O ano da peste

O ano da peste

2020 – o ano da peste

Brasil em Chamas: do Pantanal à Amazônia, a destruição não respeita  fronteiras | Combate Racismo Ambiental

O ano que ter­mina foi o ano da peste. Já em ja­neiro os pri­meiros casos do novo co­ro­na­vírus apa­re­ciam na China, ainda sem causar pre­o­cu­pação, visto que po­deria ficar iso­lado na­quela parte do mundo. Se­guindo a ló­gica do “não é co­migo” o resto do mundo se­guiu tran­quilo e no Brasil até o car­naval, cheio de aglo­me­ração, acon­teceu, apesar de já se saber que o vírus es­ca­para do ori­ente em di­reção à Eu­ropa.

Quando no mês de março os di­versos países do con­ti­nente Eu­ropeu co­me­çaram a re­portar casos do vírus houve uma co­moção geral. Cenas dos hos­pi­tais lo­tados e das cen­tenas de cai­xões cho­caram a po­pu­lação bra­si­leira, que as­sistia a tudo pela te­le­visão sem ima­ginar o que es­tava por vir por aqui, e que seria muito pior. O anúncio das 500 mortes por dia na Itália causou es­tupor, as­sombro. Mas, quando che­gamos a mais de mil aqui no Brasil, já nin­guém mais se im­por­tava.

No mês de abril a Covid-19 faria uma en­trada triunfal no Brasil e na Amé­rica La­tina, pro­vo­cando também cen­tenas de mortes. Es­tados como o Ama­zonas, por exemplo, abriram covas e mais covas para os mortos que não pa­ravam de chegar. No Equador os mortos fi­cavam por dias nas ruas, sem gente para re­co­lher. Foi um ver­da­deiro terror, pois nem os mé­dicos, nem os tra­ba­lha­dores da saúde sa­biam muito bem como lidar com o vírus. Houve muita de­sin­for­mação e medo. Põe a más­cara, tira a más­cara, tudo era muito pouco certo.

Di­ante disso, para pi­orar o que já era o mais puro horror, o go­verno fe­deral de­cidiu travar guerras po­lí­ticas com seus ini­migos e aban­donou a nação, de­mi­tindo dois mi­nis­tros de saúde mé­dicos e con­tra­tando um mi­litar para gerir a crise. O re­sul­tado não po­deria ser outro: mais mortes e uma ab­surda in­com­pe­tência ad­mi­nis­tra­tiva. Sem um plano na­ci­onal de com­bate ao vírus, es­tados e mu­ni­cí­pios foram de­fi­nindo as po­lí­ticas ao longo do ca­minho. No co­meço, op­taram por ouvir a ci­ência, fe­chando co­mércio, es­colas e tudo mais.

Mas, com o passar dos meses, co­me­çaram a ouvir o em­pre­sa­riado que não queria perder os lu­cros e tudo voltou a se abrir, oca­si­o­nando ondas de novos casos. A tal ponto que hoje já es­tamos pró­ximos dos 200 mil mortos. Mortes que po­de­riam ser evi­tadas porque com o passar do tempo os tra­ba­lha­dores da saúde já ti­nham certo saber sobre a do­ença e as formas de pro­teção. Ainda assim, muita gente se foi porque não en­con­trou um res­pi­rador no hos­pital.

O “ano da peste” de­fine também mais um ano de man­dato do atual pre­si­dente, que já havia pro­mo­vido um grande des­monte no pri­meiro ano. Com a guerra po­lí­tica e o ne­ga­ci­o­nismo em re­lação à ci­ência, só con­se­guiu fazer com que a tra­gédia se apro­fun­dasse. Cha­mando a pan­demia de uma gri­pe­zinha ele foi para a te­le­visão re­ceitar re­mé­dios inú­teis, além de gastar hor­rores com­prando es­to­ques dessa me­di­cação que agora mofa nos ar­ma­zéns. Não há nada a fazer com eles. Não há re­médio para pre­venir o vírus. Pre­juízo para a nação, di­vi­dendos para os amigos do Trump.

E assim, entre um es­pe­tá­culo e outro do pre­si­dente, os meses foram se pas­sando, sem que o go­verno fe­deral to­masse a frente no com­bate à pan­demia. Nem teria como, ocu­pado que es­tava em apro­fundar o as­salto ao Es­tado bra­si­leiro. Mer­gu­lhado nas de­nún­cias de cor­rupção en­vol­vendo os fi­lhos e a pró­pria es­posa, o pre­si­dente tratou de criar vá­rias cor­tinas de fu­maça para tirar do foco as fal­ca­truas da fa­mília. E, com isso, foi também for­ta­le­cendo esse grupo que surfa na mesma onda do ne­ga­ci­o­nismo. Ne­gação da do­ença, ne­gação dos cui­dados, ne­gação da va­cina.

No mês de junho, Fa­brício Queiroz, o pivô da fa­mosa “ra­cha­dinha” criada por Flávio Bol­so­naro foi preso, num sítio do ad­vo­gado da fa­mília do pre­si­dente em Ati­baia. A im­prensa tratou o caso de forma muito su­per­fi­cial e fosse outro o pre­si­dente, seria a morte po­lí­tica. Mas, para Bol­so­naro não pegou nada. Ele se­guia vi­si­tando pa­da­rias, sem más­cara, ora di­zendo que tinha se in­fec­tado com o vírus, ora di­zendo que não. Uma pan­to­mima sem fim. Queiroz foi preso, foi solto e até agora o filho nú­mero 1 não res­pondeu pelo crime. Nem ele, nem o pai, que in­ter­veio de ma­neira des­ca­rada na Po­lícia Fe­deral, sem que nada lhe acon­te­cesse.

En­quanto isso, os par­tidos co­me­çaram a es­quentar as ba­te­rias para a eleição geral de no­vembro, que iria eleger pre­feitos e ve­re­a­dores. O vírus se­guia cei­fando vidas, mas os can­di­datos não fi­zeram caso. Houve cam­panha de rua, do mesmo jeito de sempre, só que com más­cara. E também foi o tempo em que os ín­dices de in­fecção vol­taram a crescer. E quando no­vembro chegou, lá foi o povo a aglo­merar mais um pouco nas filas de vo­tação, com o co­rona bem sa­tis­feito.

O re­sul­tado das elei­ções foram os es­pe­rados. Bol­so­naro não elegeu os seus, mas também não foi res­pon­sa­bi­li­zado pela ino­pe­rância na con­dução do com­bate ao co­ro­na­vírus. Os menos con­victos aca­baram vol­tando para o re­duto se­guro dos ve­lhos par­tidos das oli­gar­quias tra­di­ci­o­nais, sem abrir mão do con­ser­va­do­rismo, e vol­tamos a ver PP, DEM e PSDB as­so­mando nos mu­ni­cí­pios. Pra­ti­ca­mente ne­nhuma mu­dança no pen­sa­mento geral da nação, apesar de al­gumas vi­tó­rias pon­tuais de li­de­ranças en­vol­vidas em lutas es­pe­cí­ficas contra o ra­cismo, LGBT ou agro­e­co­logia. As can­di­da­turas de es­querda que pro­pu­nham mu­danças es­tru­tu­rais foram der­ro­tadas e os ga­nhos da es­querda li­beral, ao fim e ao cabo, não ofe­recem nada que efe­ti­va­mente al­tere o sis­tema de forças. Serão es­paços de re­sis­tência e de­núncia, mas pro­va­vel­mente só isso.

No Con­gresso Na­ci­onal dormem mais de 50 pe­didos de im­pe­di­mento do pre­si­dente da nação, por cor­rupção, por im­pro­bi­dade ad­mi­nis­tra­tiva, por des­leixo na gestão da saúde, por in­ca­pa­ci­dade go­ver­na­tiva, enfim, múl­ti­plos mo­tivos. Mas, os de­pu­tados pre­ferem sentar em cima dos pe­didos e ne­go­ciar cargos e emendas mi­li­o­ná­rias. Não há, na classe po­lí­tica bra­si­leira em geral, qual­quer pre­o­cu­pação com a po­pu­lação. Tudo gira em torno de in­te­resses pes­soais. Tanto que agora, ao fim do ano, com o vi­sível cres­ci­mento do con­tágio do co­ro­na­vírus por conta das li­be­ra­ções ge­rais, a casa le­gis­la­tiva nem se toca e segue a vida, muito mais en­vol­vida com a eleição do pre­si­dente da Câ­mara e do Se­nado do que com qual­quer outro tema. Afinal, quem pre­side a Câ­mara de­fine a agenda, e isso é poder.

Vá­rios países do mundo já ini­ciam a va­ci­nação em massa a partir do final esse ano, mas aqui no Brasil o pre­si­dente vai à te­le­visão dizer que não ha­verá va­cina para todos, que ele não vai tomar e que tam­pouco vai obrigar que a po­pu­lação se va­cine, será fa­cul­ta­tivo, como se a saúde pú­blica pu­desse ficar à de­riva, sob o de­sejo in­di­vi­dual de cada bra­si­leiro. O pre­si­dente faz piada com a va­cina chi­nesa e não or­ga­niza uma es­tra­tégia de va­ci­nação. Es­tamos com­ple­ta­mente en­tre­gues ao des­mando e a ino­pe­rância. É um caos pro­gra­mado e bas­tante ade­quado ao sis­tema de poder.

É bom lem­brar que en­quanto as gentes se de­ba­tiam no meio da ab­surda guerra po­lí­tica que se trans­formou a questão da Covid-19 ao longo desse te­ne­broso ano, o go­verno se­guiu des­truindo o país, aca­bando com “tudo isso que tá aí” con­forme o pro­me­tido. Não atuou contra as quei­madas que var­reram a Amazônia, o Pan­tanal e o Cer­rado, sendo co­ni­vente com fa­zen­deiros e mi­ne­ra­dores que aplau­diam o fato de o fogo ter aberto mais es­paço para a ex­plo­ração. Um fogo que pro­va­vel­mente nasceu das mãos dessa mesma gente.

O pre­si­dente não moveu um dedo para parar com a vi­o­lência no campo e nas terras in­dí­genas, pelo con­trário, in­cen­tivou. Abriu as portas para as armas es­tran­geiras, che­gando ao ponto de zerar o im­posto para im­por­tação, mais uma vez ge­rando lu­cros para as em­presas es­tran­geiras. E no fi­nal­zinho do ano ainda re­matou com a pro­posta de des­monte com­pleto da po­lí­tica da saúde mental. Uma volta ao hos­pício e à me­di­ca­li­zação, bem ao gosto da in­dús­tria da morte que são as far­ma­cêu­ticas e os hos­pi­tais pri­vados. Também meteu a mão na verba da edu­cação ga­ran­tindo que ela es­co­asse para mãos pri­vadas. Ou seja, se­guiu cum­prindo as pro­messas feitas aos fa­zen­deiros, ao agro­ne­gócio, às es­colas par­ti­cu­lares, aos par­ceiros es­tran­geiros.

Che­ga­remos ao ano 2021 com a sen­sação de que esse que passou foi um ano per­dido. Mas apenas per­deram os tra­ba­lha­dores. Os mais ricos do mundo fi­caram ainda mais ricos por conta da pan­demia, e a mai­oria das gentes apenas se de­bateu como pode nesse mar de des­caso. A so­bre­vi­vência foi um ato de sorte.

O mais do­lo­roso para nós bra­si­leiros é que o ano que se apro­xima se­guirá sendo um ano de peste. A va­cina tar­dará o quanto o pre­si­dente puder fazer tardar e nós ainda te­remos de amargar mais 360 dias com o que pa­rece ser um bando de gângs­teres dando as cartas e as­sal­tando o Es­tado no má­ximo vapor.

O dra­má­tico de tudo isso é que os tra­ba­lha­dores pas­saram esse ano na mais com­pleta apatia ge­rada pelo medo de perder o em­prego e de morrer pela Covid, o que apro­fundou ainda mais a ex­plo­ração. O au­mento dos preços da ali­men­tação, da luz, da água, da mo­radia foi mo­tivo de apre­ensão, mas não de in­dig­nação. E nem mesmo o apagão no es­tado do Amapá, que chegou a ficar mais de 15 dias sem luz por conta da in­com­pe­tência de uma em­presa pri­vada, pro­vocou pas­se­atas ou ma­ni­fes­ta­ções. Ne­nhuma so­li­da­ri­e­dade, ne­nhuma co­brança. Nada. Pelo con­trário, en­cer­ramos 2020 com 37% dos bra­si­leiros apro­vando um go­verno ge­no­cida.

E nada disso foi capaz de fazer re­agir as Cen­trais Sin­di­cais, ou­trora tão com­ba­tivas, e que pra­ti­ca­mente estão mortas. Tam­pouco houve, ou há, qual­quer ação por parte dos par­tidos de es­querda que deram toda a energia na eleição, sem se­quer car­regar nas tintas contra o go­verno fe­deral. A mai­oria dis­putou os mu­ni­cí­pios com pro­postas lo­cais, sem li­gação com a po­lí­tica na­ci­onal, pen­sando talvez que se não ata­cassem, Bol­so­naro teria chance. In­ge­nui­dade ou má fé? Ainda es­tamos para ver.

2020 foi, enfim, um ano triste de­mais. Per­demos amigos, fa­mi­li­ares, co­nhe­cidos, amigos dos amigos, per­demos uma in­fi­ni­dade de vida e não re­co­bramos a cons­ci­ência. A cons­ci­ência de classe.

En­quanto isso, cer­cado de ca­dá­veres, o pre­si­dente inau­gura ex­po­sição de roupas usadas por ele na posse e usa a verba do go­verno para pro­mover em­presa de eventos do filho mais novo que agora também entra na po­lí­tica pela mão do pai. E pra­ti­ca­mente nin­guém diz um ai. Ao que pa­rece, para esse se­nhor que ocupa a pre­si­dência, tudo é per­mi­tido. Sem li­mites.

Que se acabe logo esse 2020 e que a luz da re­beldia apa­reça para in­cen­diar o mundo. Porque ge­ral­mente é assim mesmo. Uma fa­gulha, uma ín­fima fa­gulha e quando se vê, já está.

Aqui es­tamos, na es­pera.

 

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