O diabo entra na disputa eleitoral
Aconteceu pela primeira vez em 2016, quando nos aboletávamos nos sofás da Casa Pública, nossa sede temporária no Rio de Janeiro, vidradas na televisão para checar os candidatos à prefeitura. Com o tempo, passamos a chamar o bispo Marcelo Crivella, da Igreja Universal, de “inchecável” porque, diferente dos outros candidatos, todo o seu discurso se baseava em frase vagas, como “eu vou cuidar das pessoas”, ou “tenho fé em Deus”. Percebi ali que isso lhe dava uma vantagem e transmitia enorme segurança, enquanto os outros se engalfinhavam para debater dados e números e feitos e promessas pontuais, específicas, terrenas demais.
Crivella, de fato, venceu a eleição, embora ninguém soubesse muito bem o que ele pretendia. Conseguiu galvanizar uma expressão de fé em torno de si, reunindo aqueles que eram da sua igreja e aqueles que simpatizavam com ela, e trazendo uma lição importante para quem quer vencer eleições no Brasil: a fé importa mais que a verdade.
No domingo, 9 de agosto, a primeira-dama Michelle Bolsonaro deu um passo além, ao dizer que o Palácio do Planalto, símbolo do poder presidencial, “por muito tempo foi consagrado a demônios”. “É uma guerra do bem contra o mal”, disse, reiterando que nem ela nem o marido têm um “projeto de poder”, mas agem “em obediência a Jesus”; afinal, estar no poder seria mais uma "renúncia" que uma aspiração. "Nós pagamos um alto preço”.
“A nossa nação é uma nação rica, só foi mal administrada”, disse Michelle, que não mencionou Lula, e nem precisava. Bolsonaro arrematou: “Eu entendo que a posição que eu ocupo é missão de Deus”.
Não se trata exatamente de uma fake news, porque é aquele tipo de pronunciamento inchecável, imponderável e incontestável. E no entanto, foi reproduzido por quase todos os principais veículos do país, ganhando asas, visibilidade e entrando na casa de muito mais pessoas.
Segundo o Media Manipulation Casebook elaborado pela equipe da professora Joan Donovan, de Harvard, e que usamos no projeto Sentinela Eleitoral como um guia conceitual, toda campanha de manipulação visa chegar à fase 3, onde consegue se sedimentar na opinião pública através de influenciadores, comentaristas, jornalistas e reportagens na imprensa. Assim, é urgente refletir sobre as implicações do carregado discurso missionário com o qual a campanha bolsonarista foi lançada. O diabo parece ter entrado de vez na corrida eleitoral.
Para me ajudar nessa reflexão eu procurei a jornalista Cristina Tardáguila, fundadora da Agência Lupa e pioneira do fact-checking no Brasil. Perguntei como os jornalistas devem lidar com esse problema.
“A gente tem que tratar isso como uma teoria da conspiração, e não como uma questão religiosa”, respondeu, chamando a atenção que Michelle não se referia apenas aos governos petistas. “Ela não diz ‘Lula’ especificamente. Ela critica anos de democracia, na verdade. Ela endemoniza toda a democracia”.
Esse enfoque é ainda mais relevante porque complementa a visão de segmento que esteia o bolsonarismo, o dos militares, segundo os quais a Nova República foi um fracasso, porque os governos civis não souberam administrar o país – diferentemente dos militares.
Cris explica que, para não atacar a fé evangélica como um todo, é importante evitar mencionar o espaço no qual a frase foi dita. “A gente sabe que isso aconteceu num culto batista em Belo Horizonte, mas acho isso uma informação inútil que joga todos os batistas no mesmo poço”, diz. Ela lembra, ainda, que nenhum jornalista entrevistou outros evangélicos que estavam no culto e podem discordar da frase, ou outras lideranças batistas com uma visão mais positiva do período democrático. A jornalista não propõe a checagem como solução, e eu também concordo que não é esse o caso. Outra saída que ela propõe me parece praticamente impossível, o “silêncio estratégico”, ou seja, não dar cobertura ao episódio. Digo isso porque sabemos que Michelle e seu discurso religioso já estão sendo utilizados como elemento principal da campanha de Bolsonaro, com uma enxurrada de comparações de Michelle à “Rainha Ester”, figura da Bíblia que, segundo a narrativa, tornou-se rainha e foi usada por Deus para salvar o povo hebreu. Os memes foram espalhados pelo Telegram e Instagram, onde chegaram a alcançar mais de 110 mil likes em apenas uma postagem.
A fé que a primeira-dama projeta tem sido militarizada, transformada em arma discursiva na campanha. Mas aqui eu retorno a outro aspecto fundamental do qual eu falava: o Brasil é tão profundamente religioso que é impossível afastar o pleito da fé – ainda mais quando um dos lados está levando o tema pro centro do debate. Segundo uma pesquisa do Ibope/CNI feita em 2018, quase 80% dos respondentes achavam um pouco ou muito importante o seu candidato acreditar em Deus. Sim, o valor era menor do que aqueles que queriam um candidato honesto (87%) ou que defendesse o controle de gastos (92%), mas ainda assim, uma maioria acachapante. Michelle Bolsonaro deu outra mostra de como pretende enfiar o demônio na disputa quando, dois dias depois, postou um vídeo que mostrava Lula recebendo um banho de pipocas de um pai de santo num evento na Assembleia Legislativa da Bahia. Sob o título “Lula já entregou a sua alma para vencer essa eleição”, ela era direta: “Não lutamos contra a carne e nem o sangue, mas contra os principados e potestades das trevas”. Ainda chamava os cristãos a se empenharem na política hoje “para não ser proibido de falar de Jesus amanhã."
Houve algumas poucas reações na imprensa. Por exemplo, o Uol entrevistou o Padre Júlio Lancelotti, que falou em “racismo religioso”. Uma bela cobertura veio da Revista Piauí, numa reportagem que reconta tudo o que antecedeu o ritual. Pai Thiago de Oxum disse ter recebido por sonho uma mensagem de Obaluaê, orixá da saúde e da cura: tinha que dar um banho de pipocas em Lula, uma espécie de “limpeza espiritual”. Desde então, o pai de santo buscou maneiras de completar o tal desígnio, até chegar ao banho tão comentado nas redes. Com as mensagens de ódio depois que o vídeo foi repostado pela primeira-dama, o religioso adoeceu.
A história é tão reveladora de um Brasil que tem fé quanto outro vídeo, que mostra o momento em que Michelle reage à aprovação de André Mendonça ao STF em dezembro do ano passado, em meio a uma concentração com aliados em Brasília. “Glória a Deus”, gritam os presentes após o anúncio. Michelle pula, solta um “aleluia” e repete algumas sílabas que soam como português mas não fazem sentido, completando com “oh, Deus das promessas”. O vídeo, publicado pelo site Poder 360, teve mais de 380 mil visualizações.
Sites que notoriamente espalham desinformação, como Gospel Prime e Conexão Política, aproveitaram as reações de deboche nas redes para falar em “intolerância” e “perseguição aos cristãos”, reavivando outra fake news muito usada por apoiadores de Bolsonaro desde a campanha de 2018: a de que se Lula ganhar, haverá perseguição aos evangélicos.
Por outro lado, reportagens da imprensa tentavam explicar um fenômeno que é inexplicável. Uma reportagem da Folha, por exemplo, reproduziu falas do deputado Sóstenes Cavalcante (DEM-RJ), líder da bancada evangélica, e do pastor Pedrão, líder da Comunidade Batista do Rio frequentada por Michelle, afirmando que falar línguas é um “dom espiritual”, um “presente de Deus” recebido apenas por alguns escolhidos. Que bela vantagem política ter esse dom! Vale lembrar que ambos os entrevistados têm óbvio interesse financeiro e político em elevar Michelle ao papel de “escolhida”, e ainda mais na reeleição de Bolsonaro.
Com seus discursos emocionais, Michelle ajuda a organizar a narrativa segundo a qual Jair "Messias" Bolsonaro é um escolhido de Deus para transformar o Brasil em um país “salvo”, “avivado”, livre de pecado, 100% cristão, em nome de Jesus. Como se trata de uma missão impossível, ela pode ser reciclada quantas vezes for necessário como fundamento para mais e mais anos de governo.
Foi seguindo a trilha dos vídeos de Michelle no Youtube que cheguei a outro, também impactante, de um culto evangélico em celebração à entrada de André Mendonça no STF. Michelle chora. Bolsonaro, sorridente, levanta da sua cadeira para abraçar o novo Ministro, enquanto um pastor canta: “Lembra da onde você veio e onde que você chegou”. Todos levantam das cadeiras e aplaudem o momento. A música segue: “nem era pra vocês estarem aqui. Mas Deus falou assim: ‘é você que eu vou levantar. E onde colocar as mãos eu vou abençoar’”.
É talvez essa a mais poderosa parte da retórica evangélica, porque consegue transformar a inegável incompetência de Bolsonaro em vantagem competitiva, como explicou a pesquisadora Jacqueline Teixeira, pesquisadora da USP, à BBC. “Tem uma outra coisa especificamente relacionada aos homens evangélicos, que é uma configuração teológica que está relacionada a essa ideia de que quanto mais a pessoa é imperfeita e quanto mais ela é incapaz, mais ela vai fazer porque Deus vai usá-la.”
Não é à toa que Bolsonaro parece orgulhar-se da própria incapacidade. Pouco depois de vencer a eleição em 2018, ele participou de um culto com Silas Malafaia, líder da Assembleia de Deus Vitória em Cristo que casou os dois. Disse: “Sei que não sou o mais capacitado, mas Deus capacita os escolhidos”.
Não cabe a nós julgar a fé dos outros; mas cabe, sim, denunciar quando a fé está sendo militarizada, transformada em arma política. Aqui, lembro do que disse uma vez a grande repórter Elvira Lobato, ao recontar sua cobertura sobre o patrimônio da Igreja Universal. “Eu cobri durante anos a Igreja Universal. Não fiz nenhuma reportagem sobre religião. Tudo o que eu fiz foi jornalismo econômico, cobrindo dezenas de empreendimentos comerciais".
Da mesma forma, interessa-nos cobrir o uso de elementos religiosos do ponto de vista da desinformação, e não da fé de cada um. Afinal, não estamos tratando, de fato, de deus, e nem do diabo. Mas de estratégias muito mais mundanas para mudar o voto do eleitor; como a produção em massa de memes para consolidar uma narrativa bíblica em torno da primeira-dama e o uso da velha arma dos populistas, o medo, revestido em uma suposta “perseguição” a evangélicos.
Nem fé nem missão; simples estratégia de manipulação do debate público.
Natalia Viana Diretora Executiva da Agência Pública
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