O trabalho invisível das mulheres
Economia do cuidado: quanto vale o trabalho invisível das mulheres?
Tema da última redação do Enem, a economia do cuidado está em discussão na sociedade e no governo. Caso fosse remunerada, a segunda jornada feminina acrescentaria 13% ao PIB brasileiro
Mulheres esgotadas e desvalorizadas: esse é o cenário apresentado por diversas pesquisas que tentam medir o custo e o valor social da chamada economia do cuidado. O termo, que ganhou repercussão nas últimas semanas por ser tema da redação do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) deste ano, se refere às atividades de afazeres domésticos e cuidado com pessoas, e diz respeito tanto ao trabalho profissional de empregadas domésticas e babás, como às duplas e triplas jornadas de mulheres que precisam dar conta do serviço fora e dentro de casa.
"Outro nome que damos para isso é trabalho reprodutivo, que é gerar, mas também cuidar, criar, trazer valores, socializar indivíduos, e, historicamente, as mulheres são responsáveis por ele. Estamos falando sobre uma das mais vitais instituições da sociedade, sem esse trabalho realizado no âmbito doméstico, não há trabalho produtivo", explica Camila Galetti, doutoranda em sociologia pela Universidade de Brasília (UnB) e pesquisadora em teoria feminista
Segundo pesquisa divulgada em outubro pelo Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getúlio Vargas (FGV IBRE), o trabalho não pago de cuidados nas famílias, em média para todo país, é 65% realizado por mulheres. A divisão é ainda menos igualitária em regiões mais pobres e com menores níveis de instrução, como Norte e Nordeste.
Caso fosse contabilizado, esse trabalho teria acrescentado 13% ao Produto Interno Bruto (PIB) brasileiro, nos últimos 20 anos, valor equivalente ao PIB do estado do Rio de Janeiro. Para monetizar um trabalho que na maioria das vezes passa desapercebido, a fundação usou como parâmetro os valores recebidos por profissionais que realizam as mesmas atividades de forma remunerada.
Globalmente, um estudo do Comitê de Oxford para o Alívio da Fome (Oxfam), mostra que essa realidade é parecida. Mulheres realizam mais de três quartos do trabalho de cuidado não remunerado no mundo, o que teria contribuído com US$10,9 trilhões para a economia global em 2020, se recebessem um salário mínimo pelas tarefas que realizam.
O levantamento da FGV IBRE afirma que a enorme diferença de trabalho observada entre homens e mulheres é resultado de uma construção social histórica que destina às mulheres o lar e aos homens os espaços públicos. Apesar dos avanços no mercado de trabalho, a responsabilidade com a família continuou quase que exclusivamente sobre as mulheres ao longo das duas décadas em que a pesquisa foi conduzida.
O excesso de trabalho no lar acaba as impedindo de alcançar melhores posições na vida profissional. "Por outro lado, os homens conseguem se ajustar a essas demandas justamente porque têm uma mulher em casa, que vai arcar com esse trabalho imprescindível, mas não remunerado", afirma o relatório do estudo.
"Nos chama a atenção o fato de não haver grandes mudanças na quantidade de horas que homens e mulheres se dedicam aos afazeres domésticos. Para um período tão longo, a realidade mudou pouco, apesar do aumento na renda per capita dos brasileiros", diz Claudio Considera, economista coordenador da pesquisa.
Lorena Gullo, 34 anos, mora em Águas Claras, é professora e mãe de três crianças: João, 10, Elis, 8 e Malu, 2. Se dividindo na rotina entre a escola e sua casa, ela diz que tem menos ajuda do companheiro, pai da filha mais nova, do que gostaria. "Não dividimos as responsabilidades por igual, e ele mesmo tem consciência disso. Eu fico com uma parte muito maior, até porque, com relação aos meus filhos mais velhos, eu sou mãe solo, os pais deles não participam da rotina de nenhum dos dois. As decisões e ações são sempre realizadas por mim", ela comenta.
A pedagoga relembra que teve que abandonar muitas oportunidades na carreira por causa do cuidado com os filhos: "Já tentei por três vezes fazer uma pós-graduação, mas a rotina me engole e eu vou deixando de lado." A sobrecarga acabou afetando também a sua saúde. "Faço tratamento desde 2019 com psiquiatra, neurologista e psicólogos, pois adoeci com tanta demanda", conta.
Exaustão
Um levantamento realizado pela Think Olga, ONG que trabalha para conscientização de questões de gênero na sociedade, mostra que o caso de Lorena não é isolado. As mulheres representam sete em cada dez diagnósticos de ansiedade e depressão no Brasil. A pesquisa mostra que fatores como a maior exposição à violência doméstica e sexual, oportunidades educacionais e de emprego limitadas, o que leva à pobreza, além da alta carga de cuidado com outros, contribuem enormemente para o desenvolvimento de transtornos mentais pelas mulheres. O problema é ainda maior entre as mais vulnerabilizadas, mulheres pretas e pardas.
"Imagina... Tenho privação de sono, tem dias que não tomo café da manhã nem almoço, para sair na rua e ver a luz do sol, só domingo mesmo, quando vou para a igreja. Pensando bem, o único momento em que não estou tomando conta de alguém ou da casa são os meus cinco minutos de banho por dia", conta Marília Pereira da Silva, 24 anos. Faz um mês que ela deu à luz a Caio, mas também é mãe de Isaac, de 4 anos. A família mora na Ceilândia.
Marília acorda todos os dias às 6h30 da manhã, alimenta as crianças, faz companhia para elas, coloca para cochilar. Às 12h, o bebê acorda, e ela vai preparar o almoço com ele no colo. "Depois do almoço, finjo que a louça não está suja e fico com o Caio no colo ou brincando com ele. Às 16h, o Caio dorme e o Isaac está com bastante energia, então é a vez dele brincar. Às 17h, começo a limpar a casa, outra vez com uma criança no colo", continua. Alguns dias, as crianças vão para cama só depois da meia-noite, mas Marília não consegue descansar: "Tenho insônia por causa do remédio que eu tomo para depressão."
A estudante parou o curso de saúde coletiva, na Universidade de Brasília, durante a gravidez do segundo filho. Ser dona de casa não era seu plano para o futuro, mas a exaustão e a doença emocional a fizeram suspender, por um tempo, a carreira profissional.
"Uma maternidade menos sacrificante para mim viria com uma divisão mais justa nas tarefas domésticas. Embora meu marido ajude, não é 50% de responsabilidade para cada, e isso é tão normalizado que muitas vezes nem eu e nem ele percebemos", diz.
A socióloga Camila Galetti comenta que, para manter as coisas como são, "é mobilizada uma narrativa de que homens não têm jeito para esse tipo de trabalho. Mas as mulheres só conseguem realizar porque foram ensinadas e viram outras fazerem, isso está no campo das desculpas que se dão para que os homens continuem não tendo que ocupar o espaço do lar".
Marília afirma que, embora não seja totalmente reconhecido como tal, as tarefas domésticas são um trabalho exaustivo. "Então, sim, eu gostaria de receber do governo um salário para cuidar da minha casa e dos meus filhos em tempo integral", defende.
Essa e outras propostas de remuneração do trabalho das mulheres no cuidado de indivíduos economicamente não produtivos e na manutenção dos espaços familiares vêm sendo discutidas pelo Ministério do Desenvolvimento Social, que abriu consulta pública, até 15 de dezembro, para receber contribuições da sociedade que vão ajudar a construir um marco conceitual sobre o tema.
O economista Carlos Considera pondera que valorar o trabalho invisibilizado das mulheres não significa apenas oferecer uma remuneração por ele. "É sobre a criação de políticas públicas, como creches, políticas reprodutivas e outras medidas possíveis para liberar a mulher para exercer outras funções no mercado remunerado, mesmo sendo mães e esposas", explica.
Esse é o desejo de Marília, que quer voltar à universidade, terminar os estudos, passar em um concurso… "Quero sair de novo com meus amigos, viajar, quero viver, sabe?".
Domésticas
Socióloga Camila Galetti fala sobre o privilégio de homens manterem as coisas como estão
(foto: Arquivo pessoal)
Camila pontua que, para que as mães consigam ter acesso a esses espaços fora de casa, a solução é a contratação da mão de obra de empregadas domésticas: "Para a gente poder se emancipar e realizar o trabalho produtivo em empresas, outras mulheres têm que assumir nosso papel. São, majoritariamente, mulheres racializadas, que muitas vezes estão fazendo isso de forma precarizada. Há uma estratégia de não valorizar esse trabalho porque muitas famílias não poderiam pagar se ele fosse bem remunerado."
Dilca Lopes Teixeira tem 50 anos e trabalhou em casas de família quando jovem, mudou para o setor de limpeza em empresas, mas há dois anos voltou a ser faxineira. Ficou viúva cedo e para criar os quatro filhos sozinha, precisou deixá-los em creches e escolas.
Ao longo das décadas, especialmente após a aprovação da Emenda Constitucional 72, conhecida como a PEC das domésticas, viu a profissão ser mais valorizada. "Ganhamos melhor hoje, também somos tratadas melhor. Acho que as pessoas hoje percebem que sem alguém do lado delas para limpar, cuidar dos filhos, não dá para viver. Mas ainda tem patrões que queriam que a gente trabalhasse de graça, nos massacram. E o preconceito ainda é grande", diz Dilca.
A Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua - PNAD Contínua de 2022, realizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) demonstrou que o Distrito Federal é uma das unidades da federação em que as mulheres passam mais tempo cuidando da casa e de familiares, atrás apenas do Rio Grande do Sul. A média do DF é de 15,1 horas semanais.
"Isso tem relação com o nível de escolarização e renda, um dos mais altos do país, e com uma certa consciência de classe. O trabalho doméstico no Brasil tem uma herança da escravidão. Com o processo de legalização desses serviços, se aumenta custos. Quem tem mais esclarecimento não vai se comprometer com trabalho ilegal", comenta Michella Reis, analista do IBGE em Brasília.
Ela também ressalta que fatores como o auxílio de eletrodomésticos facilitam a vida de mulheres das classes mais altas no cuidado com a casa, tornando o serviço mais palatável. "A mulher negra e pobre fica mais submetida a um processo de violência patrimonial, tem menos suporte do estado e da família, com isso, além de trabalhar mais, fica mais vendida na busca por igualdade frente aos parceiros", acrescenta.
A PNAD demonstrou também a diminuição de horas dedicadas ao cuidado de crianças no DF, que a analista atrela à queda da fecundidade e não a uma maior divisão das tarefas. "O resultado social da desvalorização do trabalho reprodutivo pode ser o envelhecimento da população", aponta Michella.