Olhos de EJA
Olhos de EJA
O impacto ao ler “Olhos da Água”, de Conceição Evaristo, sempre me fez pensar como seria aquela história caso os protagonistas da obra estivessem frequentando uma escola de Educação de Jovens e Adultos oferecida pelo Estado como parte de uma política pública em favor da educação daqueles que mais vulnerabilizados. Isso porque sempre imaginei, por exemplo, em seu conto “Maria”, sem dúvida o texto que na vida mais me faz marejar meus Olhos D’água, aqueles personagens descritos como sendo os educandos que se busca alcançar quando se trata de EJA.
Afinal para onde mais iria Maria à noite depois do serviço a não ser para seu lar ou para uma turma de EJA? Esperando o ônibus, cansada, a empregada que havia recém recebido uma gorjeta da patroa almejava comprar os remédios e os alimentos dos seus filhos. O sonho de que seus filhos pudessem comer melão pela primeira vez, junto com os demais restos da ceia da patroa, faziam os olhos daquela mulher lacrimejar assim como os meus enquanto lia o conto. Talvez, a partir daquela aula de Ciências assistida na semana passada, Maria pudesse lembrar que melão é a fruta do meloeiro, planta pertencente à mesma família da melancia e do pepino. Creio que pepino seus meninos já deveriam ter comido. Aquele corte em sua mão que doía provocado pela faca laser de sua patroa podia ser amenizado com um pouco de açúcar na pele. O saber popular de sua avó estava correto. Segundo Joana, professora de Química. Ao ser colocado em uma ferida, o açúcar absorve a umidade do local. Isso minimiza o risco de da proliferação de bactérias, geralmente, as principais culpadas pelos problemas de cicatrização. Aquelas palavras ecoavam em sua cabeça memorizadas. Será que por causa dela ter lembrado do conhecimento de sua avó quando a professora perguntou o que eles sabiam que era bom para cicatrização? Tá bom que Fátima, a pedagoga, falaria que era para Maria ir num médico para ouvi-lo, independente de qualquer coisa. Mas ela não tinha nem dinheiro nem tempo para isso. A noite já chegara e na manhã seguinte acordaria cedo para ir ter mais um dia de trabalho.
Ao subir no transporte os joelhos de Maria doeram igual naquele primeiro dia de aula de Thiago, o professor de Educação Física. Já doía no trabalho do dia a dia. Era melhor não comentar com a patroa, lembrou. O ônibus que ela pegou não estava cheio, mas ela lembrou das aulas do Professor Antônio, de Física, sobre a lei da inércia. Era bom não ficar parada ali com aquelas sacolas em pé. Um freada busca do motorista a faria voar na mesma quilometragem que o transporte atingira antes do ponto de frenagem. Resolveu sentar na frente, ali perto do cobrador, esperando a próxima parada para transpor a roleta. Olhando pela janela reparou que a paisagem urbana realmente havia acabado com a vegetação das cidades como bem havia observado a Professora Luciana de Geografia. Tão bonitos aqueles cachos dela, pensou. — Um dia vou poder deixar os meus assim sem a patroa reclamar. Avistando aquela cena daquela mulher brincando com seu cabelo, um homem sentado ao fundo levantou e pagou a passagem de Maria. As emoções da mulher explodiram em seu coração, por todo seu corpo, em cada pedaço de seus poros. Era ele, o pai de um dos seus filhos. Seu primeiro amor. Ao avistá-lo e observar sua virilidade, Maria lembrou das discussões sobre o papel da masculinidade na Grécia, do Professor de Filosofia Pedro. Lembrou que de seu ex-marido, como de todos os homens, desde tempos remotos, era cobrado socialmente um comportamento assertivo dominante, enquanto dela, Maria, o acolhimento pacífico ao Lar. Se soubesse que agora ela estava na escola, pensou. Talvez nem deixaria isso acontecer. Seria muito tarde para chegar em casa e para cuidar dos filhos ainda pequenos. Que bom que já tinham crescido. Pensou por um segundo se poderiam reconstruir sua relação sem esses papéis sociais tão definidos agora nessa nova fase. Lembrou da discussão de Paulo, seu professor de Sociologia. Maria já tinha tido dois filhos depois daquele casamento, mas continuava sozinha. A tal da solidão da mulher negra, tratada em aula, realmente existia em sua vida.
E de repente após conversas sussurrantes, desejos, vontades, possibilidades de o reencontro inesperado com aquele homem um parceiro dele saca a arma e aponta para todos no transporte público. Maria olhou para o seu companheiro. Lembrou de Junior, professor de História, dizendo da estatística policial de morte a homens negros. Que o crime tem cor para a polícia. Sentiu que aquilo não acabaria bem. O comparsa de seu ex-homem passou por ela e não pediu nada. Aquele amigo de seu ex-marido lembrava tanto José ou até mesmo João, seus colegas de sala. Eram tão parecidos. De tantos jeitos. Os homens desceram com o resultado do assalto em mãos correndo em fuga e Maria foi desperta de suas lembranças quando um grito tomou o transporte. Alguém gritou que “aquela puta safada conhecia os assaltantes”. Maria assustou-se. Ela não conhecia assaltante algum. Conhecia o pai do seu primeiro filho. Conhecia o homem que tinha sido dela e que ela ainda amava tanto. Ouviu uma voz: “Negra safada, vai ver que estava de conluio com os dois. Lincha! Lincha! Lincha!” A morte parecia certa com a vontade violenta daquelas pessoas de encontrar um culpado do assalto na figura daquela mulher negra. De repente ouviu uma voz:
— Calma, pessoal! Que loucura é esta? Eu conheço esta mulher da escola. Todos os dias, mais ou menos neste horário, ela toma o ônibus comigo. Ela é minha colega de aprendizado. É a Maria.
Maria reconheceu aquela voz. Era João. Ao seu lado estava José. Ambos interpuseram seus corpos ao seu lado evitando que outras pessoas se aproximassem. Também estavam indo para a escola. Ambos a reconheceram da turma nova que há menos de uma semana haviam acabado de iniciar. Ela não tinha reparado que eles estavam no ônibus.
As pessoas dispersaram-se. A polícia chegou e Maria testemunhou aos policiais que sabia quem era aquele homem que assaltou o ônibus. Que era o pai de seu filho mais velho junto de um comparsa e que não o via há mais de 20 anos. Lamentou vê-lo no crime. Pediu aos policiais que apressassem seu testemunho porque a aula da professora Tatiana de Matemática já tinha começado e que, finalmente, agora ela estava aprendendo a contar o dinheiro que ganhava da patroa pra conferir se estava certo. Além disso, tinha aula de Português com o professor Júlio e ler e escrever bem era seu sonho. Não podia faltar a aula hoje. Acabou sendo liberada tempos depois conseguindo chegar para o segundo horário.
Mais tarde, chegando em casa, contou para seu filho mais velho que o pai lhe mandara um abraço, um beijo, um carinho. Preferiu deixar o resto pra lá. Quem sabe em um próximo reencontro convencia seu ex-homem a ir à escola com ela. Talvez pudesse até ser uma forma de se reaproximarem. O importante é que naquela noite, depois da escola, seus filhos, sim, comeram melão. Naquela noite uma família dormiu junto. Ninguém virou estatística da aula de Sociologia.
Imagem de destaque: Pillar Pedreira/Agência Senado
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