O que vem pela frente?

O que vem pela frente?

''As pessoas não têm ideia do que vem pela frente"

Professora-titular de Ética da USP e coordenadora de estudo sobre o atual governo, Deisy Ventura analisa juridicamente as normas emitidas pela União durante a pandemia

A professora e pesquisadora Deisy Ventura (Divulgação)

Créditos da foto: A professora e pesquisadora Deisy Ventura (Divulgação)

 
Genocida. Esse é um dos mais recorrentes adjetivos destinados a Jair Bolsonaro. O rótulo de “genocida” lhe foi timbrado desde o primeiro ano de mandato, em 2019, mas se intensificou em 2020, quando estourou a pandemia, cuja necessidade de quarentena no Brasil completa um ano neste mês. A crise do novo coronavírus tornou-se a química catastrófica entre o pior contexto sanitário-político-econômico-social e o pior governante. Desde março do ano passado, o presidente acumula ações conflitantes com as recomendações dos cientistas, dos médicos e da Organização Mundial da Saúde (OMS). Essas atitudes, que muitos apontam como incompetência, foram entendidas por um estudo acadêmico como deliberadas, com o propósito de disseminar o novo coronavírus no país.

“No âmbito federal, mais do que a ausência de um enfoque de direitos, já constatada, o que nossa pesquisa revelou é a existência de uma estratégia institucional de propagação do vírus, promovida pelo governo brasileiro sob a liderança da presidência da República”, indica o relatório do Mapeamento e análise das normas jurídicas de resposta à Covid-19 no Brasil, realizado através de uma parceria entre o Centro de Pesquisa de Direito Sanitário (Cepedisa) da Faculdade de Saúde Pública (FSP) da Universidade de São Paulo (USP) e a ONG Conectas Direitos Humanos.

“As 3.049 normas relativas à Covid-19 coletadas por nossa pesquisa no âmbito da União corroboram a ideia de que onde há o excesso de normas há pouco direito. Trata-se de um acervo normativo que resulta do embate entre a estratégia de propagação do vírus conduzida de forma sistemática pelo governo federal e as tentativas de resistência dos demais poderes, dos entes federativos, de instituições independentes e da sociedade”, escrevem os pesquisadores na divulgação do resultado, em 20 de janeiro deste ano.

Registrada pelo estudo da USP, a linha do tempo, dividida em meses, mostra o percurso de todas as ações estapafúrdias do governo federal, acrescidas das declarações absurdas de Jair Bolsonaro. Embora a cronologia tente estabelecer uma correlação entre as ações da União e os números de casos e de óbitos, os pesquisadores se depararam, no processo da análise dos dados, com o desafio de traçar uma comparação entre cada medida e o impacto direto nos números de infectados e mortos, pois, durante meses, não existia uma quantidade de testagem suficiente, não se sabia o tempo de atividade da doença e de seu agravamento, qual a influência de fatores sociais e nível de comprometimento individual às normas. Havia ainda muito atraso na atualização de novos casos, pelo Ministério da Saúde, que deixou de informar os números em junho – como resposta, foi montado um consórcio de imprensa entre o G1, O Globo, Extra, O Estado de S. Paulo e a Folha de S.Paulo, que passou a apurar os dados sobre a pandemia junto às 27 unidades federativas.

Não informar os números dos infectados pela Covid-19 no país se tornou um dos malfeitos cometidos pela gestão Bolsonaro. Eles foram e são diversos. De emitir medida provisória para não responsabilizar agentes públicos durante a pandemia a incitar as pessoas a irem às ruas e não obedecerem às medidas de prevenção. De estimular o uso de tratamento precoce com drogas sem eficácia comprovada a atacar a vacina, por causa da guerra política com o governador de São Paulo João Dória. De recusar a oferta de imunizantes, e atrasar a compra destes, a não apresentar uma estratégia nacional de vacinação.


A vacina da Oxford/AstraZeneca é uma das duas liberadas para uso no Brasil. Foto: Tânia Rêgo/Agência Brasil/Divulgação

Segundo estudo do Lowy Institute, publicado no dia 28 de janeiro, o Brasil foi o país que teve a pior resposta à pandemia. Em fevereiro, quando se completou um ano do anúncio do primeiro infectado no país, o Brasil ultrapassou a marca de 250 mil mortos por Covid-19. A vacina ainda é uma realidade distante para a maioria dos brasileiros. Em pouco mais de um mês do início da vacinação, o país tinha vacinado apenas 2,04% de sua população – para obter um resultado satisfatório do ponto de vista da imunização coletiva, será necessário vacinar entre 70% e 90% dos 210 milhões de habitantes.

Com a alta circulação do novo coronavírus no mundo, existe o risco de surgirem mais variações que podem escapar da eficácia das vacinas testadas e aprovadas. No Brasil, já há variantes mais contagiosas, sendo confirmadas as do Reino Unido (B.1.1.7), em São Paulo, e do Amazonas (P.1), em diversos estados. Enquanto isso, o país possui uma rede formada por laboratórios públicos e por universidades, como a USP e a UFRJ, para realizar a vigilância genômica, mas, sem insumos, equipamentos e profissionais suficientes, as análises são feitas em quantidade muito inferior à de outros países.

“Com respostas vergonhosas como as do Brasil, em muitos países há o risco de que novas pandemias convivam com a permanência de anteriores, com penosas idas e vindas. E, infelizmente, nada disso está sendo discutido agora. As pessoas pensam que usar máscaras é uma grande mudança cultural, que o confinamento é um martírio. Elas realmente não têm ideia do que vem pela frente”, afirma, nesta entrevista à Continente, a coordenadora do estudo sobre as ações da União na pandemia, Deisy Ventura, professora-titular de Ética da Faculdade de Saúde Pública da USP, doutora em Direito Internacional pela Universidade de Paris 1 (Pantheón-Sorbonne), membro da comissão da revista científica britânica The Lancet e que tem 12 anos de experiência estudando pandemias.

Segundo o Mapeamento e análise das normas jurídicas de resposta à Covid-19 no Brasil, foram 1.788 portarias, 884 resoluções, 66 instruções normativas, 59 medidas provisórias, 50 leis, 24 decretos, 23 decisões e 100 outras. Que leitura se pode fazer desses diferentes tipos de normas e desses números?

Esses números dizem respeito a normas relacionadas à pandemia que foram produzidas no âmbito da União. Portanto, não incluem normas estaduais e municipais, que são outros tantos milhares e que também estamos coletando e estudando. A leitura das normas federais revela, em primeiro lugar, uma grande inflação normativa, e corrobora a ideia de que onde há muitas normas, há pouco Direito. A proliferação de regras, ainda mais quando ocorre em diferentes esferas federativas (União, estados e municípios), traduz intensos conflitos políticos, joga lenha na fogueira da judicialização da resposta à pandemia e, em particular, da saúde, que, mesmo antes da Covid-19, já marcava a história recente da saúde pública no Brasil – afora as decisões judiciais que interpretam ou aplicam essas normas vão em sentidos diversos, e por vezes até antagônicos. Com isso, a coerência do Direito brasileiro sai perdendo, e muitas vezes o interesse público e os direitos das pessoas também são derrotados. Em segundo lugar, o estudo das normas revela o protagonismo do Poder Executivo em detrimento do Legislativo: há um pequeno número de leis em comparação à enorme atividade normativa do governo federal, com uma grande variedade de atores que vão muito além de órgãos do setor saúde, como o Ministério da Saúde e a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa).

Na sua opinião, quais normas jurídicas deveriam ter sido aplicadas durante essa pandemia e que não foram?

Não hesito em responder que a Constituição Federal é a mais aviltada. Quando os constituintes poderiam imaginar que, 30 anos depois da promulgação da carta que instituía, enfim, uma ordem democrática no Brasil, um presidente da República responderia a uma pandemia por meio da imunidade coletiva, dita “de rebanho”, obtida por via do contágio massivo, gerando milhões de casos e centenas de milhares de mortes que poderiam ser evitadas, sob o pretexto, jamais comprovado, de que tais casos e mortes seriam necessários para preservar a economia? Na verdade, bom para a economia é controlar a pandemia por meio das medidas de eficácia conhecida, que podem incluir medidas quarentenárias se e quando necessário, e na medida necessária, mas que compreendem também a testagem massiva, o isolamento de casos confirmados, a comunicação de risco durante a emergência eficiente e constante. Tudo isso o Brasil poderia ter implementado por meio de florões do Sistema Único de Saúde (SUS), como a estratégia de saúde da família, e com investimento consistente na vigilância em saúde, e teria reduzido a necessidade de recurso a medidas quarentenárias. Em síntese, a resposta federal é o maior atentado aos direitos humanos até hoje cometido na vigência da Constituição Federal, em particular ao direito à saúde e à vida dos mais vulneráveis, e é também um desastre para a economia brasileira.

É possível traçar um paralelo entre as normas e o impacto nas incidências de casos de infectados?

Basta olhar a linha do tempo que está disponível no estudo. No entanto, é importante ressaltar a dificuldade de mensurar o efeito isolado de cada norma, na medida em que elas fazem parte de uma ampla estratégia que tem outros dois eixos fundamentais: os atos de obstrução das respostas locais, inclusive relativos à retenção de recursos financeiros, e a propaganda contra a saúde pública, pela qual o governo federal sistematicamente incita a população à exposição do vírus, desacredita as autoridades sanitárias, dissemina informações falsas sobre saúde, como a existência de tratamento precoce para a Covid-19 que simplesmente não existe, e estimula a desobediência às recomendações de saúde pública elementares para a contenção do vírus, como usar máscaras, evitar aglomerações e respeitar as medidas quarentenárias. O conjunto é imponente.

Bolsonaro afirmou recentemente que o STF o impediu de trabalhar durante a pandemia. Como a pesquisa pode refutar isso?

Basta ler as decisões do Supremo Tribunal Federal para constatar que o suposto impedimento não é verdadeiro. No entanto, a nossa pesquisa mostra que o presidente trabalhou muito, incansavelmente, em prol da disseminação da Covid-19 no Brasil, contra os governos estaduais e municipais que buscam conter a doença e em prol da retomada da atividade econômica. E ele continua agindo da mesma forma, mesmo à beira dos 240 mil mortos e dos 10 milhões de casos confirmados de uma doença cujas sequelas ainda estamos descobrindo.

Há uma ideia de que Bolsonaro seja incompetente, mas o resultado da pesquisa afirma que todas as ações foram deliberadamente para propagar o vírus. Quais seriam os ganhos políticos dele com o caos na saúde?

A grande aposta de Donald Trump na reeleição para a presidência dos Estados Unidos foi a de que a economia andava bem. E, infelizmente, milhões de pessoas parecem acreditar que o mercado deve ditar as regras do convívio social. Trata-se de uma forma específica de compreender a economia, diga-se de passagem, focada nos interesses de grupos e setores, não nos interesses econômicos da coletividade. No caso da resposta brasileira à pandemia, suspender atividades essenciais de forma coordenada nacionalmente, na hora certa e na medida certa, com ampla adesão populacional, teria permitido uma retomada mais cedo e com maior segurança para todos, e não as idas e vindas de medidas com baixa adesão e, logo, eficácia limitada. Mas os ganhos pretendidos pelo presidente são evidentes, e estão diretamente relacionados às eleições de 2022: manter sua base de apoio mobilizada por meio da produção de factoides e adversários; valer-se do ambiente emocional propício ao charlatanismo e às teorias de complô gerado pelo temor a uma doença desconhecida; não reduzir a atividade econômica apresentando-se como defensor do empresariado e da economia; não gastar o suficiente com investimentos no SUS e em pesquisa, não admitir o papel fundamental do SUS e da ciência na resposta às emergências. Aproveitou também a pandemia para extirpar do Ministério da Saúde o quadro de especialistas que oferecia resistência ao desmonte de políticas públicas cruciais para a saúde dos brasileiros, em prol da agenda ideológica de setores do governo, especialmente os religiosos. A lista é longa.

Essa tese pode ser confirmada com a nota pública emitida pelo procurador-geral Augusto Aras no dia 19 de janeiro deste ano? Nela, ele afirma:“O estado de calamidade pública é a antessala do Estado de Defesa”.

Essa nota foi percebida por muitos como uma ameaça ao povo brasileiro, a meu juízo muito mais vinculada à ascensão de um movimento pela responsabilização do presidente pelo desastre na resposta à pandemia, do que a uma efetiva possibilidade de adoção do Estado de Defesa. Ademais, o Estado de Defesa deve ser aprovado pelo Congresso Nacional. Naquele momento, não parecia haver guarida a essa possibilidade. Hoje, poderia ser diferente.

Quais crimes poderíamos enumerar que o presidente cometeu com relação à crise sanitária e quais sustentariam um pedido de impeachment?

Nosso estudo não se debruça sobre a tipificação de crimes, apenas conclui que esse assunto deve ser debatido com maiores urgência e profundidade na comunidade jurídica. Mas muitos outros documentos já foram elaborados com o propósito de responder a essa pergunta.

A propósito, o resultado da pesquisa pode ser usado para embasar pedidos de impeachment?

Chegou ao nosso conhecimento uma representação criminal baseada em dados de nossa pesquisa, entre outros documentos; e, ao menos, dois documentos relativos ao impeachment, um manifesto e um pedido, utilizam dados de nosso estudo.

Na sua avaliação, quais seriam os caminhos legais para responsabilizar o presidente pela sua terrível atuação na pandemia?

Três dimensões estão em discussão: crimes comuns, previstos pelo Código Penal, objeto de diversas representações criminais, sistematicamente arquivadas por quem deveria dar-lhes seguimento; crimes de responsabilidade, que são objeto de pedidos de impeachment, já numerosos, também sem seguimento; e crimes internacionais, que ensejaram diversas comunicações ao Tribunal Penal Internacional.

Caso o presidente não seja responsabilizado no Brasil pela condução da crise sanitária, haveria possibilidade de julgamento em tribunais internacionais? Como seria esse processo?

As comunicações ao Tribunal Penal Internacional se multiplicam. Cabe à Procuradoria do TPI decidir a que investigações dará seguimento. Trata-se de uma instituição de pequeno porte que não dispõe dos meios para apurar todas as denúncias de violações de que toma conhecimento. Mas é importante destacar que o TPI só age quando a jurisdição nacional não agir, ou porque não pôde ou porque não quis.

Quais consequências teremos se o comportamento de Bolsonaro na pandemia não for punido?

A pandemia passará a ser um poderoso instrumento de extermínio de populações vulneráveis, à disposição dos governantes brasileiros. Como estamos entrando no que Peter Piot – codescobridor do vírus do Ebola, por muitos anos diretor do Programa Conjunto das Nações Unidas sobre o HIV/Aids (Onusida) – chamou de A Era das Pandemias, a impunidade de crimes dessa magnitude é uma decisão importante do Estado e da sociedade, que não deve passar despercebida.

A PGR pediu ao STF aprovação para investigação das ações do ministro Eduardo Pazuello na tragédia da falta do oxigênio em Manaus. O ministro foi convidado para depor em uma investigação preliminar. Na sua avaliação, o presidente também deveria ser convidado a, no mínimo, prestar depoimento?

Quem respondeu a essa pergunta foi o próprio ministro, quando afirmou publicamente: um manda, o outro obedece. A frase foi dita no dia 22 de outubro de 2020, na presença do presidente, que havia desautorizado a decisão do ministro de comprar de 46 milhões de doses da vacina produzida pelo Instituto Butantan em parceria com o laboratório chinês Sinovac, a CoronaVac. A única estratégia de imunização coletiva que é benéfica para a saúde pública é justamente a vacinação. Nesse particular, o comportamento do governo federal é escandaloso, tanto no sentido de obstruir sistematicamente a organização de um programa nacional de imunização eficiente, como de disseminar a desconfiança em relação às vacinas. Já a imunização por contágio é considerada inadmissível pela OMS, tanto pela impossibilidade de previsão dos seus efeitos, sobretudo no caso de uma doença desconhecida, e antiética por implicar necessariamente um elevado número de mortes evitáveis.

Acredita que o ministro e o presidente podem ser julgados no futuro, quando perderem o foro privilegiado?

Espero que sim. Cresce internacionalmente o debate sobre a responsabilização de agentes públicos que, por negligência, imperícia ou deliberadamente, causaram a morte de centenas de milhares de pessoas. O Brasil, infelizmente, é um dos casos mais citados, pois era considerado um dos países mais preparados para um evento desse tipo, graças à capilaridade e à experiência do SUS, mas hoje é apontado como a pior resposta do mundo à pandemia. O dano à imagem internacional do Brasil é imensurável. O mundo está se fechando para os brasileiros.

A propósito, qualquer família que perdeu algum parente pode processar o governo municipal, estadual e/ou federal?

Em minha opinião, haverá uma enxurrada de ações judiciais, e o cenário mais provável é o da responsabilização do Estado, e não dos mandantes, gerando ainda maior prejuízo ao erário.

Foi emitida uma medida provisória para obrigar a Anvisa a entregar o resultado das avaliações das vacinas em cinco dias. Qual sua análise sobre essa medida? É possível mexer no protocolo de trabalho de uma agência de vigilância?

Submeter o funcionamento da Anvisa a qualquer critério outro que não seja o técnico-científico, orientado pelo interesse público, é um gesto que coloca em risco a saúde de todos os brasileiros. Todos nós dependemos da Anvisa. Hoje é a vacina, amanhã pode ser o remédio ou o brinquedo que o seu filho coloca na boca.

Você estuda epidemias há 12 anos. Qual a comparação que se pode fazer de outras pandemias com essa do novo coronavírus?

Não há nada de novo. Tudo já estava nas pandemias do século passado, na pandemia do século XXI (a gripe H1N1, à qual dediquei minha tese de livre-docência), nas emergências internacionais do Ebola (2014-2015, na África Ocidental, 2019-2020, na República Democrática do Congo) e da síndrome congênita do vírus Zika (Brasil, 2016). A singularização da pandemia de Covid-19, como se fosse um evento monumental e único, é um erro importante de quem não estudou o tema, que acaba corroborando mentiras como a de que ela era imprevisível, ou de que a culpa é da OMS, que não avisou os Estados, ou de que tantos casos e mortes eram inevitáveis etc. Ao contrário, há centenas de documentos e estudos, da academia e de organizações internacionais, inclusive da OMS, que alertam para a iminência desse fenômeno, e oferecem planos de resposta bastante completos. Mas os estados e as sociedades não somente estavam, como continuam, focadas em outras coisas. A Covid-19 é uma doença do Antropoceno, como disse o cientista francês Philippe Sansonetti, professor do Instituto Pasteur, no sentido de que ela resulta da ação do homem sobre a Terra. Sem mudanças importantes na forma pela qual o homem se relaciona com o ambiente, nossa vida será uma sucessão de eventos como este. Há elementos estruturais que impossibilitam uma resposta mais eficiente e precisam ser enfrentados, como as desigualdades no acesso à água potável, saneamento básico, moradia e trabalho decentes, e alimentação adequada. É o que chamamos de determinantes sociais da saúde. Com respostas vergonhosas como as do Brasil, em muitos países há o risco de que novas pandemias convivam com a permanência de anteriores, com penosas idas e vindas. E nada disso está sendo discutido agora. As pessoas pensam que usar máscaras é uma grande mudança cultural, que o confinamento é um martírio. Elas realmente não têm ideia do que vem pela frente.



Vacinação na aldeia indígena Umariaçu, próxima a Tabatinga, no Amazonas. Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil/Diulgação


Essa pandemia pode ter, de alguma forma, um impacto na forma como o Direito lida com a questão da saúde?

Já tem. É devastador. O Direito brasileiro traduz os embates que ocorreram no seio do Estado e da sociedade, nos quais a saúde vem sendo derrotada. Nem durante uma pandemia o Brasil priorizou a saúde pública. Dominique Kerouedan, médica que criou a cátedra de Geopolítica da Saúde Mundial no célebre Collège de France, em Paris, chamou a atenção recentemente para esse aspecto pouco mencionado das respostas nacionais à pandemia. A urgência desloca recursos excepcionais para medidas pontuais que são imprescindíveis, mas, de modo geral, não têm alterado limitações estruturais enfrentadas pelos sistemas de saúde, principalmente a escassez de investimentos públicos permanentes e as políticas de austeridade fiscal. No caso do Brasil, referência internacional em matéria de cobertura universal de saúde, apesar do subfinanciamento, jamais reconhecida internamente, o SUS sai da pandemia mais alquebrado do que quando entrou. Os danos da Covid-19 sobre a saúde dos brasileiros será de médio e longo prazos. O custo humano para o SUS em desgaste e perda de profissionais da saúde, e também o custo financeiro, são imensos, e poderiam ter sido evitados. Prevenção é bem mais barata que UTI. Testagem massiva, vigilância e isolamento eficazes, medidas quarentenárias pontuais com alta adesão, e muitas outras medidas de eficácia comprovada teriam evitado esse descalabro.

Qual é a sua análise da performance do STF e do Congresso durante este período da crise sanitária?

O STF e o Congresso Nacional evitaram que a situação fosse pior, ao permitir que os governos locais contivessem a doença e evitassem o colapso generalizado do SUS; ao derrubar vetos presidenciais de leis importantes, ao forçar a adoção do auxílio emergencial para proteger a população, entre outras medidas. Mas nenhum deles disse ao presidente: você tem o dever de organizar a resposta nacional à pandemia e o dever de utilizar os recursos dos quais o Brasil dispõe para tanto e, se não o fizer, nós o faremos; você não pode optar pela imunidade de rebanho porque isso sabidamente implica a morte evitável de centenas de milhares de pessoas e atinge desproporcionalmente as populações mais vulneráveis, adote imediatamente outra estratégia. Isso jamais foi dito. A discricionariedade do Poder Executivo foi o pretexto para permitir a ignomínia que, o mais impressionante de tudo, não tem fim.

Quais mecanismos legais poderiam ser utilizados para fazer o governo federal trabalhar em prol da saúde da população?

São incontáveis as ações judiciais provenientes de variados atores sociais e de instituições, como o Ministério Público e outras, que cobram do governo medidas efetivas de combate à pandemia. Em muitos locais do Brasil, a suspensão de atividades não essenciais foi determinada pelo Poder Judiciário com base em evidências científicas. Essa busca por justiça tem evitado um quadro ainda mais grave, mas é incapaz de atingir o núcleo da estratégia federal de disseminação da pandemia. Atores importantes do Poder Judiciário brasileiro parecem acreditar na versão pueril de que só dissemina uma doença quem empunha um tubo de ensaio e o aponta em direção de outra pessoa. Ou são leigos em saúde pública, ou caminham em direção à cumplicidade.

Débora Nascimento é jornalista, repórter especial da Continente e colunista da Continente Online.

*Publicado originalmente em 'Continente Digital'

 

https://www.cartamaior.com.br/?/Editoria/Antifascismo/-As-pessoas-nao-tem-ideia-do-que-vem-pela-frente-/47/50076 




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