O Avesso da Pele
Secretaria de Educação do RS suspende orientação de retirar "O Avesso da Pele" de bibliotecas de escolas na região de Santa Cruz do Sul
Ofício havia sido enviado por coordenadoria regional na sexta, após queixas de diretora
02/3/2024
Em nota enviada à imprensa no final da noite deste sábado (2), a Secretaria de Educação do RS informou que não orientou a retirada do livro O Avesso da Pele de bibliotecas da rede estadual de ensino, e que a 6ª Coordenadoria Regional de Educação, que atende a região de Santa Cruz do Sul, "vai seguir a orientação da secretaria e providenciar que as escolas da região usem adequadamente os livros literários".
Isso significa que está cancelada a orientação enviada na sexta-feira (1º) para que os livros de Jeferson Tenório fossem retirados das bibliotecas e não disponibilizados aos estudantes.
A orientação aconteceu após a diretora Janaína Venzon retirar os exemplares da biblioteca da Escola Estadual de Ensino Médio Ernesto Alves de Oliveira, postura que foi endossada pela coordenadoria regional da região.
"A Secretaria da Educação do Rio Grande do Sul (Seduc) não orientou para que a obra O avesso da pele, de Jeferson Tenório, integrante do Programa Nacional do Livro Didático (PNLD), do Ministério da Educação (MEC), fosse retirada de bibliotecas da rede estadual de ensino. O uso de qualquer livro do PNLD deve ocorrer dentro de um contexto pedagógico, sob orientação e supervisão da equipe pedagógica e dos professores. A 6ª Coordenadoria Regional de Educação vai seguir a orientação da secretaria e providenciar que as escolas da região usem adequadamente os livros literários", diz a nota da Secretaria de Educação.
O caso
Segundo Janaina, cerca de 200 exemplares de O Avesso da Pele chegaram à escola Ernesto Alves em dezembro de 2023, com a finalidade de serem trabalhados em sala de aula. A entrega foi realizada pelo Programa Nacional do Livro e do Material Didático (PNLD), do Ministério da Educação (MEC), que distribui obras didáticas e literárias às escolas públicas, a pedido das próprias instituições.
Ao perceber que algumas páginas de O Avesso da Pele continham palavras que definem órgãos sexuais e se referem a relações íntimas, Janaina Venzon se revoltou e publicou, na sexta-feira (1°), vídeo em que critica o "vocabulário de tão baixo nível" da obra. Na postagem, também pediu que o Ministério da Educação buscasse os exemplares enviados à escola.
Ela disse ter recebido orientação do titular da 6ª Coordenadoria Regional de Educação, Luiz Ricardo Pinho de Moura, para recolher os livros da biblioteca da instituição e os manter sob seus cuidados até que a Secretaria Estadual de Educação (Seduc) se posicionasse.
— Os livros estavam na biblioteca, ainda embalados, porque os professores fariam um trabalho com o livro. Agora, estão em uma sala ao lado da biblioteca que nós temos. Já que meu coordenador pediu para retirar, retiramos — disse Janaina a GZH.
Em entrevista ao portal Gaz, Luiz Ricardo Pinho de Moura confirmou que orientou a retirada do livro das bibliotecas escolares da região até que a Secretaria Estadual de Educação (Seduc) se posicionasse.
— Encaminhamos para as nossas escolas que estes livros fossem deixados sob os poderes da direção, que fossem retirados das bibliotecas escolares, até que se tivesse um posicionamento do que fazer e como gerenciar estes livros — disse o titular da 6ª CRE ao jornal de Santa Cruz do Sul.
A Seduc, contudo, negou que tenha havido qualquer orientação da coordenadoria regional para recolher os livros. "Os livros não foram retirados e não houve nenhuma orientação da Coordenadoria Regional para nenhum recolhimento", respondeu à reportagem de GZH. A pasta também reiterou que a escolha das obras literárias é realizada diretamente pelas equipes gestoras das escolas. Acionado pela reportagem de GZH, Moura disse que não poderia conversar e que o assunto seria tratado pela Seduc.
"A Secretaria Estadual da Educação (Seduc) informa que a escolha das obras literárias é realizada diretamente pelas equipes gestoras das escolas, conforme priorização de faixa etária dos alunos, etapa de ensino, realização de projetos pedagógicos e contextualização prévia do material trabalhado em sala de aula com as turmas", diz a nota da Seduc. A diretora, entretanto, encaminhou à reportagem um ofício assinado por Luiz Ricardo Pinho de Moura em que orienta que a obra seja retirada das bibliotecas.
— Perguntei para as supervisoras se elas fizeram alguma solicitação, e elas disseram que não. E outra coisa, quando o MEC oferece o livro ali no catálogo, as escolas não têm acesso ao interior do livro. Só vemos a capa e um resumo.
Além de vencer o Prêmio Jabuti em 2021 na categoria Romance Literário, O Avesso da Pele foi finalista prêmio Oceanos no mesmo ano, o maior reconhecimento a livros em língua portuguesa.
A diretora reconhece a qualidade da obra, mas não acredita que ela seja adequada para os alunos.
— Nas páginas 29, 30, 31, tem expressões pejorativas. A história é muito bacana, minha questão é o seguinte: eu, Janaina, diretora, trabalhar com essa questão, esse vocabulário, dentro de sala de aula? Já imaginou a polêmica com os pais? Será que isso seria o ideal dentro
de uma escola? Essa foi a minha indignação.
Interpretação "distorcida e descontextualizada", diz Companhia das Letras
Entre as maiores editoras do país e responsável por lançar O Avesso da Pele, a Companhia das Letras manifestou-se mostrando indignação diante do vídeo gravado pela diretora Janaina. Também classificou a situação como ato de censura.
"A retirada de exemplares de um livro, baseada em uma interpretação distorcida e descontextualizada de trechos isolados, é um ato que viola os princípios fundamentais da educação e da democracia, empobrece o debate cultural e mina a capacidade dos estudantes de desenvolverem pensamento crítico e reflexivo. Repudiamos veementemente qualquer ato de censura que limite o acesso dos estudantes a obras literárias sob pretexto de protegê-los de conteúdos considerados inadequados por opiniões pessoais e leituras de trechos fora de contexto", diz a editora em posicionamento publicado nas redes sociais.
"Meu livro não é sobre sexo, é sobre os efeitos do racismo", diz Jeferson Tenório
Expoente da literatura nacional, Tenório, que vivia em Porto Alegre quando O Avesso da Pele foi publicado e premiado, reiterou que o livro se trata de uma obra destinada a refletir sobre o racismo e violência policial, não uma história com caráter sexual.
— Meu livro não é sobre sexo, ou sexualidade, como a diretora sugere, meu livro é sobre os efeitos do racismo na vida das pessoas negras. As palavras, ou cenas de sexo, não estão lá gratuitamente, estão lá por que fazem parte da vida. Não dá para reduzir toda história do livro às palavras que incomodam. O livro conta a história de um professor de literatura que, após uma abordagem policial, em Porto Alegre, é assassinado. A história é narrada pelo filho dele e traz reflexões sobre relações familiares, o racismo, violência policial e educação.
Surpreso com a atitude da diretora e com a repercussão que o caso ganhou, o escritor acredita que O Avesso da Pele é importante para estudantes do Brasil.
— Deveríamos estar preocupados em formar leitores e não censurar livros. O Avesso da Pele traz discussões sobre o letramento racial, uma tema importante justamente para quem está num período de formação.
FONTE:
Deveríamos estar preocupados em formar leitores críticos, não em censurar livros
Obra "O Avesso da Pele", de Jeferson Tenório, chegou a ser retirada de circulação por diretora de escola incomodada com "baixo calão"
03/03/2024 JULIANA BUBLITZ
Deveríamos estar preocupados em formar leitores com pensamento crítico, não em tirar de circulação livros que causam “incômodo”. Incômodo para quem? Jeferson Tenório, reconhecido escritor que por anos viveu no Rio Grande do Sul e foi patrono da Feira do Livro de Porto Alegre, está certo quando diz que O Avesso da Pele, obra premiada e vendida para mais de 10 países, merece respeito.
O texto aborda um tema que deve, sim, ser tratado em sala de aula, sob a orientação dos professores: o racismo estrutural, aquele que vive em nós, mesmo que a gente não se dê conta.
Estou escrevendo tudo isso, provocada por uma história que alçou minha terra natal, Santa Cruz do Sul, às manchetes do final de semana dos principais sites de notícias do país - e que inclusive mereceu uma nota de repúdio da Companhia das Letras, uma das maiores e mais respeitadas editoras do Brasil.
A diretora de uma das principais escolas estaduais da cidade ficou revoltada ao encontrar no livro de Tenório - que integra a lista do Programa Nacional do Livro e do Material Didático desde 2021 - trechos sobre sexo e palavras chulas para definir os órgãos sexuais.
A professora gravou um vídeo expondo a indignação, e as 200 edições da obra (que ela própria havia mandado comprar) acabaram sendo retiradas de circulação por alguns dias - a decisão foi revertida pela Secretaria Estadual de Educação, em um ato de lucidez.
Você pode dar o nome que quiser para isso e até concordar com a opinião da diretora. É seu direito.
Eu chamo de censura.
O livro faz parte da lista de obras nacionais (aprovada por uma banca de educadores, especialistas e mestres em literatura e língua portuguesa junto de outros 530 títulos) para serem trabalhadas em aula por professores - de forma supervisionada - com alunos do Ensino Médio.
Não se trata, nem de longe, de um texto sobre sexualidade, mas, ainda que fosse, com quem e em que ambiente você gostaria que seu filho adolescente conversasse sobre o assunto? Na rua? Ou na escola, com o olhar cuidadoso de um mestre?
Querer proteger os jovens de conteúdos considerados “inadequados” a partir de opiniões pessoais e, muitas vezes, de leituras fora de contexto é um equívoco. A diretoria argumenta, com razão, que alguns pais poderiam reclamar. Não duvido. O tema não é fácil de ser digerido.
Ainda assim, ler O Avesso da Pele é uma oportunidade para discutir racismo e violência. Termos "de baixo calão" não entraram na história de forma gratuita. Eles são parte de uma realidade sobre a qual não devemos "ficar escandalizados", mas tentar compreender para mudar.
FONTE: