrontar, ameaçar, intimidar. Há um limite para as vezes que podemos ser esbofeteados pela realidade. Todos os dias, somos ameaçados: são as reformas da previdência e do funcionalismo, as leis impopulares que o Congresso Nacional, na mão da Direita, vota sem dó e nem piedade; é o eleitorado estúpido que nos torna refens de uma estrutura cada vez mais agressiva e claustrofóbica.
Talvez você não saiba, mas estamos vivenciando a Sexta extinção em massa. Em uma delas, um evento dramático, os dinossauros e quase todas as vidas do planeta foram extintas em menos de uma década. Restaram vírus e bactérias, pequenos repteis, insetos e claro, mamíferos. Um meteoro entrou na nossa atmosfera, se partiu em dois e colidiu com o planeta. Em seguida, ondas de impacto, terremotos, maremotos e grandes crateras se abriram. Em apenas 30 dias, metade dos dinossauros já haviam morrido. E eles, com certeza, não mereciam isto mais do que nós.
Estamos trabalhando demais, e para suportar as jornadas de trabalho, exaustivas, massivas, estamos nos tornando dependentes de tudo o que sistema Capitalista cria. Neste ponto, não estou falando de celulares, aplicativos, engenhocas que nos induzem à idiotia e ao cretinismo. Falo de café. Muito café. Segundo a OMS, hoje a cafeína é a droga mais consumida no mundo e o seu consumo está fora de controle, nos fazendo dormir menos, nos tornando mais agressivos, agitados e claro, atentos para poder continuar produzindo. Aliás, meu caro Watson: estamos produzindo para quem?
Para me manter ativo e continuar agindo como um Homo Erectus a peregrinar, mundo afora, atrás de dinheiro, todos os dias, eu me encho de café. Mas há mais coisas que podem nos manter insistindo: tranquilizantes, alcool, e uma gama de moderadores de humor. Há quem precise de cocaína para sorrir. E há quem precise de redes sociais para ostentar toda aquela positividade tóxica que me irrita. Na verdade, em verdade vos digo, eu nem sei o que mais me irrita: crises de choro e súplicas por ajuda iminente, o vitimismo escrachado, me irritam, mas positividade tóxica me irrita muito mais. Esta gente gostaria de ser eminente em algo, mas suplica por auxílio iminente por todo o tempo. Esta é a verdade. Gente sintética e feliz me irrita. Tudo isto me irrita.
Por isto, meu comercial favorito de TV nunca foi gravado: seria o de uma família feliz, com cabelo lambido, se entupindo no MacDonald's e com muito colesterol, sódio, açucar e xapore de glucose empilhados, e a mensagem "Eu odeio muito tudo isto". Que se foda: eu não vou no Mac Donald's e nunca tive uma família feliz ao estilo das propagandas de margarina. E se depender do Capitalismo, eu, que não sou detentor de Capital, mas de força de trabalho, nunca terei nada.
Mas hoje, quinta-feira, 1º de junho, Nibiru não vai chegar. Esta é a pior das notícias. Como dizia um amigo meu, professor da Rede municipal de Rio Grande, "trabalhar na rede municipal gera tanto desgosto, que a imaginação chega a ser um alívio". É mais ou menos por aí: no meio de tantas notícias ruins, de tanto sofrimento que o Congresso Nacional, a Assembleia Legislativa ou a Câmara de vereadores de Rio Grande geram, diante dos horrores e horrores que Eduardo Leite e Fabio Branco nos causam, é preciso fechar os olhos e pensar em alívio imediato, como uma colisão com o Planeta Teia, o choque de um Meteorito em Yucatan ou a Bomba do atentado terrorista de Iroshima, quando os americanos, os heróis de sempre dos filmes, incineraram, sem dó e nem piedade, 100 mil pessoas no maior forno da História.
O suplício contemporâneo não é mais aquele da Guerra Fria quando a gente ia dormir com o medo de uma Bomba atômica. Havia esperança em um mundo melhor e menos desgostoso nos anos 1980. Os artistas como eu, esperavam muito daquele mundo, porque nutríamos as esperanças da geração anterior, a dos nossos pais, a do Pós Guerra, e que considerava a paz uma obrigação racional. Os horrores da Segunda Guerra Mundial mostraram que deveria, em tese, haver um chamamento à razão, à ciência, e um limite à crueldade. Daí, a forca de Nuremberg, tribunal na Alemanha, que, se não enforcou todos que deveriam ter sido enforcados (como Henry Truman e o Filinto Muller), ao menos mandou para bem longe da gente, alguns dos indivíduos mais crueis da História.
O suplício atual é mais cruel: eles não querem mais nos matar com uma Bomba atômica e até lá nos manter em cativeiro, sob medo. Agora querem nos matar lentamente, esgotando cada sopro de vida que há em cada um de nós. Todos os dias, de maneira invisivel, a vida vai se esvaindo como se esvai carbono, vapor de água e Vitamina C. São as jornadas de trabalho, o aumento do tempo de contribuição, as reformas que tornam o sistema sempre mais violento para que a gente produza e consuma, e consuma e produza e morra para abrir uma vaga na linha de montagem. Nenhuma violência é mais brutal do que a violência econômica que permite que haja exploração, sede e fome. E a sede e a fome não são negociáveis porque são contra a Espécie.
Os ricos tornam-se cada vez mais ricos, e os pobres, miseráveis, e no retorno para casa, ninguém mais vive: apenas nos desligamos em Stand-by para, no outro dia, podermos continuar gerando riqueza para alguém. E entre nós, competindo pelas vagas no serviço escravo no século 21, os trabalhadores se apunhalam para ocupar o lugar tão almejado: ser o aristocrata do operariado, o capataz que açoita o companheiro sem dó e nem piedade. Nada mais do que isto lhes move: segurar o chicote do patrão e nos açoitar, enquanto ele descansa na sombra.
Para tudo isto, não contem comigo. Eu não vim ao mundo para obedecer silenciosamente ao patrão e muito menos, para ser o seu amigo. Eu aceito ser derrotado pela História tal qual Darcy Ribeiro e os trabalhadores das pirâmides que nunca receberam os créditos por carregarem blocos de pedra por quilômetros de deserto. É muito melhor, meu caro Watson, e um dia você irá entender, ser derrotado e morrer dignamente, do que ser cúmplice do genocídio.
E agora, antes de sair para trabalhar, eu vou, obviamente, olhar o céu: Nibiru, chegue de uma vez. Precisamos de você. Eu e meu caro Watson e todos nós.
Fabiano da Costa é professor da rede pública e um trabalhador brutalmente explorado."