O totalitarismo velado
O Avesso da Pele e o totalitarismo velado
Por Cristiano Fretta / Publicado em 11 de março de 2024
Daniel Ziblatt e Steven Levitski, em seu já clássico livro Como as democracias morrem, alertam que a dinâmica das erosões dos regimes democráticos na contemporaneidade não se dá necessariamente pela via da explicitação da força bruta, mas sobretudo por meio da utilização e aparelhamento dos próprios mecanismos democráticos.
Nesse sentido, regimes totalitários encontram no processo eleitoral uma forma segura de chegar ao poder, uma vez que, como dizem os autores, “não há tanques nas ruas. Constituições e outras instituições nominalmente democráticas restam vigentes. As pessoas ainda votam. Autocratas eleitos mantêm um verniz de democracia enquanto corroem a sua essência”.
Para além da alta cúpula de poder, a política encontra na vida cotidiana sua mais efetiva cristalização, uma vez que é por meio das pessoas e suas relações que a ideologia cumpre sua função primordial, que é orientar, mesmo que inconscientemente, os atos dos cidadãos em relação aos diversos agentes envolvidos nas dinâmicas sociais.
Assim, não basta a mudança de um governo para que o cotidiano não seja palco de inaceitáveis impropérios, mas também é essencial que as engrenagens sociais se desloquem em direção a outras matrizes ideológicas para que a sociedade se veja livre das barbáries cotidianas.
Obscurantismo e autocensura
O recente caso de censura contra o excelente e premiado romance O Avesso da Pele, de Jéferson Tenório, demonstra que o Brasil, a despeito de sua retomada democrática, ainda está longe de conseguir suturar o fascismo em seu tecido social.
Por mais que diversas forças da democracia tenham recentemente evitado um golpe de Estado e estejam em processo de continuar punindo os entusiastas do obscurantismo, ainda assim é visível a força que o pensamento autoritário exerce em nossa sociedade, pois afinal de contas, como diria Bertold Brecht, a cadela do fascismo está sempre no cio.
Há, no entanto, uma estupefação um tanto quanto contraditória em relação ao que está acontecendo com o livro de Tenório, e ela pode ser percebida, em especial, pelos professores minimamente comprometidos com os dogmas do cientificismo e da verdade.
Não posso afirmar que a censura contra o livro O Avesso da Pele seja algo que chegue a me chocar pelo seu ineditismo. Tenório é um autor consagrado nacional e internacionalmente.
Ele é, sem dúvida, um dos mais talentosos e bem-sucedidos escritores brasileiros da atualidade. Tudo o que envolva o seu nome ganha a devida relevância.
No entanto, o cotidiano escolar há muito tem sido palco de inúmeras formas de censura que, na grande maioria das vezes, não extrapola os muros da escola e, portanto, não tem respaldo na mídia. Todo professor sabe disso, principalmente se for de escola privada.
A autocensura tem sido, nesse sentido, uma ferramenta poderosa de cerceamento da liberdade de cátedra, uma vez que, na era da hiperexposição e da pós-verdade, qualquer discussão que emane de uma obra literária pode ser utilizada como subterfúgio para que fundamentalistas espalhem o que há de pior no discurso político.
“Vamos nos preservar”. “Esse é um ano de eleição”. “Professor daqui não fala sobre política”. “Na dúvida, não arrisquem”. Ouvi ao longo de minha carreira inúmeras vezes falas como essas, fosse ou não em período eleitoral.
Na prática, como professor de Literatura, acabei reiteradamente por não discutir determinado aspecto de um livro pois sabia que, em caso de repercussão pública negativa, a escola optaria por me demitir e contratar outro profissional.
Foi assim que, por exemplo, analisei Caderno de Memórias Coloniais tomando o máximo de cuidado a cada palavra que dizia, tremendo de medo a cada vez que eu problematizasse a questão do colonialismo português, pois poderia haver uma câmera que estivesse me filmando e cujas imagens captadas me jogariam aos leões das redes sociais.
Somente quem não dá aula pensa que um pensamento como esse é paranoico. Eu chegava a ouvir a voz me dizendo: “Te preserva, Cristiano”. E foi assim, por medo de perder o emprego e coagido pelos chefes, que mudei duas vezes a lista de leituras obrigatórias de uma tradicional escola de Porto Alegre. Excluí, por exemplo, Chimamanda Adichie e coloquei um autor branco em seu lugar.
Sejamos honestos: quem não tem medo de perder o emprego frente a uma máquina poderosíssima em que nós, professores, somos apenas diminutas engrenagens de algo muito lucrativo?
Para além dessa autocensura há, no entanto, os aspectos mais salientes da incoerência entre discursos emancipatórios e humanistas proferidos por essas instituições e a prática.
Durante as eleições de 2018 eu vi – ninguém me contou, repito: eu vi – uma caixa de livros que havia sido retirada das estantes da biblioteca dessa mesma escola.
Após um telefonema de um superior, a bibliotecária foi “orientada” a retirar das estantes toda e qualquer obra que pudesse ser “mal-interpretada”, conforme ela mesma me contou. Na certa, alguém do outro lado da linha disse um “vamos nos preservar”.
Ali estavam, então, em uma tarde de um dia de semana qualquer, livros encaixotados, censurados, calados, excluídos do sistema de dados da biblioteca.
Era um lindo dia de sol. Também fazia sol na Alemanha de 1939, pensei comigo. Nesse mesmo ano, uma colega precisou retirar da lista de leituras alguns contos de Edgar Allan Poe, pois eles estariam, sabe-se lá como, sendo violentos demais, segundo a visão de um ou dois pais.
Nessa mesma época, a biblioteca de uma outra tradicionalíssima escola de Porto Alegre optou por retirar de suas estantes obras de Karl Marx e Paulo Freire, com medo de que o movimento Escola sem Partido trouxesse ainda mais acusações de doutrinação comunista.
Nada disso, no entanto, saiu na mídia. Mais uma vez, a pergunta: quem gostaria de arriscar seus empregos?
Alguns anos depois, em outra escola, a situação chegou àquilo que compreendi como uma espécie de ápice: pais evangélicos haviam questionado por que eu estava falando tanto sobre África na aula.
Quando a escola me trouxe esse questionamento, demorei um certo tempo até perceber que eles estavam falando sobre Os Lusíadas.
É claro que eu falaria sobre colonialismo português e África em uma aula sobre o épico. Afinal de contas, eu deveria falar sobre o que em um livro colonialista cuja maioria das ações se passam na África? Por acaso eu deveria dizer que Os Lusíadas narra uma enorme epopeia contra a cristofobia? Não posso falar nem mesmo sobre um livro chato, pensei comigo enquanto concordei em tomar mais cuidado sobre minhas falas.
É por isso que, em certa medida, eu não compreendo por que tanta estupefação frente à censura de O Avesso da Pele. Não conheço praticamente nenhum professor, principalmente de Linguagens ou Humanas, que nos últimos anos não tenha sentido a afronta empoderada do autoritarismo e a consequente pressão pelo silenciamento por parte dos empregadores.
Abordar pensamento crítico segue sendo uma tensão. No entanto, é preciso salientar que nem todas as instituições de ensino agem da mesma forma. Em geral, as que mais executam o totalitarismo velado são justamente aquelas que mais se utilizam de vocabulário cristão-humanista.
No entanto, o tempo é uma ferramenta muito sábia contra os hipócritas. A História certamente salientará as hipocrisias, sobrepujando os agentes ditos isentos com o manto das verdades inquestionáveis, pois, para além de se censurar livros, acaba-se por censurar valores universais que tantas vezes são propagados e vendidos como produto por seculares redes de ensino.
Cristiano Fretta é escritor e professor de Português e Literatura.
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