O lado esquerdo da igreja
O lado esquerdo da igreja
Tradução Giuliana Almada
A igreja é responsável por uma série de injustiças — e hoje a retórica cristã é usada para defender um capitalismo neoliberal violento. Mas nem sempre foi assim. Resgatamos a gloriosa tradição da Teologia da Libertação, um dos pilares na luta contra a desigualdade e o autoritarismo na América Latina.
A entrada do centro comunitário serve como lembrete e homenagem ao trabalho e vida do arcebispo Oscar Romero, Colonia Dolores, San Salvador, El Salvador. Alison McKellar / Flickr.
O ano de 1968 ocasionou muita reflexão sobre esse momento crucial do século XX. Apesar da imagem que tipicamente retrata aquele ano de revolta ser a de estudantes montando barricadas nas ruas de Paris ou dos protestos em Berkeley contra a Guerra do Vietnã, 1968 também foi marcado por desafios aos poderes político e social em todo o mundo. Curiosamente esquecida, no entanto, é a Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano — um evento crucial no desenvolvimento da Teologia da Libertação em toda a América Latina. As declarações da conferência abriram novos caminhos ao expandir a noção de “libertação” teológica para implicar um processo humanizador positivo e atacar as estruturas políticas, sociais e econômicas que mantiveram milhões de latino-americanos empobrecidos e oprimidos.
Recordar a rejeição do papel tradicional da igreja pela Teologia da Libertação como baluarte de reação e resistência em vez de uma “opção preferencial para os pobres” ganha uma importância adicional, dada a vitória de Jair Bolsonaro nas eleições presidenciais de 2019. Apelando para a defesa da “civilização cristã” como um apoio ideológico ao racismo e à guerra de classes de cima para baixo, o presidente eleito ecoa a retórica da ditadura militar de 1964-1985 — regime que exalta abertamente — junto às justificativas apresentadas por figuras como Jorge Rafael Videla e Augusto Pinochet pelo assassinato em massa de suspeitos de dissidência em todo o continente.
Se tem um episódio histórico que rivaliza o fetiche de Bolsonaro pelo Estado e pela igreja é a ditadura, da qual ele lembra com tanto carinho. O jovem padre Frei Betto foi preso, torturado e preso por esse regime no início da década de 1970 devido ao seu trabalho de apoio a militantes de esquerda, incluindo o escritor marxista, político e guerrilheiro Carlos Marighella. Betto foi repreendido pelo interrogador da polícia: “Como pode um cristão colaborar com um comunista?”
Betto respondeu que “para mim, os homens são divididos não entre crentes e ateus, mas entre opressores e oprimidos, entre aqueles que querem manter essa sociedade injusta e aqueles que lutam por justiça”. Pressionando seu prisioneiro, o policial respondeu: “Você esqueceu que Marx considerava a religião o ópio do povo?” Por sua vez, Betto insistiu: “É a burguesia que transformou a religião em ópio do povo, rezando para um Deus lá no Céu, enquanto toma posse da Terra para o seu próprio benefício”.
O ativismo de Betto fazia parte da tendência mais ampla da igreja brasileira, que unia esforços junto aos pobres, oprimidos e desprezados do país, paralelamente aos movimentos sociais na América Latina catalisados pela Conferência de Medellín. Sua trajetória também exemplifica o ponto crucial de que a Teologia da Libertação estava muito longe de uma reconsideração de doutrina rarefeita e desapegada.
Ao contrário, devido a sua interconexão inextricável com movimentos populares por justiça política e social obscenamente reprimidos, seria mais adequado falar sobre “cristianismo libertacionista”, pedindo emprestado o termo de Michael Löwy. Sem reduzir a complexidade e a variação do cristianismo liberacionista, o diálogo de Betto era indicativo de três linhas comuns nessa influente minoria da igreja latino-americana.
Primeiro, uma concepção de fé ou crença com ênfase na observação contemplativa de ritos e na adesão a um corpo de doutrina e prática ritualística não era mais sustentável. Em vez disso, foi apresentado um entendimento alternativo, que reconcebia as demandas da fé como, antes de tudo, um compromisso com os oprimidos e com o sofrimento.
Nessa visão, os cristãos libertacionistas não se entendiam como tendo um conhecimento superior para transmitir ao mundo, como se, condescendentemente, seus camaradas ateus de esquerda fossem cristãos sem saber. Da mesma forma, o alvo dos teólogos da libertação não era explicitamente o ateísmo, mas a idolatria — os novos ídolos da morte adorados pelos faraós, césares e Herodes contemporâneos: riqueza, mercado, segurança nacional, Estado, força militar, “civilização cristã ocidental”.
Em segundo lugar, a caridade foi reconcebida para livrar o conceito de associações remanescentes com a hierarquia paternalista e a auto-justificação associadas ao sistema que produziu a necessidade da caridade em primeiro lugar. Como afirmou o cardeal Dom Helder Câmara: “Enquanto eu pedia às pessoas que ajudassem os pobres, fui chamado de santo. Mas quando perguntei: por que há tanta pobreza? Fui chamado de comunista.”
O cristianismo libertacionista, por sua vez, encontrou na resolução marxista de solidariedade com os oprimidos em sua auto-emancipação uma conceituação apropriada de caridade. O envolvimento com o conceito marxista de proletariado não foi, no entanto, uma redução a ele — ao contrário dos críticos da Teologia da Libertação dentro da igreja.
O termo “pobretariado”, cunhado por ativistas sindicais marxistas cristãos em El Salvador, captura claramente as tentativas do cristianismo libertacionista de abranger a experiência especificamente latino-americana do capitalismo periférico dependente. Esses pobres crucificados, portanto, incluíam não apenas classes exploradas, mas também excluídas do sistema formal de produção, raças desprezadas e culturas marginalizadas e, como enfatizaram figuras como Gustavo Gutiérrez, as mulheres, uma categoria social duplamente oprimida.
Uma terceira inovação foi a rejeição da separação tradicional entre religião e política. A religião estática e privatizada e a concepção burguesa truncada de amor foram rejeitadas em favor da luta contra estruturas políticas e econômicas desumanizadoras. A teoria da dependência galvanizou uma compreensão do “pecado estrutural” e um anticapitalismo mais profundo do que o de muitos dos partidos e movimentos de esquerda estabelecidos no continente. Como Gutiérrez, um dos teólogos da libertação mais influentes e principal consultor de Medellín, colocou em 1971:
negar a realidade da luta de classes significa, na prática, assumir uma posição a favor dos setores sociais dominantes. A neutralidade nesta questão é impossível. [O que é necessário é] eliminar a apropriação feita por alguns das mais-valias produzidas pelo trabalho da grande maioria, e não apelos líricos a favor da harmonia social. Precisamos construir uma sociedade socialista mais justa, mais livre e mais humana, e não uma sociedade de falsa conciliação e aparente igualdade.
Como surgiu a Teologia da Libertação e como ela se manifestou nas lutas políticas e sociais? E qual é o sua situação hoje, principalmente em vista da maré reacionária na América Latina e no mundo?
Primórdios
“De uma maneira simbólica”, sugere Löwy, “pode-se dizer que a corrente cristã radical nasceu em janeiro de 1959 no momento em que Fidel Castro, Che Guevara e seus camaradas marchavam para Havana, enquanto em Roma João XXIII emitia seu primeiro pedido de convocação do Concílio [Vaticano II]”. De maneira mais ampla, esse momento foi caracterizado pela industrialização da América Latina sob a hegemonia do capital multinacional e, nas palavras de André Gunder Frank, “desenvolveu o subdesenvolvimento” — cujos sintomas eram maior dependência, aprofundamento da divisão social, êxodo rural e um crescente empobrecimento e marginalização da população urbana pobre.
Nesse contexto, a Revolução Cubana desencadeou um novo ciclo de lutas sociais intensificadas, o advento de movimentos de guerrilha, uma sucessão de golpes militares e uma crise de legitimidade do sistema político em todo o hemisfério.
Visto o tradicional papel da igreja latino-americana como bastião de apoio a esse sistema, não era de forma alguma esperado que ela interviesse do lado das lutas sociais emergentes. O fato de uma minoria influente ter feito isso pode ser atribuído ao surgimento da teologia crítica no início do século XX e à abertura para as ciências sociais na tentativa de modernização da Igreja pelo Vaticano II.
Teólogos alemães como Karl Rahner e franceses como Emmanuel Mounier, que se apoiaram no pensamento anticapitalista francês, foram particularmente importantes. Tendências heterodoxas dentro do marxismo, como a filosofia da esperança de Ernst Bloch e a Escola de Frankfurt, também inspiraram os teólogos da libertação, assim como a sociologia e a economia marxista de forma mais ampla — as quais caracterizaram as declarações da Conferência de Medellín.
Fundamentalmente, porém, a Teologia da Libertação não se tratava simplesmente de uma extensão das inovações teológicas européias ou de uma retomada da antiga antipatia católica conservadora pelo capitalismo. A Teologia da Libertação envolveu a criação de uma nova cultura religiosa para expressar as condições específicas da América Latina: capitalismo dependente, pobreza maciça, violência institucionalizada, religiosidade popular. Ela rejeita as concepções eurocêntricas da história encontradas até mesmo no pensamento progressista, com sua visão otimista a partir de uma narrativa presunçosa de progresso e avanço tecnológico. Em vez disso, a Teologia da Libertação pensa a história do ponto de vista inverso daquele que enxerga derrotados e excluídos, considerando os pobres como verdadeiros portadores da universalidade e da redenção.
Um momento icônico no desenvolvimento do cristianismo libertacionista foi a morte de Camilo Torres, um padre que organizou um movimento popular militante e depois se juntou ao Exército de Libertação Nacional (ELN), um movimento guerrilheiro castrista na Colômbia, em 1965. Para Torres, “a revolução não é apenas permitida, mas obrigatória para os cristãos.” Ele foi morto em 1966 em um confronto com o Exército, mas seu martírio teve um profundo impacto emocional e político nos cristãos latino-americanos.
Sacerdotes radicalizados se organizaram em todo o continente — o Movimento Sacerdotes para o Terceiro Mundo na Argentina em 1966, a Organização Nacional para a Integração Social (ONIS) no Peru em 1968, o Grupo Sacerdotal de Golcanda na Colômbia, também em 1968, os Cristãos pelo Socialismo no Chile de Allende em 1971 — enquanto um número crescente de cristãos se envolvia ativamente nas lutas populares. Esses sacerdotes reinterpretaram o Evangelho à luz dessa prática e muitas vezes viam no marxismo uma chave para a compreensão da realidade social e um guia para mudá-la.
Brasil
Aigreja brasileira é a única igreja no continente onde a Teologia da Libertação e seus seguidores pastorais ganharam influência decisiva. Muitos dos movimentos populares brasileiros que obtiveram ganhos impressionantes em relação à justiça social nas últimas décadas são, em grande parte, produto da atividade popular de cristãos comprometidos, agentes pastorais leigos e comunidades de base cristã: a Central Única dos Trabalhadores (CUT), o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), as associações de bairros pobres — e sua expressão política, o Partido dos Trabalhadores (PT).
Dadas as relações culturais particularmente estreitas com a França, a teologia progressista francesa avançou mais rapidamente no Brasil do que em qualquer outro lugar do hemisfério, sendo também uma ferramenta prontamente disponível para entender as correntes desencadeadas pela Revolução Cubana. Já em 1960, a Juventude Universitária Católica (JUC) se radicalizou e avançou muito rapidamente em direção a ideias socialistas e de esquerda.
No início da década de 1960, surgiram ideias sobre as especificidades da situação brasileira à luz de desenvolvimentos políticos e teológicos mais distantes. Um aspecto importante do desenvolvimento do cristianismo libertacionista no Brasil foi a educação popular. Envolvendo-se com a pedagogia revolucionária de Paulo Freire, o Movimento pela Educação Básica (MEB) foi a primeira tentativa católica de uma prática pastoral radical entre as classes populares. O MEB visava não apenas levar a alfabetização aos pobres, mas também conscientizá-los e ajudá-los a assumir o controle da sua própria trajetória.
Em abril de 1964, os militares tomaram o poder para salvar a “civilização cristã ocidental” do “comunismo ateísta” — em suma, para defender a oligarquia dominante ameaçada pelo surgimento de movimentos sociais sob o presidente eleito João Goulart. Não surpreendentemente, a nova ditadura foi rapidamente endossada pela Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) em junho de 1964: “ao rendermos graças a Deus, que atendeu às orações de milhares de brasileiros e nos livrou do perigo comunista, agradecemos aos militares, que, com grave risco de suas vida, se levantaram em nome dos supremos interesses da nação.”
Esse sentimento, no entanto, não foi compartilhado por muitos ativistas e padres cristãos, muitos dos quais estavam entre as primeiras vítimas da reação das autoridades à “ameaça vermelha”.
Se a esquerda cristã foi inicialmente fragmentada pela repressão e pela marginalização, nos anos seguintes, um número crescente de cristãos, inclusive alguns bispos, começou a apoiar a oposição à ditadura conforme ela reprimia a sociedade civil. Alguns deles se radicalizaram e, em 1967–68, um grande grupo de dominicanos, incluindo Frei Betto, resolveu apoiar a resistência armada e ajudar movimentos clandestinos como o ALN (Ação Libertadora Nacional) — um grupo guerrilheiro fundado por Carlos Marighella, ex-líder da Partido Comunista Brasileiro, — escondendo militantes ou ajudando alguns deles a fugir do país.
Em breve, vários deles seriam presos e torturados pelos militares, e o movimento de guerrilha destruído. A opressão contra os ativistas cristãos foi intensificada, e sua “subversão” brutalmente reprimida com prisões, estupros, tortura e assassinato — particularmente depois que as liberdades civis e garantias jurídicas restantes foram cerceadas em dezembro de 1968.
A instituição da igreja, Inicialmente cautelosa ao desafiar essa repressão, mudou de rumo em 1970 com a adesão do novo arcebispo Dom Paulo Evaristo Arns, conhecido por seu compromisso com a defesa dos direitos humanos e sua solidariedade com os ativistas religiosos presos. Tamanha foi a reviravolta que, durante a década de 1970, após a aniquilação da esquerda clandestina, a igreja se tornou, tanto para amigos quanto para inimigos, a principal oposição ao regime. Nessa época, a igreja ofereceu proteção a ativistas de direitos humanos, intelectuais, movimentos trabalhistas, sindicatos, camponeses e repreendeu o regime por sua violência, ilegalidade e supressão da democracia.
Suas críticas se estenderam a uma denúncia do modo de desenvolvimento imposto pelos militares e de sua suposta “modernização” como desumana, injusta e baseada na marginalização e opressão social e econômica dos pobres. Em 1973, por exemplo, os bispos e líderes estaduais de várias ordens religiosas no nordeste e centro-oeste do Brasil emitiram declarações que denunciavam não apenas a ditadura, mas o próprio capitalismo como “a raiz do mal”.
Nicarágua
O cristianismo libertacionista também se enraizou no solo fértil da América Central, embora muito mais tarde do que no Brasil. Foi um componente vital da luta sandinista e da revolução de 1979 na Nicarágua. A derrubada da ditadura de Somoza, apoiada pelos EUA, foi a primeira revolução nos tempos modernos em que os cristãos — leigos e clérigos — desempenharam um papel essencial, tanto na base como nos níveis de liderança do movimento.
Antes da Conferência de Medellín, a igreja nicaraguense era uma instituição tradicionalista e socialmente conservadora, que apoiava abertamente a dinastia dominante de Somoza. Em 1950, por exemplo, seus bispos emitiram uma declaração proclamando que toda autoridade deriva de Deus e que, portanto, os cristãos deveriam obedecer ao governo estabelecido.
Após a Conferência de Medellín, houve um desenvolvimento muito mais amplo das comunidades de base, estabelecido através da solidariedade e da auto-organização consciente de classe, que também se valeu dos importantes esforços de organização do clero e das ordens religiosas europeias e estadunidenses, incluindo figuras como Maura Clarke, que seria morta pelos militares de El Salvador em 1980. As comunidades de base se expandiram numericamente no campo e nas favelas de Manágua ao mesmo tempo em que se radicalizavam cada vez mais.
A organização de base e a radicalização dessas comunidades levaram muitos de seus membros a se tornarem ativistas ou simpatizantes da Frente Sandinista de Liberacíon Nacional (FSLN). O movimento guerrilheiro marxista fundado no início dos anos 1960 por Carlos Fonseca e Tomás Borge combinou as tradições do nacionalismo agrário radical, do marxismo guevarista e do cristianismo revolucionário. O movimento recebeu com entusiasmo esses jovens radicais cristãos, sem tentar impor condições ideológicas. As fileiras da FSLN também atraíram números significativos do crescente movimento universitário católico, muitas vezes através do Movimento Revolucionário Cristão.
Isso não quer dizer que a igreja como um todo tenha abraçado a revolução. Esquematicamente, pode-se apontar a hostilidade dos bispos, o apoio de ordens religiosas e a divisão do clero diocesano entre esses dois campos, com a maioria apoiando os bispos. No entanto, mesmo os principais membros da igreja nicaraguense se tornaram cada vez mais críticos ao regime de Somoza, que mergulhou em uma crise na década de 1970.
Com a insurreição sandinista descarrilando a ditadura durante as insurreições de 1978-1979, a fuga de Somoza e a vitória dos sandinistas em julho de 1979, as autoridades da igreja apoiaram o FSLN, emitindo uma condenação geral da violência.
No entanto, muitos cristãos, particularmente jovens e pobres, participaram ativamente do levante sandinista, ignorando o conselho das autoridade eclesiásticas. As áreas em que a luta foi mais intensa e a ação mais eficaz e melhor organizada foram justamente aquelas em que comunidades de base e cristãos radicais haviam atuado nos anos anteriores. Além disso, muitos padres, religiosos (especialmente capuchinhos e jesuítas) e freiras deram apoio direto aos sandinistas, fornecendo comida, abrigo, remédios e munição.
A novidade histórica da enorme contribuição cristã para a revolução não se perdeu na Frente Sandinista, que reconheceu em sua Declaração sobre a Religião em outubro de 1980 que “os cristãos têm sido parte integrante de nossa história revolucionária em um grau sem precedentes em qualquer outro movimento revolucionário da América Latina e possivelmente do mundo…. Nossa experiência mostrou que é possível ser crente e ao mesmo tempo consistentemente revolucionário, e que não há contradição irreconciliável entre os dois”. Essa confiança foi confirmada com a participação de três padres no governo sandinista.
El Salvador
Como na Nicarágua, foi somente após a Conferência de Medellín que as coisas começaram a mudar na igreja salvadorenha. Sob a influência da nova orientação adotada em 1968 pelos bispos da América Latina e dos primeiros escritos da Teologia da Libertação, um grupo de padres iniciou o trabalho missionário entre os camponeses pobres da diocese de Aguilares em 1972–73.
A figura central desse grupo era o padre Rutilio Grande, um jesuíta salvadorenho que lecionava no seminário de San Salvador, mas decidiu deixar a cidade para viver com os pobres da zona rural.
A equipe missionária dos padres (muitos deles jesuítas) viveu entre os camponeses e iniciou comunidades de base estabelecidas através do entendimento do plano de Deus como uma rejeição das relações humanas opressivas. Um objetivo central da instrução bíblica era romper com o que eles consideravam ser a passividade da religião camponesa tradicional. Foi dito aos paroquianos que, em vez de apenas “adorar” a Jesus, era mais importante seguir seu exemplo e lutar contra o mal no mundo. Isso envolveu a auto-organização para lutar contra o que eles identificaram como pecado social — acima de tudo, a exploração capitalista. Eles também promoveram autoconfiança entre os camponeses, gerando o advento de uma nova liderança eleita pela comunidade.
A oposição à Teologia da Libertação foi ainda mais aguda na igreja salvadorenha do que na Nicarágua. Uma exceção importante foi Óscar Romero, que havia sido nomeado arcebispo de San Salvador em 1977 como uma escolha conservadora segura.
Como ele diria mais tarde aos seus amigos, ele foi escolhido como o mais provável de neutralizar os “padres marxistas” e as comunidades de base, além de melhorar as relações entre a igreja e o governo militar, que se deterioraram sob seu antecessor. Gillo Pontecorvo, diretor do icônico filme A Batalha de Argel, comentou certa vez que esperava fazer um filme sobre Romero para explorar sua atípica conversão de conservador para radical.
Essa conversão foi inicialmente ocasionada pelo assassinato de Rutilio Grande, que havia sido um grande amigo de Romero em sua chegada, apesar de suas diferentes orientações políticas. Após 1978, Romero foi profundamente influenciado pelo teólogo da libertação espanhol Jon Sobrino. O arcebispo entrou em crescente conflito com os bispos conservadores, o núncio apostólico, os militares, a oligarquia e, finalmente, com o próprio Papa. Romero se reunia regularmente com padres radicais e com as comunidades de base, e mais tarde com sindicalistas e militantes.
Seus sermões de domingo eram assistidos por milhares de fiéis, enquanto centenas de milhares ouviam sua mensagem sobre a auto-emancipação dos pobres pela rádio da igreja. Em fevereiro de 1980, Romero publicou sua carta ao presidente estadunidense Jimmy Carter, implorando que não fornecesse ajuda militar ao regime salvadorenho e não interferisse no destino de seu povo.
Um mês depois, ele fez um discurso especial para os soldados não obedecerem a seus superiores, lembrando-lhes que os camponeses que eles mataram eram seus irmãos e irmãs, e que não tinham a obrigação de seguir tais ordens. No dia seguinte, o próprio Romero foi morto pelos esquadrões da morte paramilitares. Após sua morte, ele se tornou um símbolo carismático para cristãos comprometidos na América Latina.
Sementes plantadas
Muitos analistas têm apontado para uma recessão no destino da Teologia da Libertação nos últimos anos. Uma fonte da contrariedade tem sido a ascensão do cristianismo evangélico na América Latina, através do grande apoio dos EUA, principalmente a partir da década de 1980. Com importantes exceções, o evangelismo latino-americano geralmente promove a prática religiosa apolítica, se não a reação direta e a celebração subserviente da prosperidade. É, notavelmente, uma base fundamental do apoio de Bolsonaro.
A igreja rebelde também não deixou de ser tocada pela maré do liberalismo triunfante de 1989, embora não tenha sido associada à rigidez e crueldade do comunismo ao estilo soviético. A derrota do governo sandinista nas eleições do ano seguinte foi, igualmente, um grande golpe ao cristianismo radical em toda a América Latina.
Recentemente, o interesse na Teologia da Libertação foi regenerado, dada a posição de figuras como Betto como conselheiro do ex-presidente Lula e da importância atribuída à Teologia da Libertação pelo ex-presidente equatoriano Rafael Correa em sua própria formação política. Um dos obstáculos mais consistentes ao avanço do cristianismo libertacionista tem sido a suspeita ou hostilidade total do Vaticano. Assim, a adesão do Papa Francisco e suas exortações contra a injustiça do capitalismo e a canonização de Romero naturalmente contribuíram para a renovação do interesse pelo fenômeno.
Contra os prognósticos de que é uma força gasta, Löwy argumenta que “uma semente foi plantada pelo cristianismo libertacionista no centro da cultura política e religiosa da América Latina, que continuará a crescer e florescer nas próximas décadas e ainda tem muitas surpresas na manga”. A Teologia da Libertação ainda tem uma contribuição importante a fazer na reparação do destino deprimido da onda progressista na América Latina — na recusa de um status quo consensual e inaceitável, e na militância paciente e reflexiva ao lado dos oprimidos.
No mínimo — dado o registro sórdido da perpetuação de injustiças monstruosas por parte da igreja e a prevalência da retórica cristã a serviço do capitalismo neoliberal e suas consequências: as desigualdades desenfreadas, o empobrecimento e violência — a Teologia da Libertação é uma tradição que vale a pena lembrar.