Ódio e analfabetismo ideológico
Retórica do ódio e analfabetismo ideológico
João Cezar de Castro Rocha, professor de Literatura Comparada da Uerj e pesquisador do CNPq analisa o discurso de ódio que capturou o país e o papel das redes sociais nesse fenômeno
Por Marcelo Menna Barreto / Publicado em 9 de março de 2021
João Cezar de Castro Rocha é professor titular de Literatura Comparada da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj) e Pesquisador do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Seu livro Guerra cultural e retórica do ódio (Editora Caminhos), lançado no dia 12 de janeiro, é um ensaio escrito em prosa literária que oferece uma descrição inovadora do bolsonarismo. Autor de 13 livros e organizador de cerca de outras 30 publicações, com trabalhos publicados em inglês, alemão, mandarim, espanhol, francês e italiano, Rocha apresenta o que chama de dinâmica própria deste movimento político que tem assolado o Brasil. Para ele, há uma estrutura de pensamento coesa que sustenta o atual presidente da República, através de uma visão de mundo bélica que se expressa em uma linguagem específica: a retórica do ódio. No calor da prisão do deputado federal bolsonarista Daniel Silveira (PSL-RJ), Rocha falou ao Extra Classe: “Precisamos substituir a retórica do ódio pela ética do diálogo”
Extra Classe – O senhor afirma que Bolsonaro foi eleito legitimamente para a presidência do Brasil, mas que desde o dia da sua posse tem desconstruído essa legitimidade. Por quê?
João Cezar de Castro Rocha – Esse é um paradoxo constitutivo do projeto bolsonarista. Jair Messias Bolsonaro chegou ao posto máximo da República por meio de eleições democráticas; portanto, no começo de seu governo, possuía uma legitimidade que não deve ser negada. Ora, aceitar a derrota do candidato que apoiamos é condição indispensável do jogo democrático. Em alguma medida, a crise atual principiou com a ação irresponsável do candidato derrotado em 2014, Aécio Neves (PSDB), e suas ações para estorvar o segundo mandato de Dilma Rousseff. Ao mesmo tempo, as ações do governo Bolsonaro pretendem destruir o legado da Constituição de 1988 e sinalizam uma pulsão autoritária que é absolutamente ilegítima numa democracia. A condução desastrosa, criminosa até, no enfrentamento da pandemia de covid-19 retirou do governo o fiapo de legitimidade que ainda restava. Um presidente eleito democraticamente torna-se ilegítimo se suas ações atentam contra a democracia: esse é o caso de Bolsonaro.
EC – Em seu livro mais recente, o senhor também diz que o bolsonarismo se estrutura sob uma visão bélica, expressa na retórica do ódio: a de que o adversário tem que ser eliminado. Ele fala em sobretaxar as redes sociais, que alguns jornais não deveriam circular, etc. É, digamos, um discurso que atinge o lado mais primitivo do ser humano, mas que está presente, não?
Rocha – Esse é um fenômeno transnacional e que favoreceu de forma decisiva a ascensão de governos de extrema-direita em todo o mundo. Já passamos da hora de dizer as coisas pelo nome próprio: a pauta de costumes da Damares Alves não é conservadora, mas reacionária; Jair Messias Bolsonaro não é um político de direita, porém de extrema-direita. O desafio atual envolve outro paradoxo: as redes sociais são o mais sofisticado meio de comunicação jamais inventado, pois elas propiciam o “milagre da simultaneidade”: uma ação ocorre, é transmitida no exato instante de sua ocorrência, e essa mesma ação é recebida e interpretada enquanto a ação ainda está ocorrendo! E essa interpretação imediata gera novas ocorrências, que têm lugar nas próprias redes sociais. Contudo, essa espiral produz uma violência simbólica que somente cresce: como lidar com essa energia explosiva?
EC – Como?
Rocha – Eis o paradoxo: a fim de lidar com a tecnologia mais sofisticada, recorre-se ao padrão mais primitivo de todos: o mecanismo do bode expiatório, que permite canalizar o ódio contra um alvo fixo, disciplinando a violência. Repare bem: não é verdade que o bolsonarismo não sobrevive sem a invenção constante de inimigos que devem ser expiados em rituais nas redes sociais?
EC – Por falar em retórica do ódio, às vezes o presidente fala uma coisa e logo após volta atrás. Isso é uma forma de testar limites?
Rocha – Em alguma medida, sim; limites serão constantemente testados, pois o projeto bolsonarista pretende impor uma “democracia iliberal” ou uma “democratura”, conceito preciso proposto por Ruy Fausto. Em outras palavras, o projeto bolsonarista implica lançar mão de instituições democráticas – eleições livres, liberdade de expressão, imunidade parlamentar, etc. – para destruir a democracia desde seu interior.
EC – A famosa história do autogolpe…
Rocha – Sim. Precisaremos estar constantemente atentos e fortes: a forma do bolsonarismo é o golpe, no caso, um autogolpe, como, aliás, já ocorreu na história republicana. Em 1937, Getúlio Vargas impôs a Ditadura do Estado Novo (1937-1945) por meio de um autogolpe, pois ele já era presidente. A seu modo, a renúncia de Jânio Quadros, em agosto de 1961, incluía um arriscado cálculo de retorno nos braços do povo e, por isso, com poderes autocráticos: um autogolpe, pois. Durante a Ditadura Militar (1964-1985), após o impedimento do general Artur da Costa e Silva, por motivo de doença, em agosto de 1969, o vice-presidente, o civil Pedro Aleixo, foi impedido de assumir a presidência. Os ministros das três Forças Armadas assumiram o poder de 31 de agosto a 30 de outubro de 1969, quando a Junta foi substituída pelo general Médici, em cujo governo a repressão alcançou níveis só comparáveis aos piores momentos do Estado Novo. Portanto, o autogolpe não é exceção na cultura política nacional… Eis o projeto bolsonarista!
EC – O senhor também diz que existe uma coesão no discurso bolsonarista. De fato, o que mais se vê são apoiadores fazendo malabarismo para sustentar as posições contraditórias do presidente. Isso gera desgaste na ponta, no cidadão comum?
Rocha – O bolsonarismo, associado ao ensino de Olavo de Carvalho, consiste num sistema de crenças, com alto nível de coesão interna – e precisamos reconhecê-lo. Ademais, e esse tema é central, embora negligenciado com frequência, a produção de estimulações contraditórias é uma das técnicas mais eficientes na criação de fidelidade canina de fiéis de uma seita a seu guru ou de militantes de uma causa política a seu líder. Deseja uma fonte? O parágrafo 13 do livro O jardim das aflições (1995), de Olavo de Carvalho, discute, em 13 páginas muito bem escritas, modos de manipulação psíquica coletiva. Numa expressão: lavagem cerebral! O principal instrumento para acelerar o processo de influenciar corações e mentes? Fornecer doses elevadas de estimulações contraditórias. Um único exemplo? O ex-ministro Sérgio Moro, antes de sair do governo, era o herói da raça, o juiz capa e espada da República; imediatamente após sua saída do Ministério da Justiça, ele se tornou um reles traidor! A estratégia bolsonarista é muito bem calculada.
EC – Outros elementos da retórica bolsonarista são as suas pautas de costumes e teorias conspiratórias. Isso, aliás, sempre esteve presente em governos de extrema-direita, no Nazismo e no Fascismo, não?
Rocha – De fato, o triunfo eleitoral de Bolsonaro é incompreensível sem a adesão do deputado federal do baixo clero à pauta dos costumes, que ele reuniu a um anticomunismo bolorento de almanaque da Guerra Fria. Na reconstrução que fiz do percurso de Bolsonaro rumo ao Planalto, a junção dos dois elementos foi decisiva. O mais surpreendente: essa junção se materializa pela primeira vez com grande impacto na malograda candidatura de Bolsonaro à presidência da Câmara dos Deputados, em fevereiro de 2011.
EC – Pode nos relembrar?
Rocha – No discurso do candidato, quais foram os principais pontos de sua proposta? Atacar a Comissão Nacional da Verdade e denunciar o (inexistente) “kit gay”! Em 2011, Bolsonaro havia entendido que precisava ampliar seu perfil, que até então se limitava aos interesses corporativos dos militares e das forças de segurança. A pauta de costumes foi seu passaporte para se apresentar como um político de alcance nacional. Entender esse movimento me parece mais importante do que aplicar rótulos que, no fundo, já foram tão usados que não têm mais força semântica.
EC – Bolsonaro, nessa releitura do discurso fascista, bebe no trumpismo. Como ele consegue sustentar um discurso de nacionalista para a sua base, mostrando tanta subserviência a Trump, batendo continência para a bandeira norte-americana, por exemplo?
Rocha – Reitero um ponto: o bolsonarismo foi muito fortalecido pelo “sistema de crenças Olavo de Carvalho”. Faço questão de ressaltar: trata-se de um “sistema de crenças”. Em outras palavras, a adesão ao projeto bolsonarista é integral e aceita todos os seus termos, ainda que sejam contraditórios. No livro, evoco o conceito de “dissonância cognitiva”, tal como foi desenvolvido por Leon Festinger, para entender o Brasil contemporâneo. E proponho um conceito novo: “analfabetismo ideológico”.
EC – O que é analfabetismo ideológico?
Rocha – O analfabetismo ideológico não supõe a existência objetiva de uma dificuldade (no limite da impossibilidade) de interpretar um texto simples – isso para não pensar em formulações complexas, que, para o analfabeto funcional, são verdadeiramente indecifráveis. Pelo contrário, em geral, o analfabeto ideológico tem boa formação, não enfrenta dificuldade alguma para interpretar textos elaborados e, na maior parte dos casos, possui uma boa expressão oral. Seu problema, portanto, não é de ordem cognitiva, porém política: ele reduz o mundo, qualquer texto e todas as informações que recebe ao papel de simples projeção de suas concepções políticas. O resultado é a ágora impossível do Brasil pós-político: o caos cognitivo bolsonarista.
EC – A respeito do deputado Daniel Silveira (PSL-RJ). Em seu livro, o senhor diz que a visão bolsonarista busca a atualização da Lei de Segurança Nacional (LSN) em tempos democráticos. Não é uma ironia ele ter sido preso e denunciado com base na própria LSN gerada no período ditatorial?
Rocha – Mas, atenção, todo cuidado aqui é pouco! Analisemos com objetividade os 19 minutos do vídeo que levou o deputado à prisão. Perceba-se a espiral da violência verbal: à medida que o vídeo avança, a agressividade somente cresce e a tal ponto que o próprio deputado “esclarece” duas vezes que está exaltado. A metáfora a que recorre é reveladora (e inaceitável): literalmente, a “surra” que seria aplicada aos ministros do STF pelo “povo” evoca e sugere nada menos do que um linchamento! O meio mais primitivo que se conhece para disciplinar a violência gerada pela mesma linguagem empregada pelo deputado. Não é tudo: o ataque frontal ao Judiciário é parte da estratégia golpista que define a forma do bolsonarismo. Se o STF for manietado, a democratura estará instalada. E há mais: a mentalidade de Bolsonaro foi definida pela LSN de setembro de 1969, a lei vigente na época de sua formação militar, que ocorreu entre 1974 e 1977. Na LSN de 1969, a palavra morte aparece 32 vezes! E a pena de morte é prescrita em 15 artigos! Mais do que uma LSN, trata-se de um culto à morte. Qual a base da LSN de 1969? A ideia de que o mundo se divide entre os meus e os que me são próximos ou cúmplices, e todos os outros são vistos como inimigos internos que devem ser eliminados. Não há aí uma definição completa do bolsonarismo?
EC – Por que o bolsonarismo não deve ser visto como caricato?
Rocha – Se não vejo mal, esse equívoco preparou o caminho para o triunfo eleitoral de Jair Bolsonaro em 2018 e pode até favorecer sua reeleição. Escrevi meu livro precisamente para passar da caricatura do personagem Bolsonaro à caracterização do bolsonarismo. Precisamos esquecer a figura do presidente; não podemos ser reféns do bolsonarismo e passar quatro anos em disputas narrativas que somente mantêm a retórica do ódio em plena circulação. Sejamos modestos, no fundo, realistas: os bolsonaristas são mestres na fabricação de fatos alternativos, alternative facts, e na difusão de notícias falsas (fake news). E eles estão muito à frente na manipulação das redes sociais e, sobretudo, do WhatsApp.
EC – Nessa lógica, como caracterizar o bolsonarismo?
Rocha – Trata-se de movimento político de massas, com incomum capacidade de instrumentalizar o ressentimento coletivo e a pulsão antissistêmica, mantendo seus apoiadores em estado de mobilização permanente por meio da retórica do ódio e da invenção de inimigos em série. É um movimento não somente autoritário, como também fundamentalista, já que não admite a presença da alteridade, pois todo aquele que não seja espelho das convicções do líder torna-se inimigo interno a ser imediatamente eliminado.
EC – No livro, o senhor aponta um paradoxo que anuncia um colapso nessa história toda: o êxito do bolsonarismo significa o fracasso do governo Bolsonaro. Por quê?
Rocha – O êxito incontestável do bolsonarismo conduz ao necessário fracasso do governo Bolsonaro. Eis o paradoxo da guerra cultural bolsonarista, como a interpreto: sem seu tempero, o bolsonarismo não consegue manter as massas digitais em mobilização permanente; com a ubíqua guerra cultural, porém, não é possível administrar uma realidade complexa como a brasileira, pois a busca constante de inimigos desfavorece a consideração de dados objetivos. Infelizmente, a crise mundial de saúde, provocada pela covid-19, somente acentuou o inevitável colapso produzido por uma mentalidade conspiratória à frente de um país com as dimensões continentais do Brasil. Desvelar o paradoxo do bolsonarismo é o propósito do meu livro, a fim de superar os impasses criados pelo movimento bolsonarista e sua instrumentalização do ressentimento.
EC – Como superar tudo isso?
Rocha – Precisamos substituir a retórica do ódio pela ética do diálogo. Em lugar do desejo perverso de aniquilação do outro, visto como inimigo a ser eliminado, vale apostar no reconhecimento do outro como um outro eu – e precisamente a diferença amplia meu horizonte existencial, enriquecendo minha visão do mundo. Afinal, 2022 é logo ali, quase já, e o que realmente importa não é derrotar Bolsonaro, porém superar o bolsonarismo.
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