O risco da terceira via
O risco da terceira via para a democracia brasileira, por Fernando Horta
Uma característica das terceiras vias é que elas NUNCA esperam ganhar as eleições. Ao contrário, sua estratégia é fazer o maior barulho possível para se constituir como força decisiva no processo de escolha.
O risco da terceira via para a democracia brasileira
por Fernando Horta
As terceiras vias são normalmente sinônimo de saúde das democracias pelo mundo. Elas agregam legitimidade ao processo eleitoral e, através da estratégia de serem o “fiel da balança”, normalmente conseguem trazer pautas que não são da maioria da população para o centro do debate público e não raro conseguem introjetar tais pautas dentro do programa de governo vencedor. Os “verdes” na Europa, por exemplo, jogaram por anos esta estratégia e conseguiram transformar suas pautas em algo central para o velho Continente.
No Brasil, contudo, a terceira via é um perigo para a democracia. Joga um papel acessório ao autoritarismo do grande capital e, em vez de aumentar a força e a qualidade da nossa democracia, jogará contra esta democracia e quaisquer resultados que dela surgirem. Não é acaso que Sérgio Moro seja o garoto-propaganda desse planejamento todo. E disso que vamos falar logo abaixo.
Uma característica das terceiras vias é que elas NUNCA esperam ganhar as eleições. Ao contrário, sua estratégia é fazer o maior barulho possível para se constituir como força decisiva no processo de escolha. Imaginem dois lados com digamos 45% dos votos cada um e uma terceira via com apenas 10%. Se tomarmos uma foto estática do processo eleitoral diríamos que esta terceira via é desimportante em função de sua diferença de votos (representatividade real) para os outros dois blocos. Ocorre que dentro da dinâmica do processo de escolha, esses 10% podem se tornar o “fiel da balança”, fazendo pender a vitória para um dos lados a partir de seu apoio. Neste sentido, as terceiras vias jogam um papel de negociação importante, ora trazendo pautas importantes que não são majoritárias para dentro dos programas vencedores, ora fazendo com que o centro de equilíbrio dos programas políticos vencedores pendam mais para o centro e desbastando qualquer radicalidade.
Para isso é necessário que as terceiras vias tenham duas características essenciais. Por um lado, é necessário que se constituam com pautas definidoras claramente diferentes daquelas sustentadas pelos outros dois blocos. É preciso que os eleitores vejam diferença e legitimidade na terceira via. De outra forma, seus representantes serão vistos como dissidências internas dos projetos majoritários que, ou não tiveram competência política suficiente para comporem um bloco melhor articulado, ou são compostos por indivíduos egocêntricos demais que disputam os mesmo nacos eleitorais.
Por outro lado, a terceira via precisa se mostrar coesa e com grande capacidade de negociação. Fiel às suas pautas minoritárias e com uma ação sólida e intransigente na defesa de tais pautas. A terceira via jamais pode negociar “em separado”, pois perde completamente a força de sua estratégia. Sabendo não poder vencer o objetivo da terceira via é sensibilizar e parecer palatável aos eleitores de qualquer dos outros dois blocos em disputa. Quanto maior for a distância destes blocos até a linha de vitória eleitoral, maior será a força da terceira via, indiferente à relação direta de força política entre ela e os blocos. Quanto maior for a igualdade de forças entre os dois lados majoritários, maior também será o poder de barganha desta terceira via. O ponto ótimo desta terceira via é, por exemplo, dois blocos completamente antagônicos em suas posições políticas e com 49% cada. Veja que neste cenário a terceira via tem 2% apenas, mas conserva todo seu potencial de negociação e se torna, literalmente, condição de vitória política.
A terceira via no Brasil é, porém, completamente diferente do modelo acima apresentado. Primeiro porque não se distingue claramente de nenhum dos dois blocos. Moro é um bolsonarismo sem Bolsonaro, com um projeto autoritário pessoal, fortemente centrado num moralismo difuso da classe média que controla postos-chave da institucionalidade no Brasil. Especialmente no judiciário. A diferença para o projeto Bolsonaro é quase imperceptível senão que um tem voz fina e o outro tenta falar grosso.
O que quer que saia das prévias do PSDB também incorre no mesmo problema. O projeto político-econômico tanto de Leite, Dória ou outro é o mesmo neoliberalismo que faz água pelo mundo todo com uma tonelada de elitismo e egocentrismo tecnicista. Em realidade Paulo Guedes será trocado por completa incompetência técnica (dele e toda sua equipe) e não por alguma divergência ideológica. Não fosse por isso e não seria necessária a troca do ministro da economia de Bolsonaro já que é complemente compatível com a ideologia da “terceira via”. Mesmo Ciro Gomes ostenta orgulhoso uma matriz de pensamento neoliberal com obsessão pelo superávit fiscal, pelo desenvolvimento como sinônimo de industrialização e vendo no Estado apenas um “mal necessário” para a economia. O neoliberalismo com açúcar de Ciro Gomes também não se difere – especialmente aos olhos do eleitor – dos planejamentos do bloco bolsonarista e, embora seja consenso que qualquer um da terceira via colocaria tais planos em funcionamento de forma tecnicamente melhor, a população está cansada de pobreza e fome.
Assim, com o espectro político brasileiro deslocado para a direita, a terceira via não se consolida em nada semelhante a um centro. O centro está tomado exatamente pelo bloco lulista que – em função da destruição do Brasil provocada pela dobradinha Temer-Bolsonaro – se consolida como um claro “papa pauta”. Não há meios de se pensar um Brasil melhor para o povo e se diferenciar do bloco lulista. Dito de outra forma, tudo o que você pensar como plano para solução dos problemas brasileiros ou já foi posto em prática por Lula nos seus primeiros governos, ou é apresentado agora por ele como solução ou é desimportante e não altera substancialmente nada. É uma tarefa ingrata a da terceira via afastar-se do bloco lulista, principalmente porque isso implica em assumir pautas e planos do lado bolsonarista. Seja como for, a terceira via fica ficada numa direita moderada e perde sua função de força em direção a um centro político de alto valor civilizatório, sendo vista pela população como a continuidade soft do projeto autoritário-fascista do capitão.
O mais perigoso para o Brasil ainda não foi dito. Tem a ver com uma peculiaridade da nossa terceira via. Até aqui, diríamos que a terceira via é uma legítima sopa de chuchu. Sem cara, sem cor e sem gosto. Indissociável do projeto bolsonarista para a maior parte da população. Ocorre que PELA PRIMEIRA VEZ NA HISTÓRIA do país, as elites brasileiras não têm candidato. Significa dizer, em tom profético de perigo, que o processo eleitoral democrático NÃO LHES SERVE em nada. O capital sempre tomou a democracia pelo seu valor resultante e nunca por seu processo. Ela é valorada como positiva se conseguir manter o controle do Estado nas mãos das elites oferendo um espetáculo de democracia formal. Fora disso, qualquer coisa é taxada de “populista”. Desde a instauração da República Café com Leite que esta regra vale para o Brasil. Em 2022, contudo, as elites brasileiras não têm candidato, o que significa dizer que vão jogar contra a democracia, seja logo de início pela tentativa de inviabilização dos candidatos dos blocos majoritários, seja após a eleição pela criação de mecanismos que impeçam ou retirem os poderes garantidos pelas urnas. A história do “semi-presidencialismo” defendida – sem nenhuma vergonha – por membros do STF e parlamentares ligados ao capital.
Repetindo, pela primeira vez na história do país, o processo eleitoral não serve às elites e, conforme Karl Polanyi, quando o capital se divorcia da democracia (por vê-la insuficiente aos seus interesses ou completamente contrária a eles) temos uma guinada para o autoritarismo. A conclusão é quem em 2022 temos dois projetos autoritários concorrendo. Por um lado, temos o personalismo fascista de Bolsonaro e toda sua carga de incompetência e clientelismo corrupto que já é conhecido desde 2018. Por outro lado, e de forma muito mais perigosa, temos um autoritarismo difuso, com ares tecnocráticos (jurídicos ou econômicos) e que pretende implementar exatamente o que Bolsonaro deveria fazer, mas não conseguiu. E nesse segundo caso, defendo a luta contra a fome com panelas “Le Cruzet”, a recuperação do poder de compra para categorias brancas e urbanas, e muito cassetete e ordem judicial de cadeia para todo o resto que pensar em não aceitar.
Cuidado com a terceira via brasileira. Ela pode ser o enterro definitivo da nossa democracia. Com estouro de muito Champagne Veuve Clicquot e petiscos de camarão por todos os tribunais deste país.
Fernando Horta – Professor desde 1996, tendo atuado em todos os níveis, desde pré-escola até universidade. Formado em história pela UFRGS com mestrado em História das Relações Internacionais pela UnB. Doutorando em História das Relações Internacionais na UnB.
https://jornalggn.com.br/destaque-secundario/o-risco-da-terceira-via-para-a-democracia-brasileira/