Por que é tão difícil ouvir os checadores quando o assunto é desinformação?
Para surpresa de um total de zero pessoa, o relatório final da CPI da Pandemia foi apresentado nesta semana propondo, entre outras coisas, encaminhamentos legislativos e jurídicos para a desinformação no Brasil. O senador Renan Calheiros (MDB-AL) sugeriu até mesmo um conceito para "notícia falsa" e, a partir dele, a aplicação de penas, inclusive de prisão, para quem produz e/ou compartilha "fake news". O relatório dedica mais de 300 páginas ao tema da desinformação. Nada disso significa que estamos mais próximos de uma solução para o problema, já que as propostas apenas deixam evidente a falta de debate sobre o tema.
Quem minimamente acompanhou o noticiário no Brasil nos últimos meses sabe que a comissão formada para avaliar as ações do governo federal ― e a falta delas ― durante a pandemia se tornou, em parte, uma comissão sobre "fake news". E que esse foi um assunto bastante comentado durante os trabalhos da CPI, inclusive com citação a checagens, não apenas da Lupa, mas também de outros checadores do Brasil, para rebater informações falsas ditas por depoentes em muitas sessões. A certa altura, a equipe de Renan Calheiros chegou a "produzir checagens", o que nada mais era do que um trabalho de coleta de informações, típico de assessoria parlamentar, que em nada tem a ver com o rigor, a transparência, a independência e o apartidarismo que aplicamos no fact-checking.
A partir do momento em que tivemos contato com o relatório, nossa equipe de Jornalismo se mobilizou para desdobrarmos o que fosse possível em informação qualificada para quem acompanha a Lupa. Neste trabalho, mostramos que pelo menos três ondas de desinformação sobre a pandemia ficaram de fora do documento final da CPI ― o que nos causou certa curiosidade, já que a comissão tratava justamente desse assunto, não é? Entre elas estão conteúdos falsos sobre hospitais e caixões vazios, dois boatos tipicamente brasileiros envolvendo Covid-19. Também mostramos, em análise publicada pela Folha de S.Paulo, que os depoentes da CPI fizeram mais de 60 declarações falsas em suas falas à comissão. Com essas falas falsas, tentaram justificar ações ou explicar decisões tomadas durante a pandemia. Não funcionou.
É claro que tudo isso mostra o valor da checagem de fatos e o quanto somos referência no que fazemos. Também nos dá a certeza de que nosso trabalho qualifica o debate público e é fundamental em tempos sombrios de captura de narrativas e distorção dos fatos. O que não nos impede de fazer uma leitura crítica e reconhecer que experimentamos também por aqui a sensação de que, neste caso, a checagem está sendo usada mais por conveniência do que por convicção. Caso contrário, o que explica o fato de que checadores, pesquisadores, professores e diversos outros atores que lidam com a desinformação diariamente não foram chamados a debater soluções possíveis para isso e contribuir com os encaminhamentos sugeridos no relatório?
Na quarta-feira (20), publiquei um editorial no site da Lupa dizendo que, ao alijar os checadores dessa discussão, a CPI tinha produzido uma "aberração conceitual" na tentativa de definir "notícia falsa" e que faltou debate com quem se dedica ao tema. Na publicação que fizemos no Instagram, muitos disseram que eu estava sendo corporativista, que seria melhor "descer do pedestal". Entendo as críticas, mas não mudo o que disse: na solução para a desinformação, o caminho é colaborativo e não há espaço para atos de heroísmo, sejam eles de nossa parte, sejam eles da parte de qualquer pessoa que esteja envolvida com o tema ― e aqui incluo, sim, os políticos, e não somente os que fazem parte da CPI da Pandemia.
Não há experiência positiva ― nenhuma ― em países que criaram leis sobre desinformação. Mas há, sim, ameaças e prisões, suspensão de fornecimento de internet e bloqueios injustificados de contas em redes sociais. Caso você não tenha percebido: há episódios de censura e de real cerceamento à liberdade de expressão (e aqui não estou falando dessa "liberdade de expressão" da qual se fala na internet, entendida como dizer qualquer coisa que se pensa. Isso é, na verdade, falta de educação e pode chegar a ser, inclusive, crime).
Não é nosso objetivo monopolizar qualquer discussão sobre desinformação. Não somos os únicos capazes de dar contorno a esse tema e sempre dissemos isso. Mas temos experiência e conhecimento suficientes para contribuir nesse debate ― assim como os têm outros atores da sociedade, e todos devem estar envolvidos. Não existe uma solução única para a desinformação. É preciso olhar para tecnologia, para educação, para conteúdo, para a responsabilidade de cada setor da sociedade. Por enquanto, não é por via jurídica ou projeto de lei. E também não é com canetada no Congresso.
Como disse uma amiga minha: mais uma vez, falta diálogo e humildade em um país onde já falta tanta coisa.
Um abraço, Natália Leal CEO
Agência Lupa
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