O traste

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O traste

Juremir Machado

Cientistas tentam definir o traste. Ele possui características ambivalentes. É acelular como um vírus e de alimentação heterotrófica como um protozoário. Dá coices. Defeca pela boca sempre que incomodado. Não é capaz de empatia. Só pensa no próprio umbigo e nos interesses da sua matilha. Já mostrou várias vezes que não é humano, podendo ser desumano, inumano e pré-humano. Há quem o veja como pós-humano, mas isso exigiria que tivesse chegado a essa condição sem ter passado pela humanidade, o que parece tecnicamente improvável. Em situações graves, comporta-se com leviandade. Em momentos de leveza, diz coisas pesadas e preconceituosas.

Não desenvolveu o menor respeito pelo próximo. Mente sempre que seus interesses exigem. Nega as suas mentiras com novas mentiras. Vê o mundo dividido em duas categorias: uns mandam e os outros obedecem. Só uma falha no processo de seleção natural pode justificar a sua chegada ao topo da pirâmide do poder. Uma explicação popular compara-o a baratas depois de uma explosão nuclear. Outra hipótese sobre sua ascensão explora o ressentimento de uma camada social e a desinformação de outra. Sem contar o oportunismo cínico de uma parte dos parasitas de sempre. Não se sabe se o traste foi produzido em laboratório ou potencializado a partir da natureza. Certo é que sua ação deixa rastros e estragos. Qualquer semelhança com algum ente de outra esfera natural é coincidência.

Filósofos estudam a genealogia do traste. Alguns se dedicam à sua origem, ao ponto exato de partida, ao momento em que se deu o choque produtor de seu aparecimento, que seria parecido com a extinção dos dinossauros. Perguntam: de onde vem o traste? Como foi possível que o traste surgisse? Um estudo alentado tem por título “O traste ab ovo”. Biólogos examinam a composição genética do traste. Um romancista lançou um volume de 900 páginas intitulado: “Traste: modo de utilização”. Sociólogos investigam as relações de poder que permitiram ao traste sair da insignificância e da mediocridade para uma posição de comando. Antes de sua incrível mobilidade, a pergunta era: quem é o traste na cadeia alimentar? A resposta era simples: nada. Hoje é ele quem responde: tudo.

Analistas do futuro projetam a trajetória do traste. Quem será ele amanhã? A maioria não hesita: nada outra vez. Do nada ao nada. O principal é o seu legado. Uma palavra sobressai: destruição. O traste não deixa nada intacto. Por onde passa queima florestas, espalha medo, sufoca oponentes, asfixia a ciência, dissemina fake news, discrimina pessoas, promove retrocesso, persegue minorias, defende o obscurantismo. O traste é negacionista em saúde, terraplanista em política, reacionário em comportamento, extremista em tudo. Como se proteger do traste? O caminho mais seguro, conforme especialistas, é a informação. Tem um ciclo de quatro anos. Depois disso ele pode ser eliminado com um apertar de teclas. Não há tratamento precoce garantido nem vacina. A extirpação é cirúrgica.

 

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