O Brasil não merece
O Brasil não merece
"Até cortar os próprios defeitos pode ser perigoso. Nunca se sabe qual é o defeito que sustenta nosso edifício interior", Clarice Lispector
Antonio Carlos de Almeida Castro, o KakayCarlos Humberto/STF
Quando estávamos imaginando ser possível viver o que se convencionou chamar de “novo normal” - algo que não se sabe bem o que é, mas que ensaia a nossa vida de volta -, eis que nos vemos à beira do velho anormal. Ou será que o “novo normal” é essa volta às angústias e aos sobressaltos?
O fato é que o número excessivo de novos casos de Covid no mundo inteiro nos faz voltar a sentir essa estranha sensação de que estamos, novamente, perto de um colapso. E constatamos, de forma triste e desanimadora, que o governo fascista aqui instalado continua a brincar com vida e a promover o culto à morte.
E o país que sofreu com o descaso sarcástico desse genocida, quando do auge da crise sanitária, tem que voltar a viver com a insensatez, com a ignorância e com a arrogância não só no trato com a nova cepa, mas também no enfrentamento da ciência ao expor a vida das crianças.
A fala do Presidente da República sobre a desnecessidade da vacina para criança e adolescentes, brincando com vida, é a representação do que ele significa. É bom que prestemos atenção nesse padrão de comportamento. Ele não desafia a ciência por desafiar, ele fala para um público que tem a cara dele. Nada é por acaso.
Ele elegeu-se Presidente fazendo apologia à tortura, dizia abertamente que o Coronel Ustra era o seu herói; afirmou que preferia ter um filho morto do que ter um filho gay; ridicularizou as mulheres, os quilombolas e os negros. Enfim, todo o show de horror que choca qualquer pessoa minimamente civilizada. E essa foi a postura dele durante a vida toda e foi o que se ressaltou nas eleições passadas.
Ou seja, não se fez uma campanha tentando mostrar um homem com pensamentos humanitários. Não, ressaltaram o monstro que ele era e é. Para os milhões de seguidores dele, ou boa parte, esse é o perfil que deve ser seguido e admirado. E é esse o recado que ele continua passando para tentar se reeleger. É bom ter isso em mente: observar que ele age dentro de uma estratégia muito própria, e não achar que as eleições já estão definidas.
Talvez, o ponto mais forte que ele deliberadamente mentiu, também como tática, foi fixar suas ações no combate à corrupção. Ao dizer que ele e sua família não eram corruptos, ele desdenhou da realidade e construiu uma ponte com o ex-juiz que corrompeu o sistema de justiça. Sem nenhum escrúpulo, sem sequer corar, ele bateu no peito e falou o que as pessoas queriam ouvir.
Criticar a corrupção como mote de campanha, mesmo tendo a corrupção entranhada até como herança familiar. No caso das rachadinhas, podem ter certeza de que eles nem acham que estavam usando indevida e criminosamente o dinheiro público. Nem ao menos fazem a diferença entre o público e o privado. Essa é a essência do grupo que governa o Brasil. E se orgulham disso. São espertos e chegaram ao poder, é o que importa para eles.
O que devemos refletir, até para as próximas eleições, é sobre esse Brasil que ainda é bolsonarista. E quando falo bolsonarista, incluo também o Moro. Eles são da mesma orientação e possuem a mesma origem no que diz respeito à falta de escrúpulos para atingir o poder. E principalmente para o que fazer com o poder.
Parece claro que uma parte considerável dos brasileiros cansou das barbáries, do descaso e da maneira chula e agressiva do Presidente. Que os mais de 600 mil mortos nessa crise, boa parte pela irresponsabilidade e ganância financeira, estão a rondar o nosso dia a dia e a pedir mudança e respeito. Mas é necessário estar atento. Bolsonaro e Moro representam a mesma proposta.
Um levou a Presidência, com a ajuda do outro, e vestiu o figurino do homem simples e que fala diretamente com o povo. Exagerou na idiotice como estratégia por dois motivos: por acreditar que o brasileiro é mesmo idiota e por ser realmente idiota. Não conseguiu depois tirar a máscara pois ela era a realidade.
O outro agora quer ocupar o lugar daquele que ele ajudou a eleger. É a mesma proposta, só muda o figurino. No imaginário popular, só troca a farda pela toga. Nesse ponto, repito, a “conja” estava certa ao dizer que o marido dela, Moro, e Bolsonaro eram a mesma pessoa. Eles se misturam e se merecem, mas o Brasil não merece isso.
Tudo me remete a Pessoa:
“Fiz de mim o que não soube, e o que podia fazer de mim não o fiz. O dominó que vesti era errado. Conheceram-me logo por quem não era e não desmenti, e perdi-me. Quando quis tirar a máscara, estava pegada à cara”.
Antônio Carlos de Almeida Castro, Kakay - Funk do negacionista feminicida
"Estou farto do lirismo comedido, do lirismo bem-comportado... Não quero saber do lirismo que não é libertação." Manuel Bandeira, poética
De repente, a gente volta a sentir um misto de ansiedade e medo. O recrudescimento da covid, a descoberta de mais cepas do vírus e a divulgação de novo surto de infectados em diversos países nos dão uma certa insegurança. Quando começamos a ouvir sobre a hipótese de voltar a fechar restaurantes, bares e museus em países da Europa, nós, inevitavelmente, lembramos dos momentos de horror a que o mundo foi submetido há tão pouco tempo. A solidão como companheira no período de isolamento e a contagem macabra dos mortos, que nos obrigava a ficar um pouco insensíveis como fuga para não enlouquecer, uma estratégia de sobrevivência.
Mais do que nunca, confirmamos a importância da vacina ao acompanhar o dia a dia dos novos internados com a constatação, óbvia, de que os negacionistas são os que mais sofrem com o maldito vírus. E ainda assim, continua o show de horror por parte daqueles que negam a importância da Ciência. Agora, a discussão sobre vacinar ou não crianças e adolescentes, como determina a Medicina, mostra, uma vez mais, o lado desumano, imbecil e cruel dos que insistem em negar a ciência. Nem a morte de mais de 610 mil pessoas conseguiu sensibilizar esses bárbaros.
E com tristeza vemos, dois meses após o final da CPI da Covid e a aprovação do relatório final, que nosso alerta sobre a necessidade de tirar os poderes imperiais do presidente da Câmara dos Deputados e do procurador-geral da República, infelizmente, tinha toda razão. Escrevi várias vezes que ou mudávamos a legislação, ou poderíamos não ter a efetividade do trabalho tão sério da Comissão Parlamentar que paralisou o país. O resultado proposto pelo relatório está longe de ter o efeito esperado.
O impeachment e um processo penal no Supremo Tribunal contra o presidente da República já saíram da pauta da sociedade. E o resultado do trabalho da CPI da Covid ficará como objeto de estudo de um tempo de trevas. Frustrante.
Com a possibilidade de um novo agravamento sanitário, voltamos a nos preocupar com os cuidados para o enfrentamento do vírus. Mas constatamos que não haverá punição para esse governo que foi o responsável direto pela intensificação da catástrofe. O Brasil passa a voltar os olhos para a necessidade de sobrevivência diante de uma realidade que sufoca a todos.
O país voltou ao mapa da fome, do qual tinha saído em 2012. Hoje, 27,4 milhões de brasileiros vivem em estado de pobreza extrema. São pessoas que passam fome diariamente. Ver a inflação chegar a dois dígitos e encarar os 15 milhões de desempregados, 14,1% da população, e outros milhões de subempregados. A chamada recessão técnica já é uma realidade. Constatamos que o fosso não tinha chegado ao fundo e que, talvez, nem tenha fundo.
E na certeza absoluta da impunidade, comprada a preço de ouro com a cooptação de parte dos congressistas, o presidente Bolsonaro, em plena segunda-feira, tem a desfaçatez de zombar do país dançando um funk e cantando uma música cuja letra misógina ofende as mulheres ao dizer: “Bolsonaro casou com a Cinderela, enquanto as de esquerda têm mais pelo que cadela”.
Essa é a mensagem do presidente da República para as mulheres brasileiras neste final de ano. Num país onde a violência contra as mulheres cresce assustadoramente, a música escolhida pelo presidente tem como autor um artista acusado de ser agressor de mulher. Nunca é demais recordar que, durante o isolamento social, o Brasil registrou 1.350 casos de feminicídio em 2020, um a cada 6 horas, segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública. E esse número, claro, é muito menor do que a realidade.
A esperança é que a saída desse estado de barbárie está nas nossas mãos, pelo voto, ainda que infelizmente demore mais um ano. Os brasileiros vão ter a oportunidade de tentar ter de volta um país que esses fascistas destroem diariamente.
É sempre bom lembrar que esse governo desmantelou as bases humanistas em todas as áreas. Reconstruí-las vai levar um longo tempo. Teremos essa tarefa pela frente. O que causa mais angústia é a certeza de que, para os desempregados e para os que têm fome, o tempo não para e cada dia perdido não tem volta. A espera pode ser possível para nós, mas para boa parte dos brasileiros ela é mortal. Vamos nos recordar disso todos os dias.
Socorro-me ao poetinha Vinicius de Moraes, no Poema de Natal:
“Para isso fomos feitos:
Para lembrar e ser lembrados
Para chorar e fazer chorar
Para enterrar nossos mortos -
Por isso temos braços longos para os adeuses
Mãos para colher o que foi dado
Dedos para cavar a terra.”
Antônio Carlos de Almeida Castro, Kakay