Onde estamos nós?
Dom e Bruno: Onde estamos nós?
Há mãos que violentam corpos e almas insurgentes. Mas, por trás delas, existem cabeças que vivem bem distantes do inferno amazônico. É preciso desmascará-las também. Vivemos em guerra. Bruno e Dom decidiram de qual lado estar
Por Angela Pappiani Publicado 15/06/2022
Onde estão Bruno e Dom? Muita gente ao redor do mundo se faz essa pergunta há mais de 10 dias. Infelizmente nada se sabe oficialmente até agora. Apesar de toda a esperança guardada no coração, fica cada dia mais difícil acreditar que eles retornarão a suas casas, ao convívio de suas famílias, ao trabalho dedicado junto a seus colegas abnegados, movidos pela força da vida e da beleza, buscando segurar o céu que a todo momento desaba sobre nossas cabeças.
Mesmo com todas as evidências terríveis de um crime, de todo o empenho da imprensa séria em trazer dados sobre a situação complexa dessa região dominada por interesses de criminosos, nada se pode afirmar sobre o que aconteceu. O pouco que se sabe é fruto do trabalho incansável de busca movido por amigos e admiradores, do conhecimento do território e da habilidade de gente que vive naquele lugar, que partilha dos mesmos ideais e da mesma luta que transformaram esses dois homens nas vítimas mais recentes do Estado criminoso que vem se estabelecendo com mais força e respaldo a cada ano neste país.
Talvez as mãos que apertam o gatilho ou desferem os golpes sobre os corpos de pessoas indefesas sejam identificadas e cumpram o papel de bodes expiatórios de um crime muito maior, encobrindo sofisticados esquemas e os verdadeiros criminosos que vivem bem longe do inferno em que se transformaram muitas regiões da Amazônia. Isso por conta da pressão internacional, já que a ação envolveu um jornalista estrangeiro. Se fosse “somente” mais um funcionário da Funai, um indígena ou um aliado dos indígenas, o caso nem teria tomado a proporção que tomou, como o assassinato de Maxciel Pereira dos Santos, amigo e parceiro de Bruno, que aconteceu em 2019, em pleno dia, na principal avenida de Tabatinga, e até hoje segue sem identificação e punição dos culpados.
Não conheço Dom e Bruno, nunca os encontrei pessoalmente. Sei do compromisso e do envolvimento deles na grande “aventura” que tem sido defender o direito à vida de pessoas e outros seres que integram ecossistemas fundamentais para o futuro deste planeta que chamamos Terra.
Conheço pessoalmente outras pessoas que como eles lutam no Vale do Javari, na Terra Yanomami, nas florestas do Acre, no Alto Rio Negro, no Maranhão, na Bahia, no Mato Grosso do Sul e em outros lugares deste país que parece ter perdido o rumo.
Conheço muitas outras pessoas que têm suas casas incendiadas ou metralhadas, que são espancadas e ameaçadas, que sofrem diretamente as consequências da destruição do lugar onde nasceram, dos valores fundamentais e do sentido da vida.
Conheci muitas pessoas que perderam a vida nessa luta em mais de 40 anos de aproximação com os povos originários e povos tradicionais. E isso dói. Continua a doer num luto que parece não terminar nunca.
Sinto-me duplamente impactada por esta tragédia ainda por se concluir. Como jornalista e como aliada à causa, como profissional e como “parente”, mãe e avó de mulheres e crianças que se identificam com suas origens indígenas e que contribuem com sua beleza, sabedoria e anseios para que o céu não desabe. E me pergunto como estar ativa, do lado certo dessa guerra, contribuindo para fazer reverberar a voz dessa gente, sua luta e seus desejos. Porque é urgente, necessário, vital escutarmos o que os povos da floresta têm a dizer. Esses e os povos de outros lugares sagrados, mantidos à custa de um esforço sobrenatural de quem lá vive.
Porque a violência assombra esses lugares há muito tempo, há séculos, na verdade. Uma onda depois da outra, um ciclo econômico – como se costuma chamar a exploração e o extermínio – após o outro. Sempre há grupos poderosos, que detêm o controle político e econômico, a postos para saquear os bens naturais como se a natureza: a floresta, os rios, os minérios que estão no subsolo, plantas e seres que vivem sobre a terra, fossem mercadorias prontas para apropriação e consumo, commodities para exportação, recursos para enriquecimento fácil e rápido, as custas de vidas.
Seguimos com o mesmo pensamento colonial dos primeiros europeus que chegaram aqui para saquear a madeira e depois o ouro, e depois as pedras preciosas, e depois, e depois… O pensamento de quem se acha melhor, superior, com direito a escravizar e aprisionar e a fazer do outro – que nem é humano – ferramenta descartável para trabalhar e produzir.
Difícil dizer se hoje a situação é pior do que já foi, porque sempre foi de muita desigualdade e crueldade. Talvez hoje as imagens e as notícias – as verdadeiras e as inventadas – circulam com mais rapidez e seja possível acompanhar em tempo real o desastre. Dos séculos anteriores, ficaram poucos relatos dos que lutavam contra a guerra que se impunha. O que prevalece é a narrativa oficial adequada aos interesses dos colonizadores, enaltecendo sua colaboração à formação e ao progresso do país. Documentos oficiais registram a declaração de “guerra justa” a povos indígenas, justificando a matança remunerada para desocupação das terras a quem queria produzir. Estratégia que parece retornar de tempos em tempos.
Algumas imagens impactantes testemunham a tragédia no século passado: a ferocidade das máquinas abrindo estradas na Amazônia, aldeias inteiras sucumbindo às epidemias, árvores agonizando e envenenando as águas dos lagos formados pelas barragens, povos antes orgulhosos e saudáveis mendigando nas beiras de estradas, nos povoados violentos que surgiam com garimpeiros, seringueiros, posseiros. Uma imagem em especial registrada no período da ditadura ficou gravada em minha memória: um homem (?) com sorriso no rosto e seu facão na mão direita, parte ao meio o corpo de uma mulher indígena pendurada pelos pés como um animal de caça. O horror que essa imagem ainda provoca me faz pensar no abismo que separa as pessoas: mouros e cristãos, brancos e indígenas, brancos e negros, nós e eles.
As listas de perseguidos, com os nomes de pessoas que desempenham o papel de guardiãs do lugar sagrado ao qual pertencem, são compartilhadas pelos criminosos pelas redes sociais, as estratégias de apropriação de madeira, terras, minérios, peixes, bichos e gente são discutidas online, os maquinários caríssimos necessários para a exploração ilegal do ouro surgem do nada e se espalham com rapidez transformando as paisagens. Da mesma forma que o armamento pesado, helicópteros, barcos potentes, sistemas de internet sofisticados, tecnologia para burlar documentos que “esquentam” os produtos da exploração ilegal, propostas de lei para alterar a proteção assegurada pela Constituição ao ecossistema e aos povos tradicionais, fortalecem a ação dos grupos criminosos que disputam cada pedacinho de terra.
As estatísticas mostram os números absurdos de pessoas mortas ou ameaçadas por sua posição de defesa de um território, de um modo de vida: indígenas, ribeirinhos, quilombolas, extrativistas, profissionais aliados dessas lutas, servidores públicos conscientes de seu dever. Mas esses números não representam a realidade. As ameaças e os desaparecimentos são diários, contínuos, não mensurados. Essa gente que insiste em viver, em defender o lugar da vida, é ameaçada e violentada continuamente. Desde hostilidades da população local que acredita que a proteção a territórios impede o seu desenvolvimento e por isso se dá o direito de promover xingamentos, boicotes, ameaças diretas, ataques, perseguições. Até a destruição de casas e roças, expulsão sistemática de famílias, ataques a bala e morte. A morte direta, sem direito de defesa, com a arma apontada e disparada. A morte pela doença, pela fome, pela dependência do usurpador que destrói as possibilidades de vida, pela contaminação do mercúrio e do agrotóxico. A morte pela perda da esperança.
É muito duro presenciar as mudanças radicais nas aldeias deste país ao longo dos anos. É doloroso ver as crianças perderem o direito ao mergulho no rio porque ele está contaminado ou porque alguém pode passar de barco e atirar com sua arma de fogo. É duro presenciar o medo das mulheres de serem capturadas e violentadas, ou de terem que trocar o seu corpo por um punhado de comida para alimentar os filhos porque já não se pode cultivar a roça ou já não há mais peixes e caça. É doloroso ver as pessoas expulsas de suas casas, ameaçadas, tendo que viver incógnitas, afastadas de todos, sob proteção da justiça, num apartamento apertado na periferia de uma grande cidade. Pessoas essas que sempre viveram no campo, com a natureza, plantando e colhendo, e que hoje sofrem de depressão e doenças do coração partido pela quebra em suas vidas. Pessoas que foram arrancadas da beira de rios para a construção de hidrelétricas e hoje estão jogadas em periferias violentas, sem água e saneamento, sem saúde e educação, sem o alimento do coletivo. Pessoas que enfrentam hoje em suas comunidades a violência do crime organizado, do tráfico de drogas, de homens fortemente armados que ameaçam e aliciam os jovens. Essas pessoas têm nome. Tinham dignidade, um lugar bom para viver, tinham alegrias e sonhos. Hoje são fantasmas assombrados pela realidade.
Vivemos em guerra. Bruno e Dom decidiram de qual lado da guerra estar. Trabalharam para levar informação e habilidades novas a povos com conhecimento tradicional para que tivessem chance na guerra que enfrentam, para trazer informação e vozes de dentro da floresta para o conhecimento de muita gente. Para que essas pessoas também pudessem escolher o seu lado na luta.
Hoje, Bruno e Dom são todos que se mobilizam para esclarecer o que aconteceu, para levantar os verdadeiros motivos por trás dessa violência, para mostrar o momento decisivo em que estamos, o quanto estamos perdendo como povo, como nação, como humanidade.
O governo atual assumiu o poder com o firme propósito de entregar o país a organizações criminosas, abrir as porteiras para a exploração final do que ainda resta. E para isso precisa desmoralizar as populações tradicionais, alterar a legislação que assegura a proteção a essas populações e ao meio ambiente, criando falsos motivos sociais e econômicos para apoiar os invasores dos territórios protegidos e todo o ataque ao patrimônio do país. E, para isso, precisa também desacreditar a cultura, a arte, a ciência, a educação, a gentileza, o sentido de comunidade. E por mais que tente esconder a corrupção e o envolvimento direto com o avanço dos crimes sobre os territórios e a população tradicional, os fatos estão documentados e apontam os verdadeiros culpados pelo estado de barbárie a que chegamos. Em algum momento, e espero que seja em breve, terão que responder por esses crimes.
Nos resta seguir na luta, denunciando e desmascarando os responsáveis por este e todos os outros desaparecimentos. Mesmo com toda a dificuldade, há que se manter um sorriso no rosto e cantar junto com as crianças indígenas para que nosso coração não se endureça diante de tanta dor.
https://outraspalavras.net/descolonizacoes/dom-e-bruno-onde-estamos-nos/