O leito da fome é fecundo

O leito da fome é fecundo

O leito da fome é fecundo

Num mundo de desigualdades abissais, a fome e a sede são as maldições evitáveis de uma sociedade maldita 

Em 2022, orientei um trabalho de conclusão de curso[1] de um estudante de Medicina da Universidade Federal de Santa Catarina cujo tema era a fome entre a população brasileira. Da década de 70 aos dias atuais, o estudo envolveu a análise de dados epidemiológicos, políticas públicas e obras literárias. Os resultados foram assustadores, e evidenciaram a magnitude e a persistência de famintos no Brasil, cuja tragédia atinge os mais pobres de todas as idades e, mesmo que tenham sido implementadas ações governamentais nas últimas décadas, como o Programa Bolsa Família, o Plano Brasil Sem Miséria e o Programa Mais Alimentos, o fantasma ainda persiste. No ano de 2014, o país saiu do Mapa da Fome, retornado com força em 2022, em que 15,5% de nós não têm o que comer, o que representa 33,1 milhões de pessoas[2]. É muita gente. E gente é pra brilhar, não pra morrer de fome 

A fome é um importante problema de saúde pública que precisa ser compreendido por estudantes, por profissionais de saúde, por gestores e pela sociedade, como fez o médico pernambucano Josué de Castro, em obras importantes como “Geopolítica da fome”. O Estado brasileiro e o Sistema Único de Saúde precisam se engajar no combate a esse fenômeno, um determinante social do processo saúde-doença. 

Do outro lado do atlântico, minha amiga e professora Denise da Nova Cruz, em ação pelo Médicos Sem Fronteiras, me conta, diariamente, as tragédias humanas causadas pela miséria e pela fome crônica em Moçambique: “Os adultos não pesam mais que sessenta quilos, e há uma criança aqui, comigo, com três meses e três quilos. Falta água e as pessoas morrem de malária, sofrem com a coceira da sarna, com o desespero das doenças parasitárias, com a dor da morte precoce, com o sofrimento, o mal-estar, a anemia, a barriga d’água, as febres, a desnutrição e a elefantíase.” A África, como o Brasil, também enfrenta a maldição da fome. 

 

Corredor de supermercado no Brasil durante a pandemia de coronavírus (Nathália Rosa/Unsplash)

Corredor de supermercado no Brasil durante a pandemia de coronavírus, quando muitos dos produtos alimentícios encareceram (Nathália Rosa/Unsplash)

 

Em janeiro deste ano, os povos yanomamis da Floresta Amazônica foram encontrados em situação de calamidade oriunda de uma crise humanitária sem precedentes, com dezenas de casos de desnutrição grave e óbitos decorrentes do fantasma da fome. Eram crianças, adultos e idosos indígenas que nas últimas décadas tiveram suas terras invadidas por garimpeiros, rios contaminados com minério, fauna e flora destruídas, além da total desassistência do governo federal para garantir proteção e subsistência. Eram pessoas atingidas pela perda de peso acentuada, falta de vitaminas, minerais, proteínas e outros nutrientes, e por um genocídio que está em curso desde a descoberta deste berço esplêndido chamado Brasil.

Outros grupos populacionais, como as pessoas em situação de rua, negras e travestis são os que mais sofrem pela maldição da fome no Brasil, um país que historicamente não tolera, marginaliza e violenta todos aqueles que não se enquadram no padrão dominante: homem, branco e heterossexual.  

No mundo, Somália, Afeganistão, Etiópia, Sudão do Sul e Iêmen estão em situação preocupante, e 970 mil pessoas podem morrer de fome a qualquer momento. No Haiti, quase metade da população enfrenta a fome aguda, e seca, terremotos, inflação, desemprego e violência contribuem para o cenário. No mundo, a fome atinge 828 milhões de pessoas, em sua maioria mulheres.   

O capitalismo neoliberal avança. A globalização e a tecnologia também. A inteligência artificial é a moda da vez. Há 50 trilhões de dólares no mundo. O francês Bernard Arnault é a pessoa mais rica, e concentra 234 bilhões de dólares, seguido de Elon Musk, com 171 bilhões. A estimativa é que 6,6 bilhões acabariam com a fome no mundo. No Brasil, há 8 bilionários.  

Carolina Maria de Jesus foi certeira: quem inventou a fome são os que comem. Nos quatro cantos do planeta fome, o problema rasga a alma de milhares de desvalidos à espera da morte. Num mundo de desigualdades abissais, a fome e a sede são as maldições evitáveis de uma sociedade maldita, pois há milhares de condenados ao diabo da fome. 

 

Roger Flores Ceccon é professor da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) 

 

Referências 

  1. Silva, E. S. E a saúde de quem não come? Uma análise sobre a fome no Brasil. Orientador: Roger Flores Ceccon. Trabalho de Conclusão de curso. Universidade Federal de Santa Catarina. Graduação em Medicina. Araranguá, 2022.

  2. PENSSAN. II VIGISAN: Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil. São Paulo: Fundação Friedrich Ebert, 2022.

 

FONTE:
https://diplomatique.org.br/o-leito-da-fome-e-fecundo/?fbclid=IwAR0zxEiy0kTCtvUKsrXH4tBar4WTctlHqHD9BNkuKnajZumv_261fZEjP3g 




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