O escândalo das fake news
Novas notas sobre a guerra híbrida: o escândalo das fake news a serviço de Bolsonaro e a ação do TSE
Ilustração: Juan Chirioca
Por Simone Ishibashi
Durante essa semana um novo capítulo da escandalosa e fraudulenta eleição presidencial veio à tona. Com o favorecimento aberto do TSE, que mostra que o Judiciário constitui-se como uma força já nada obscura que atua para favorecer o reacionário Bolsonaro, veio à tona a denúncia de que grupos capitalistas pagaram empresas para inundar as redes sociais, e principalmente os Whatsapps de milhões de pessoas com fake news contra o PT. Estima-se que mais de R$ 12 milhões foram gastos para promover o reacionário Bolsonaro por essa via só no primeiro turno. Além disso, apurou-se que existem pelo menos 28 empresas acusadas de coação eleitoral em prol de Bolsonaro. Como se isso não bastasse, dentre os patrocinadores da ofensiva de fake news figuram o dono da Havan, que já havia sido denunciado por constranger seus empregados a votarem em Bolsonaro. Foram contratadas empresas como Quickmobile, Yacows e Croc Services, dentre outras, para realizar esse “serviço”, que na prática constitui-se como caixa 2 de campanha. Tudo se deu com o apoio de parte dos grandes meios, como a Globo, que negou-se a dar o devido destaque para essa notícia.
Após produzir as eleições mais fraudadas da história recente do país, tratando Lula como se fosse um criminoso lesa pátria, impedindo-o de dar entrevistas ou mesmo de se pronunciar em favor de Haddad, o Judiciário busca com suas declarações frente às fake news pagas pelos capitalistas em favor de Bolsonaro, condicionar o reacionário candidato para evitar que esse fuja de seu controle. Como explicamos aqui, Bolsonaro é uma espécie de filho imprevisto da Lava Jato, e foi abraçado como seu candidato após a derrocada absoluta de Alckmin para que faça os ataques econômicos exigidos pelos capitalistas e pelo Judiciário, com o beneplácito do alto comando das Forças Armadas. No entanto, a adesão a Bolsonaro não é um cheque em branco dado pelos capitalistas, a casta de toga ou o partido midiático golpista.
Todo esse complexo conjunto de elementos que se desenvolve sobre os escombros do regime político forjado em 1988 parece fortalecer a interpretação dos teóricos e analistas de que a situação nacional seria o resultado do mais recente exemplo de uma verdadeira guerra híbrida que estaria sendo travada nas eleições brasileiras. Vários escritos estão sendo lançados em base a essa tese. Mas até que ponto esse debate pode ajudar a lançar luzes sobre o que ocorre hoje no país, qual a sua vigência e limitações? Oferecemos aqui breves apontamentos na tentativa de responder a parte dessas questões.
Guerra híbrida no pensamento estratégico imperialista
A noção de guerra híbrida deriva dos debates de estratégia militar, Defesa e das relações internacionais. Ainda que esse termo esteja se popularizando, seu sentido e aplicabilidade para situações muito diversas entre si seguem sendo alvo de controvérsia. O termo “guerra híbrida” foi usado pela primeira vez no ano de 2002 para designar as táticas usadas pela insurgência tchetchena contra o exército russo na guerra entre os dois países de 1995-96. Os analistas militares que consideraram aquele conflito como híbrido baseavam-se em sua dinâmica, que uniu a ação de forças regulares e não regulares, uma ampla iniciativa de desinformação e uma grande presença militar em meio a uma ofensiva de objetivos limitados. Com isso, a guerra da Tchetchênia de 1994 distinguia-se da tipificação dominante no pensamento militar imperialista, que classificava as guerras em “convencionais”, isto é, quando envolviam dois Estados, e “assimétrica”, quando se tratava de um Exército combatendo contra uma guerrilha ou outro tipo de formação não regular.
Posteriormente, o termo foi apropriado oficialmente pela Estratégia Nacional de Defesa norte-americana de 2005, em pleno governo dos neoconservadores de George W. Bush, poucos anos após a invasão do Iraque. Naquele momento a guerra híbrida visava dar conta da combinação entre “duas ou mais ameaças de tipo tradicional, irregular, catastrófico ou disruptivo”. Esse sentido, um tanto abstrato, seria lapidado posteriormente pelo general James N. Mattis e pelo tenente coronel Frank G. Hoffman em seu artigo A guerra do futuro: a chegada do conflito híbrido. Assim, a evolução do conceito de guerra híbrida em Hoffman seria que:
Uma vez apresentada a evolução do conflito assimétrico até a consolidação da guerra híbrida Hoffman e seus paladinos concentrarão seus esforços em refinar o conceito e definir as características fundamentais dessa forma de luta. Assim, a guerra híbrida se caracteriza pela plena integração no tempo e no espaço de procedimentos tipicamente convencionais com táticas próprias da guerra irregular (desde as clássicas emboscadas ou ações de propaganda, agitação e insurgência até atividades de guerra de informação, guerra legal ou ciberguerra), mescladas essas últimas com atos terroristas e conexões com o crime organizado para a obtenção de apoios e assistência de todo tipo. (Hoffman, 2007 e 2009a, Wilkie, 2009 ou Lasica, 2009[1])
Frank G. Hoffman está à frente de think tanks norte-americanos como o Foreign Policy Research Institute, que atuam como formuladores de estratégias para o Departamento de Estado norte-americano e para outras potências imperialistas do mundo anglo-saxão. Assim, pode-se afirmar que a propagação da noção de guerra híbrida é consequência da ação desses think tanks e dos intelectuais e analistas a eles associados.
Outro exemplo de guerra híbrida teriam sido as Revoluções Coloridas no início do século XXI, nas quais aplicaram-se as noções de “guerras não-convencionais” como fundamento da estratégia norte-americana. Essa estratégia tinha como pressuposto a exploração das vulnerabilidades políticas, militares, econômicas e psicológicas dos países que poderiam ser considerados hostis para os objetivos estadunidenses.
Assim, o que caracterizaria o contexto da guerra híbrida são as transformações impostas pelo mundo após a globalização neoliberal. Essas transformações implicariam em uma gama ampla de atores envolvidos nas guerras, tais como grupos terroristas, redes de tráfico, milícias privadas, e também a proliferação de meios não convencionais utilizados para guerrear, como armamentos simples usados de novas formas e novas tecnologias de guerra. Isso levaria por sua vez à adoção de novas táticas, com ações convencionais limitadas, operações de informação, e agora, com as redes sociais, a uma disseminação de informações manipuladas e falsas em escala ampliada, para interceder sobre os aspectos psicológicos ou morais existentes em uma determinada guerra. Portanto, uma característica fundamental da guerra híbrida seria a instrumentalização das tensões latentes no interior de uma determinada população a ser usada contra o poder local considerado hostil pelas potências imperialistas, mediante a disseminação de falsas informações e manipulação. Essas tensões latentes podem ser indentitárias, de classe ou raciais.
Dessa maneira, pode-se apontar, grosso modo, que a noção de guerra híbrida deriva da combinação entre diversos meios a serem empregados para provocar uma espécie de “caos controlado” em favor de interesses imperialistas externos. Como consequência, talvez a mais significativa para seu emprego em situações tão diversas, seria que a guerra híbrida apaga as fronteiras entre a “legalidade e a ilegalidade, e até mesmo entre a violência e a não violência”, fazendo com que a distinção entre guerra e paz se torne irreal, como assinala Félix Arteaga, pesquisador de Segurança e Defesa do Real Instituto Elcano.
O uso devido e indevido da noção de guerra híbrida na atualidade nacional
Desde que vieram à tona as manipulações dos capitalistas, do Judiciário e da mídia em favor de Bolsonaro, e anteriormente com o golpe contra o PT, que tem sua continuidade na ofensiva contra Lula com sua proscrição nas eleições, vários analistas saíram a defender que o Brasil haveria se tornado o epicentro da guerra híbrida. As menções dos documentos elaborados por estrategistas imperialistas acerca da guerra híbrida, em que se apresentam verdadeiros manuais sobre como mobilizar as classes médias não engajadas contra forças políticas mediante disseminação de falsas informações, intensificação de propaganda e descrédito aos governos de turno, realmente parecem fornecer as chaves explicativas para a situação que se abriu no país pós golpe de 2016, e sobretudo com as eleições fraudulentas de 2018. A própria Lava Jato, cujo centro se voltou contra a Petrobras, maior empresa estatal do país de um ramo estratégico e determinante para a geopolítica, levando à sua descapitalização e à entrega do pré-sal, uma riqueza estimada em US$ 10 trilhões, são apontados, não sem parcela de coerência, por autores como Andre Korybko como parte importante dos motivos pelos quais o Brasil teria sido alvo de uma operação de guerra híbrida, articulada fundamentalmente pelos Estados Unidos, com aliados internos como Sergio Moro, o Judiciário e o alto mando das Forças Armadas.
No entanto, a interpretação que se centra na guerra híbrida traz uma série de debilidades, não tanto em análise, mas em apontar as saídas para a situação que se abre. Isso ocorre porque de acordo com os teóricos da guerra híbrida, inclusive parte dos que analisam criticamente a situação aberta após o golpe de 2016, as massas e a classe trabalhadora atuam apenas como massa de manobra. Cria-se assim uma situação praticamente sem saída, em que os trabalhadores sucumbem vítimas da fábrica de fake news paga pelos capitalistas, e das manobras sem fim do Judiciário. O próprio apagamento das fronteiras entre guerra e paz, tal como afirmou Félix Arteaga, colabora para essa concepção, na qual de maneira aparentemente pacífica uma guerra estaria sendo travada sem que houvesse a possibilidade da classe trabalhadora vencê-la. Clausewitz, o general prussiano cujas elaborações mais contribuíram, ainda que indiretamente, para o pensamento revolucionário nesse terreno, afirmava que a guerra é um camaleão, que muda de forma a todo instante. No entanto, haveria por detrás dessa aparente inconstância três elementos que devem se colocar, compostos pelo ódio, atribuído ao povo; o cálculo das probabilidades, que constitui o terreno dos generais; e a política, que é atribuída ao governo. Assim, o povo cumpre um papel chave. A noção de que o povo é meramente instrumentalizado faz escapar as contradições que impõem o próprio limite das guerras híbridas.
Para tratar do caso brasileiro por exemplo, lembremos que por mais que hoje a fábrica de fake news, que lança uma cortina de fumaça sobre o real poder local nas mãos do autoritarismo Judiciário, pareça reinar acima de tudo e todos, a ampla maioria dos eleitores de Bolsonaro não está votando nele esperando uma agenda econômica de retirada de direitos. Expectativas e realidade se chocarão. E nisso consiste a brecha que a guerra híbrida não preenche. A negação de que a luta de classes é a medida máxima da correlação de forças que pode definir as situações cruciais. Se não estamos ainda em meio a grandes enfrentamentos da luta de classes, como produto da crise política, econômica e social que assola o país, isso não significa que a guerra híbrida venceu em toda linha, mas, antes disso, que ainda não atingimos as situações cruciais, isto é, que abrem terreno para o enfrentamento entre revolução e contrarrevolução.
Assim, se tomada acriticamente, a noção de guerra híbrida pode desarmar a classe trabalhadora e as amplas massas, anulando a necessidade imperiosa do trabalho da estratégia, entendido esse como a necessidade de organizar o enfrentamento contra os que travam a guerra híbrida, e seus agentes internos, mediante a construção de uma força material e moral, na acepção de Clausewitz, para dar uma saída independente dos trabalhadores e do povo. Hoje cada vez mais, e de forma agravada com o ascenso de Bolsonaro, o trabalho da estratégia é central. Criar as condições para uma potente frente-única operária, que devem ter seu embrião em comitês de luta contra Bolsonaro, os golpistas e as reformas, avançando dessa tarefa para o questionamento do regime político em franca decadência, fazendo com que todos os políticos e juízes sejam eleitos e revogáveis pelo povo são parte fundamental desse trabalho.
[1] COLOM, Guillem. Applicability and limitations of hybrid warfare. Disponível em (http://www.scielo.org.co/scielo.php?script=sci_abstract&pid=S1900-65862012000200004&lng=en&nrm=iso)