O estigma, estudei no EJA
'Perdi vaga de emprego porque estudei no EJA': o estigma relatado por quem não completou o ensino na idade regular
Em 2019, o Encceja – exame que garante diplomas da educação básica – bateu recorde de participantes – como a ex-BBB Maria. Entretanto, essas pessoas encontram resistências no mercado de trabalho e no ensino superior, diz especialista.
Por Emily Santos, g1 — São Paulo
Maria Elizângela cumpria dupla jornada trabalhando em uma escola durante o dia e frequentando aulas em outra durante a noite para concluir o ensino médio enquanto buscava o sonho de ser professora. A piauiense cursou o EJA, educação de jovens e adultos, e só pôde ingressar no curso de pedagogia em 2018, aos 43 anos.
"Não era fácil. Eu trabalhava como zeladora em Teresina durante o dia, pegava condução e ia direto para a escola que eu estudava, no meu bairro. Chegava em casa quase 22h e tinha que estar pronta para sair no dia seguinte às 6h", lembra.
Ela conta que parou de estudar aos 15 anos e viu na modalidade -- que funciona como um supletivo público, com versões resumidas do conteúdo didático dos ensinos fundamental e médio -- a chance de sonhar com o ensino superior. Mas houve quem criticasse a decisão.
"Um parente me disse que eu peguei um atalho por ter feito EJA. Que atalho, se eu voltei [a estudar] de onde parei? Eles esperam que, aos 40 e poucos, a gente já tenha a vida decidida e ganha. Mas e quando a gente não tem dinheiro e precisa esperar nossa vez? Sobre isso, eles não falam."
Nesta reportagem, você vai ler sobre:
- preconceito contra educação de jovens e adultos
- depoimento da ex-bbb e cantora Maria sobre sua experiência no Encceja
- o que é EJA e Encceja
- a importância da educação para pessoas acima da idade regular estimada
A discussão sobre o preconceito em relação a quem faz educação de jovens e adultos chamou a atenção nas redes sociais após recentemente após a ex-BBB Maria comentar a experiência dela no Encceja (saiba mais abaixo).
Na faculdade, Elizângela conta que também não foi fácil.
"No começo, me olhavam com desconfiança, como se aquele não fosse meu lugar. Eu não conseguia me integrar e fazer amigos. Quando tinha trabalho em grupo, era um sacrifício. Em 2020, as coisas já eram melhores, mas veio a pandemia e eu tranquei o curso em 2021. Voltei neste ano, quando surgiu a chance de eu conseguir um estágio. Mas, ao mesmo tempo, já tinham colegas minhas de 20 anos em sala de aula há muito tempo".
Agora, prestes a fazer 48 anos, a estudante anseia terminar o ciclo que recomeçou com o EJA.
Encceja fornece certificação de conclusão dos ensinos fundamental e médio para quem
quer retomar os estudos
Elizângela não está sozinha na decisão de voltar a estudar após não concluir o ensino básico na idade regular estimada. A administradora Alessandra Petroni, de 34 anos, completou o ensino fundamental e médio pelo EJA antes de se graduar em 2020. Hoje, ela é responsável pelo lava-rápido e borracharia da família em Bacabal, no Maranhão.
"Estou, finalmente, podendo ajudar minha família da melhor maneira que consigo. Mesmo estando formada há pouco tempo, agora me sinto útil. Sem o EJA, nem sei se eu teria sido capaz de enfrentar o ensino regular e perseguir esse sonho", diz ela.
Na época da faculdade, Alessandra correu atrás para acompanhar os colegas. "A diferença de idade não era tanta, mas a de oportunidade, sim. Eu tinha me esforçado para concluir [o ensino médio] enquanto trabalhava e tentava me organizar para fazer faculdade, e tinha gente na minha sala que nem sabia o que era EJA", diz ela, que considera a disparidade de oportunidade uma discriminação social.
No mercado de trabalho, não foi diferente. Ela lembra de quando perdeu uma vaga de emprego porque o gerente não conhecia o EJA.
"Eu tinha terminado o 3º ano e o gerente de um restaurante disse que não podia me contratar porque havia inconsistências no meu currículo. Ele não entendeu como eu tinha concluído o ensino médio menos de dois anos depois de terminar o fundamental. A vaga pedia ensino médio completo e eu tinha, mas perdi a vaga porque estudei no EJA. Quando levei o documento que mostrava [que havia concluído], ele já tinha contratado outra pessoa".
Participantes do Encceja também relatam preconceito
Outra opção para quem não conseguiu o diploma do ensino básico em idade regular é o Exame Nacional para Certificação de Competências de Jovens e Adultos (Encceja), modalidade que a atriz, cantora e ex-participante do BBB 22 Maria recorreu para obter o certificado de ensino médio em 2019.
A prova, que concede diploma de conclusão de ensino fundamental e médio, chegou a bater recorde de participantes naquele ano, chegando a 1.185.945, de acordo com o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep).
Ex-BBB Maria concluiu o ensino médio pelo Encceja em 2019. — Foto: Enzo Camillo e Rafaela Urbanin/Divulgação
No começo de abril, Maria falou em uma publicação em uma rede social sobre sua experiência com o exame.
"Gosto de contar a minha história com verdade porque incentiva mais pessoas a conhecerem uma forma gratuita de concluir os estudos e a importância dele. Mas também não teria nada de errado se não tivesse concluído, pois meu intelecto não é menor por isso", escreveu.
Em um papo com o g1, Maria -- nome artístico de Vitória Nascimento -- diz que era constantemente "diminuída" quando contava para as pessoas que não tinha o ensino médio completo, e foi um dos motivos que a levaram a fazer a prova.
"Eu não conhecia o exame, fiquei sabendo através do Twitter. Na época, as inscrições estavam abertas, então, me inscrevi, esperei o dia e fiz a prova, sem me preparar. Fiquei angustiada com a parte de exatas, que não é o meu forte, mas fiquei muito feliz quando o resultado saiu e eu havia conseguido uma boa pontuação em todas as áreas", afirma.
Defensora de oportunidades como o Encceja, EJA e outros supletivos, a artista acredita que é preciso mais investimento e divulgação nas modalidades.
O jovem João Pedro Melthias, o JP, de São Mateus, zona Leste de São Paulo, concorda. Ele diz que o Encceja foi a chance de voltar a pensar em um futuro, mas só ficou sabendo da prova por uma amiga da época da escola.
"Eu estudei como pude. Consegui [ser aprovado] de primeira por sorte. Ainda não consigo fazer faculdade, mas quero fazer o Enem esse ano. Agora vou tentar me planejar, dentro do que minha realidade permite. Ter um futuro é bom, mas primeiro tenho que pensar no meu presente, né?", reflete o jovem de 23 anos.
JP confidencia que nunca sonhou em cursar o ensino superior. "Isso ainda não faz parte da minha realidade. Eu tive que parar de estudar com 16 anos, antes de terminar os estudos, para trabalhar e ajudar nas contas de casa. Eu consegui me virar com um bico ou outro, mas não tive como voltar para a sala de aula, de frequentar a escola", diz.
Apesar de considerar que o futuro está mais próximo, o paulista já sentiu que havia ficado para trás. "As pessoas acham que perdi minha vez. Meus amigos estão na faculdade, alguns até já terminaram os estudos e estão trabalhando, e eu estou aqui. Ainda sou jovem, mas sentia o olhar das pessoas quando eu falava que estava estudando para o Encceja e não para o vestibular".
Maria critica quem pensa desse jeito e defende que "grau de ensino não mede intelecto".
"Muito triste que muita gente ainda tenha essa visão antiquada do que a gente precisa do ensino regular para provar nosso conhecimento, já que nem todo mundo tem a oportunidade de continuar o ensino. Existem vários 'atravessamentos' que fazem as pessoas largarem a escola. Ninguém faz isso por querer", diz ela.
"Acho que é muito importante que as pessoas se formem, porque gera mais oportunidade de emprego, acesso a outros níveis de ensino, mas que isso não seja visto como uma prova de intelecto. Um diploma não quer dizer que uma pessoa seja mais inteligente do que a outra. E a inteligência não se busca apenas na sala de aula. Então, acho que as pessoas deveriam abrir mais a mente pra isso", completa.
Estigmas afetam alunos de todas as idades, diz especialista
Para a professora do EJA em Curitiba, Joana Silva Agostin, que estuda a importância da educação para maiores de 60 anos, são vários os desafios para essas pessoas no ambiente escolar.
"As pessoas idosas sofrem um preconceito diretamente relacionado à sua idade, algo que fecha as portas em situações de saúde, bem estar, educação e até no mercado de trabalho. Afinal, essas pessoas também têm direito à vida profissional. Mas, geralmente, as dificuldades que levam à conclusão dos estudos apenas nessa fase da vida começaram lá atrás, na infância e na adolescência, como para muitos dos jovens de 20, 30 anos que também precisam recorrer ao EJA para conseguir o certificado de ensino médio", explica.
Sala de aula em Rondônia; escola — Foto: Cleber Souza/Governo de Rondônia
Por isso, ela defende que a escola deve ser receptiva para todas as pessoas.
"Vejo o estigma que meus alunos enfrentam, tanto os que têm 22 anos, quanto os que têm 66. Já tive aluno que só conseguiu dizer para a família que estava estudando quando conseguiu o diploma. E outros que nunca disseram no emprego que fizeram EJA, porque há uma cobrança e uma valorização dos métodos 'convencionais' que não considera as diferentes realidades dos estudantes brasileiros", diz.
Segundo a especialista, o ensino regular não é inverso de modalidades como EJA e Encceja, mas complementar. "As pessoas optam por esta forma de ensino porque precisam, não porque querem passar menos tempo na escola. Pelo contrário, geralmente são pessoas que valorizam tanto o ambiente escolar que enfrentam a falta de transporte, de merenda e o cansaço para estar ali. O que precisamos é de políticas públicas que correspondam a este esforço", finaliza.
Sobre o EJA e o Encceja
Em 2019, quando Maria fez o exame, o número de participantes foi recorde, chegando a 1.185.945, de acordo com o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep). A edição seguinte, aplicada apenas em 2021 devido a pandemia de Covid-19, teve 474.079 inscritos. Nas edições de 2017 e 2018, o exame teve 1.573.862 e 1.695.607 inscrições respectivamente.
O Encceja concede certificação de ensino fundamental e de ensino médio, através da avaliação de conhecimentos de língua portuguesa e estrangeira, arte, história, geografia e outros. Quem consegue a pontuação mínima em cada categoria pode emitir um certificado de conclusão daquele nível.
Já o EJA é muitas vezes comparado com um supletivo por ser uma versão de menor duração dos níveis de ensino básico para quem não completou essas etapas em idade regular. Em 2021, 2,9 milhões pessoas se matricularam, menor número dos últimos anos.
Matrículas no EJA nos últimos 5 anos — Foto: Arte: g1
As modalidades são opções para pessoas que não concluíram as fases em idade regular, mas querem conquistar a certificação de conclusão do ensino básico ou ensino médio.