Novas creches ou concluir as inacabadas
MEC prioriza construção de novas creches em vez de concluir as inacabadas no RS
Apenas 17% das verbas federais empenhadas ao Estado desde 2019 foram destinadas a municípios onde há escolas infantis com obras inconclusas
22/08/2022 - HUMBERTO TREZZI
Auditoria do TCU quer saber por que o MEC autorizou 2 mil novas escolas, apesar de 3,5 mil obras federais desse tipo inacabadas. André Ávila / Agencia RBS
O Rio Grande do Sul possui 98 creches com construção inacabada desde 2014, mas o Ministério da Educação (MEC) tem priorizado novas obras em vez das antigas. É o que constatou o Grupo de Investigação da RBS (GDI), ao analisar dados do Portal da Transparência do governo federal.
As escolas tiveram a construção interrompida no início do governo Dilma Rousseff (2011-2016) por desacertos entre a União e as empreiteiras, que reclamavam de falta de repasses financeiros. Desde então, não foram retomadas. A prioridade, tanto na gestão Michel Temer (2016-2018) quanto na de Jair Bolsonaro, foi para repasses de dinheiro para novas construções.
É um fenômeno nacional, tanto que o Tribunal de Contas da União (TCU) determinou uma auditoria para esclarecer por que o MEC autorizou 2 mil novas escolas, a maioria infantis, apesar de 3,5 mil obras federais desse tipo estarem inacabadas. A investigação foi determinada em abril e abrange o Rio Grande do Sul.
Essas obras receberam nos últimos 10 anos recursos do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE), ligado ao MEC, mas não foram finalizadas. É que as construtoras abandonaram os projetos — em grande parte, porque as verbas demoraram a chegar e não havia como pagar os operários.
A existência desses 98 esqueletos de obras do FNDE (creches, na maioria) em território gaúcho foi abordada em reportagem do GDI publicada em 24 de junho. Um novo levantamento — feito pela reportagem junto ao Portal da Transparência do governo federal — mostra que o MEC, desde o início do governo Bolsonaro (em 2019), fez 321 empenhos para custear construção de creches no Rio Grande do Sul.
O GDI analisou os empenhos para cidades gaúchas programados entre janeiro de 2019 e maio de 2022. Verificou que uma minoria do dinheiro (17%) foi reservada a municípios que possuem creches inacabadas — algo que os auditores do TCU querem entender, já que gostariam de ver as obras finalizadas.
Foram 55 empenhos nesses municípios com escolas inconclusas e, não necessariamente, para concluí-las. Ao contrário. A prioridade é para novas obras, indicam os processos administrativos listados pelo FNDE.
Em 2019, dos 118 empenhos de verbas para creches no RS, apenas 28 são em cidades com listas de escolas infantis inacabadas. No ano seguinte, de 73 empenhos para o território gaúcho, nove foram para municípios com creches inconclusas. Já em 2021, de 77 empenhos, 12 foram para municípios com escolas infantis paralisadas. Neste ano, até maio, de 53 empenhos, apenas seis são para cidades com creches inacabadas.
Obras paralisadas no governo Dilma não foram finalizadas pelos sucessores
Esse não é um problema nascido no atual governo. As creches começaram na gestão da ex-presidente Dilma Rousseff e tiveram a construção paralisada ainda no governo dela, que não retomou a maioria. Vieram os governos Michel Temer e Jair Bolsonaro, e elas tampouco foram concluídas — inclusive porque algumas tinham tecnologia inovadora e a empresa detentora do know-how abandonou as construções. Ou seja, passaram-se três presidentes e elas continuam inacabadas.
Quando as construções começaram a ser paralisadas, por volta de 2014, uma audiência do Congresso Nacional intermediada pelo então deputado federal gaúcho Luis Carlos Heinze (do PP, hoje senador) tentou conciliação entre o FNDE, as prefeituras e as empresas que abandonaram as obras. As reuniões também contaram com participação do Judiciário Federal.
Diversos encontros aconteceram durante dois anos. Deles saiu diretriz no FNDE autorizando substituição da tecnologia de fibra de vidro nas paredes das creches por alvenaria convencional. Conforme a Federação das Associações de Municípios-RS (Famurs), isso resultou na finalização de 160 creches. Mas ainda restam 98 obras inacabadas no RS, na maioria escolas infantis.
Já no governo Temer, o fluxo de verbas para creches migrou das abandonadas para novas. Tendência que continuou na gestão atual, conforme indicam os arquivos do FNDE.
Deterioração torna difícil concluir escolas inacabadas
Dois fenômenos podem explicar essa preferência por obras novas e por não concluir as inacabadas. Um deles é que a maioria das obras abandonadas está em tal estado de deterioração que se torna inviável retomar a construção. O poder público estaria até poupando dinheiro ao não investir nesses locais.
A outra hipótese para priorizar novas escolas é que os critérios sejam políticos. Uma creche em um local que era prioridade num governo pode não ser mais do ponto de vista da gestão que veio depois.
Em Terra de Areia (Litoral Norte), por exemplo, o governo federal preferiu empenhar verba para uma escola nova e não investir na inacabada, situada no Parque Aliança. Isso porque ela foi construída com uma metodologia inovadora, com fibra de vidro no lugar dos tijolos, tecnologia que não foi substituída após o abandono da obra.
A prefeitura, então, tentou conseguir uma escola nova. O FNDE empenhou R$ 2,4 milhões em 2020 para erguer uma nova creche. O projeto acabou cancelado em 2021, sem maiores explicações, diz o prefeito do município, Aloísio Teixeira (MDB).
— Ficamos sem a escola antiga, abandonada. E sem a nova. Perdemos a esperança de conseguir recursos no FNDE para a construção de creches, pois a burocracia é imensa. Não cumprem os cronogramas de pagamento conforme andamento das obras. Com isso, as empresas abandonam e o município tem de fazer novo processo licitatório. É um ciclo que se repete. Estamos viabilizando recursos próprios para a construção da creche — desabafa.
Em Santa Maria existem cinco escolas inacabadas. Em 2019 e 2020, o governo federal fez dois empenhos para uma escola e uma quadra poliesportiva, novas. Não são as obras paralisadas, para as quais o FNDE solicitou algumas providências que a prefeitura teve de tomar, como novas licitações e troca de metodologia construtiva inovadora pela convencional (de alvenaria).
— Tivemos também casos de fraude, casos em que nenhuma construtora quis assumir a obra, casos de abandono após contrato. Vários problemas. Esclarecemos tudo com o governo federal e aguardamos repasses para, pelo menos, 50% de duas escolas inacabadas. Os valores estão defasados, e virão sem reajuste. Teremos de fazer investimento próprio, como ocorre com uma quinta obra no momento. Estamos com três em andamento — esclarece o secretário adjunto de Educação em Santa Maria, Márcio Carvalho.
Em Passo Fundo, uma creche no Parque do Sol está inacabada desde 2014. Desde então, o FNDE fez dois repasses, num total de R$ 90 mil. Faltam ainda R$ 673 mil para conclusão da obra, informa o secretário municipal de Educação, Adriano Canabarro Teixeira. Dos sete empenhos do FNDE durante o governo atual, só dois são relativos à obra interrompida (Parque do Sol). Os demais são para escolas e creches novas.
FNDE assegura que prioriza obras paradas
Na contramão do levantamento feito pela reportagem em cima de empenhos financeiros para creches, o FNDE afirma que conclui mais obras do que começa. A entidade salienta que, desde 2019, mais de 2,9 mil obras escolares foram concluídas no país (sobretudo creches).
"Aproximadamente, duas obras e meia são concluídas por dia. No mesmo período só foi autorizado o início de cerca de 700 novas obras. Ou seja, para cada quatro obras concluídas, em média, só é iniciada uma", diz, em nota.
A reportagem questionou o FNDE sobre o motivo de os empenhos localizados por GZH, relativos ao Rio Grande do Sul, priorizarem obras novas e não as antigas e quais as verbas efetivamente disponibilizadas. E por que o TCU questionou que 2 mil novas escolas foram iniciadas no país, enquanto 3,5 mil estão inacabadas. Por duas semanas foi repetida a pergunta, sem resposta do FNDE.
Confederação de municípios recomenda análise caso a caso
O presidente da Confederação Nacional de Municípios (CNM), Paulo Ziulkoski, calcula que seja necessário mais de R$ 1,5 bilhão para concluir as obras já iniciadas em todo o Brasil, com destaque para creches. Ele equilibra as razões do abandono entre as prefeituras (pela baixa capacidade institucional de muitos municípios em cumprir as exigências dos termos de compromisso/convênios e a fragilidade de seu suporte técnico) e o governo federal (pelos atrasos nos repasses de verbas, pela burocracia nos critérios exigidos para o processo de repactuação).
— É importante que cada município analise a situação das obras contratadas e sua capacidade orçamentária de investimento. Sem esquecer que, além do custo da obra, o custeio para sua manutenção representa o grande problema enfrentado pelas prefeituras.
Rio Grande do Sul recebe apenas 1,8% das verbas para creches empenhadas pelo MEC
Estados do Norte e do Nordeste concentram a preferência na liberação de recursos
HUMBERTO TREZZI
O GDI pediu à Confederação Nacional de Municípios (CNM) uma análise sobre esses repasses. O levantamento passa pela gestão de três presidentes do país (Dilma, Temer e Bolsonaro) e se baseia nos chamados Restos a Pagar, que correspondem às despesas que foram empenhadas ou liquidadas durante o ano, mas que não chegaram a ser pagas até o final dele. Eles podem ser processados (quando geraram benefício, ainda que parcialmente) ou não processados (quando são apenas promessa).
No tocante ao programa Proinfância, a CNM localizou 535 empenhos de 2012 (governo Dilma) até 2020 (governo Bolsonaro). Desses, apenas 14 foram para o Rio Grande do Sul (2,6% do total). A título de comparação, o Maranhão ficou com 15,3% das verbas empenhadas (82 empenhos).
Mesmo que sejam levantamentos diferentes (o do GDI abrange todos os empenhos, o da CNM só os Restos a Pagar), o padrão em ambos mostra que o Rio Grande do Sul recebe menos verbas, em se tratando de escolas infantis.
Conforme a CNM, há explicações para isso. O Plano Nacional de Educação determina que 50% das 10 milhões de crianças de zero a três anos existentes no país devem ser atendidas por creches. Hoje, só 37% estão matriculadas e o Rio Grande do Sul está bem colocado nesse item, se comparado com Estados do Norte e Nordeste. A taxa de atendimento desse público entre os gaúchos é de 42%, enquanto no Nordeste, por exemplo, é de 26%.
— A demanda no Sul por novas creches é menor. Então é necessária mais construção de escolas infantis para Nordeste e Norte do que para Sul e Sudeste, cujas redes já são consolidadas — pondera o presidente da CNM, Paulo Ziulkoski.
A CNM também fez um levantamento sobre 6,9 mil obras paradas no país desde 2012, das quais 2,6 mil são escolas. Dessas instituições de ensino, 6% ficam na Região Sul, enquanto 54% estão no Nordeste e 25% no Norte. Outro indicativo, ressalta o presidente da CNM, do motivo de o governo federal priorizar verbas para essas regiões. Elas concentram maior necessidade de creches e, também, em paralelo, mais construções abandonadas, por isso necessitam de mais recursos financeiros. A CNM explica que a combinação sobre mais verbas também passa por um pacto com os prefeitos, que podem priorizar creches ou outra demanda.
A Federação das Associações de Municípios do Rio Grande do Sul (Famurs) concorda que o Nordeste é priorizado por ser região mais pobre, mas não apenas isso. Conforme Márcio Biasi, assessor da Famurs na área de educação, a priorização das verbas também atende a critérios políticos.
— O Nordeste tem nove Estados e 24 senadores. O Sul tem três Estados e nove senadores. A influência deles para captar verbas é muito maior, isso é matemático. Eles também têm muito mais deputados e os governantes federais sabem que isso significa votos — resume Biasi.
O assessor da Famurs considera difícil mobilizar o Sul para mudar esse quadro, porque a troca de critérios passaria por necessidade de modificar também a representatividade parlamentar de cada Estado. Algo difícil de ser aprovado no Congresso.
O FNDE não comentou a diferença de distribuição de recursos entre as regiões do país.