O sigilo de 100 anos

O sigilo de 100 anos

O sigilo de 100 anos de Bolsonaro

 

 

Em quatro anos de go­verno, Bol­so­naro impôs si­gilo de 100 anos ao menos 65 vezes sobre dados de pes­soas pró­ximas, sob a des­culpa de pro­teger a pri­va­ci­dade. Mesmo pe­didos feitos sob a Lei de Acesso à In­for­mação (LAI), nº 12.527, de 18 de no­vembro de 2011 que con­ti­nham dados pes­soais, Bol­so­naro uti­lizou re­cursos que im­pe­diam o acesso aos dados de agentes pú­blicos en­vol­vidos em casos que con­si­derou sen­sí­veis. Entre eles: com­pras de va­cina contra a COVID-19, que cul­minou em uma Co­missão Par­la­mentar de Inqué­rito (CPI da COVID); a cor­rupção no Mi­nis­tério da Edu­cação (MEC)vi­sitas re­ce­bidas pela pri­meira-dama, Mi­chelle Bol­so­naropro­cesso das ra­cha­di­nhas e prisão de jo­gador de fu­tebol ali­nhado ao Pre­si­dente.

A ação, porém, dis­torce os prin­cí­pios da LAI, co­lo­cando-a em con­fronto com a Lei Geral de Pro­teção de Dados Pes­soais (LGPD) nº 13.709/2018, pro­mul­gada du­rante o man­dato da ex-pre­si­denta Dilma Rous­seff, que visa pro­teger a li­ber­dade e pri­va­ci­dade, assim como os dados pes­soais de todo ci­dadão que es­teja no Brasil, de acordo com os pa­râ­me­tros in­ter­na­ci­o­nais exis­tentes.

A LAI é um ins­tru­mento de trans­pa­rência pú­blica, que parte do prin­cípio de que os ci­da­dãos pre­cisam saber como as de­ci­sões são to­madas e para onde vão os re­cursos pú­blicos, como in­ves­ti­mentos e até sa­lá­rios dos ser­vi­dores. En­quanto a LGPD ga­rante a pro­teção da pri­va­ci­dade e in­co­lu­mi­dade do in­di­víduo, pro­te­gendo-o de pos­sí­veis abusos co­me­tidos pelo Es­tado ou pelas cor­po­ra­ções.

Tanto a LAI quanto a LGPD “têm di­re­trizes vol­tadas ao tra­ta­mento de dados pes­soais pau­tados no tripé con­fi­den­ci­a­li­dade, in­te­gri­dade e dis­po­ni­bi­li­dade, pre­o­cu­pação estas ali­nhadas aos prin­cí­pios da pre­venção e da se­gu­rança”, pontua Il­der­lândio Tei­xeira, membro da Agência Na­ci­onal de Pro­fis­si­o­nais de Pri­va­ci­dade de Dados (ANPPD). O que o go­verno fez foi trans­formar a LAI num ins­tru­mento con­trário ao prin­cípio de sua cri­ação, ou seja, levar o má­ximo de trans­pa­rência pos­sível sobre as ações do Es­tado para toda a so­ci­e­dade, assim que houver so­li­ci­tação.

Sendo assim, o si­gilo de 100 anos é dis­cu­tível quando en­volve agentes pú­blicos, que tomam de­ci­sões que afetam o Es­tado e a so­ci­e­dade. E nisso se abre es­paço para uma in­ter­pre­tação ju­rí­dica. Pois, quando se fala de agentes pú­blicos, as in­for­ma­ções re­fe­rentes a de­ci­sões pú­blicas que mexam com a re­a­li­dade so­cial devem ser pu­bli­ci­zadas. Ainda que a LAI pre­veja 9 hi­pó­teses para res­trição de acesso, dentre elas as re­fe­rentes à “pessoa do Pre­si­dente e vice-pre­si­dente da Re­pú­blica e res­pec­tivos côn­juges e fi­lhos(as)”, essa con­dição só se mantém até o tér­mino do man­dato e deve se re­ferir apenas aos dados pes­soais, com ex­ceção aos casos pre­vistos na LGPD, em seu art. 4º, in­ciso III.

A dis­cussão, por­tanto, gira em torno do con­teúdo sobre o ato em si que, a prin­cípio, não pode ser omi­tido, se assim de­mandar o ci­dadão, pois diz res­peito a pes­soas en­vol­vidas em in­ves­ti­ga­ções já con­cluídas que foram pu­bli­ci­zadas e são de amplo in­te­resse so­cial. 

Tanto a LAI quanto a LGPD foram cri­adas com os ob­je­tivos res­pec­tivos de elevar o grau de con­fi­a­bi­li­dade da coisa pú­blica e dar pro­teção ao ci­dadão contra abusos, para que sejam ga­ran­tidas re­la­ções sau­dá­veis entre os po­deres cons­ti­tuídos e os agentes so­ciais e po­lí­ticos. Re­sulta disso que, pro­te­gendo o ci­dadão de pos­sí­veis abusos e cri­ando um am­bi­ente de con­fi­ança e trans­pa­rência, pode-se al­cançar me­lhores prá­ticas e ações em prol do bem comum.

Es­conder, omitir, des­viar o foco, en­ganar e obs­truir a jus­tiça não con­tri­buem para que se tenha uma con­vi­vência har­mo­niosa entre todos os que são parte in­te­grante de qual­quer so­ci­e­dade. Num mundo trans­ver­sa­li­zado por tec­no­lo­gias al­ta­mente in­va­sivas, em que dados pes­soais valem tanto quanto ouro, é fun­da­mental que todos saibam para onde os re­cursos pú­blicos são car­re­ados, assim como os dados pes­soais estão sendo uti­li­zados.

Pes­soas pú­blicas também pos­suem o di­reito de terem suas vidas pre­ser­vadas, mas existe uma hi­e­rar­quia entre aqueles ci­da­dãos co­muns e quem ge­rencia os bens pú­blicos. Ao uti­lizar pré­dios pú­blicos para re­ceber agentes cujos in­te­resses são pri­vados, aí re­side uma in­ter­pre­tação sobre as leis em que o in­te­resse pú­blico deve estar sempre acima dos in­te­resses de in­di­ví­duos, e se esses in­di­ví­duos buscam van­ta­gens pes­soais, então a pro­teção a seus dados deve ser ques­ti­o­nada. Deve-se pro­teger o pa­trimônio pú­blico, e nisso estão in­cluídas in­for­ma­ções dos re­pre­sen­tantes po­lí­ticos que exercem o poder, abrindo a pos­si­bi­li­dade de crí­tica sobre o que está ocor­rendo e com quais atores esses re­pre­sen­tantes eleitos pela so­be­rania po­pular estão in­te­ra­gindo.

Se existe in­te­resse pú­blico em de­ter­mi­nada in­for­mação, então ela deve ser pu­bli­ci­zada e não pri­va­ti­zada, como co­mentou Carlos Af­fonso Souza, di­retor do Ins­ti­tuto Tec­no­logia e So­ci­e­dade (ITS): “Quando o go­verno re­cusa acesso a um do­cu­mento por cem anos, ele não faz isso porque a in­for­mação é im­por­tante para a se­gu­rança do Es­tado, mas sim por en­tender que ela é pri­vada e que não existe in­te­resse pú­blico nela”. Esse é um bom teste para que as ins­ti­tui­ções pú­blicas de­mons­trem a es­ta­bi­li­dade ne­ces­sária para que res­postas rá­pidas e fiá­veis sejam dadas ao ci­dadão, assim como evitar in­ter­pre­ta­ções dú­bias que possam trans­formar ins­tru­mentos de­mo­crá­ticos em fer­ra­mentas que ali­mentem ma­qui­na­ções pa­la­ci­anas.

Esse é o ver­da­deiro sen­tido da LAI e de como deve operar uma boa go­ver­nança da in­for­mação, por meio da efi­ci­ente gestão de ar­quivos e do­cu­mentos. Ao mesmo tempo, lembra-se que foi neste atual man­dato que o Pre­si­dente da Re­pú­blica vazou, em uma live, dados si­gi­losos sobre in­ves­ti­gação de ataque vir­tual ao Tri­bunal Su­pe­rior Elei­toral (TSE), como sus­tenta o re­la­tório da Po­lícia Fe­deral en­viado ao Su­premo Tri­bunal Fe­deral (STF), no início do ano.

Bruno Nathanson é Ci­en­tista so­cial e gestor de do­cu­mentos. Doutor em Ci­ên­cias da In­for­mação pelo Ins­ti­tuto Bra­si­leiro de In­form. em Ci­ência e Tec­no­logia (IBICT) – Univ. Fed. do Rio de Ja­neiro (UFRJ). Pes­qui­sador do grupo Es­tudos Crí­ticos em In­form., Tec­no­logia e Or­ga­ni­zação So­cial do IBICT.

Pu­bli­cado ori­gi­nal­mente em La­ti­no­a­mé­rica 21.

 

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