O touro da Bolsa faz ‘mooo’
O touro da Bolsa faz ‘mooo’
O touro da Bolsa de Valores é um vexame dourado. E com chifres. Na avacalhação desse último quarto de governo Bolsonaro, com metáforas bovinas se multiplicando pelos campos secos em que pasta um gado magro, ressabiado, sondando o céu enfumaçado em busca de um novo berrante para chamar de mito, o touro da Bolsa é um símbolo poderoso. Mas de quê?
De subserviência cultural, em primeiro lugar. Algo que é consequência –mas também causa, uma coisa realimentando a outra– do servilismo econômico. Ao macaquear o touro da Bolsa de Nova York, o chifrudo da rua 15 de Novembro se confessa, além de puxa-saco, impotente para criar uma mitologia própria. Em vez de poder, como desejariam seus criadores, vira emblema de fraqueza.
Não só de fraqueza, claro. Também de cafonice, jequice, breguice, provincianismo, esnobismo, novo-riquismo, babaquice, transtorno dismórfico e que outro nome se queira dar à deselegância indiscreta de quem, incapaz de se relacionar com a própria imagem, começa a chamar vitrine de shopping de espelho –e nunca mais se enxerga. Sim, estou falando do Brasil.
Embora seja, sob certos aspectos, único e incomparável, o touro da Bolsa tem família. Sua pontuação negativa na escala do senso de ridículo o deixa em companhia numerosa na paisagem. As estátuas da Liberdade da Havan são tão jecas quanto ele, mas levam a vantagem de serem mais abertamente cômicas.
E desde quando isso é vantagem? Desde que ficou comprovado o valor do riso como regulador moral. As estátuas da Liberdade da Havan são exemplos clássicos do estilo artístico e arquitetônico conhecido como kitsch.
Entre outras coisas, o kitsch se caracteriza pelo uso ingênuo –no sentido de naïf, o que não exclui uma possível má-fé– de símbolos consagrados fora de contexto, esvaziados de história.
Como as réplicas da torre Eiffel que se espalham pelo mundo e os Cristos Redentores salpicados pelo interior do Brasil, as estátuas da Havan nada têm de inocentes. No entanto, esse deslocamento de imagens universalmente reconhecíveis se presta de imediato ao prazer do espectador –prazer ingênuo, se ele embarcar na manipulação; ou irônico, se desmascarar o jogo.
O touro da Bolsa também se enquadra no kitsch, mas rir dele não é tão fácil. Em primeiro lugar, trata-se da cópia de um símbolo bem menos difundido, o que denota uma deliberação de mimetizar que complica a brincadeira.
Mimetizar e, digamos, aperfeiçoar com o acréscimo de uma demão de ouro, o que chama mais atenção ainda para o que a clonagem tem de interessado. Caramba, aqueles caras atravessaram a calçada para escorregar na casca de banana do outro lado, não? Fizeram questão mesmo de pagar esse mico.
Além disso, o touro da Bolsa é um símbolo que se planta, orgulhoso do próprio servilismo, no centro nevrálgico da subalternidade brasileira: o templo do capital financeiro.
Não resta dúvida: aquele animal é filho de nossa educação de mentirinha. Caga num solo de segregação ancestral e miséria naturalizada. Tem coração de planilha e alma de zumbi de Hollywood.
Sua carne falsa faz pendant com os ossos que a política econômica de Paulo Guedes botou no prato de milhões de brasileiros. Seu ouro veio dos garimpos ilegais que matam indígenas.
Se o bicho falasse, mugiria: “É sobre isso! Vamos endereçar o problema! No fim do dia é só contratar um coach, setar o goal e fazer o follow-up! Muuuu, quer dizer, mooooo!”.
Fonte: Uol – Cotidiano