Ordenando o caos
Ordenando o caos: “Democracia em Vertigem” contra a história oficial
Nada ali é mentira, tudo aquilo aconteceu, tudo aquilo é matéria histórica precisando de avaliação e leitura justa
Democracia em Vertigem tem o mérito de ordenar a leitura histórica de um processo extremamente conturbado de desorganização institucional e de emergência da violência na política. Os passos que o filme dá no sentido daquela explosão do país são claros e seguros. Apesar da perplexidade que atravessa tudo.
Nada ali é mentira, tudo aquilo aconteceu, tudo aquilo é matéria histórica precisando de avaliação e leitura justa. Diga-se de passagem, os elementos principais e a organização das forças históricas pró golpe, são exatamente os mesmos que destaquei na leitura que fiz da crise do governo Dilma, ainda em 2015, em “Dilma Rousseff e o ódio político”, as múltiplas forças que se abateram sobre ela – bancos, Lava Jato e Sérgio Moro, política envenenada com Aécio Neves, Eduardo Cunha, PSDB e PMDB, avanço da nova direita e extrema-direita nas ruas, isolamento político da presidente, problemas sobre o sentido da corrupção do sistema político e governo.
São as forças que, somadas e coordenadas, multiplicando umas às outras, levaram à queda do governo, já plenamente colocadas em jogo no primeiro ano do segundo mandato da presidente, e que o filme reconhece e nomeia, demonstrando cada uma delas, à posteriori. Para mim, a leitura política estrutural correta do processo, fundamentalmente político. O filme tem momentos bastante interessantes de cinema. Alguns especiais. A leitura cinematográfica do Palácio da Alvorada, que nunca vimos por dentro, uma verdadeira obra de arte que porta em si as origens falhadas da utopia de um Brasil plenamente moderno, e seu destino equívoco e melancólico a um tempo.
A caracterização viva da canalha rebaixada e corrupta que operou a política do golpe no Congresso, em uma imagem em que os monstros comuns da política brasileira não podem fugir a eles próprios, de nenhum modo. Com acento especial para a natureza da ação e do caráter de Aécio Neves. O modo interessante – que muitos colocaram em cheque por parcial e auto-romantizado – de incluir os compromissos familiares contraditórios no processo histórico do país. E as excepcionais, e raríssimas, como documento de cinema político, imagens junto a uma espécie de intimidade de decisões históricas de Lula, naquele tempo de perigo, indefinições e imprecisões, humanas e políticas, radicais e agonísticas. Inclusive dos seus erros. Inclusive os importantes. Todos motivos materiais e formais de um filme bom político, que os americanos sentiram, porque essas intensidades estão lá de fato. Como obra de arte didática, no sentido brechtiano do termo, Democracia em Vertigem cumpre função histórica significativa: a de confrontar e barrar a leitura hegemônica violenta e falsa que a direita fez da ordem do seu próprio poder, e da história torpe da sua vitória.
A história contada da crise política pelo próprio golpismo, que é também quase igual à oficial midiática. Se demonstra que aqueles narradores, violentos e grotescos, não são minimamente confiáveis. O documentário mantém tensa e exposta a história de uma violência institucional e política inominável, que todos os participantes que geraram a crise, todos imensamente duvidosos, não aceitam de nenhum modo que seja contada. Mas ali está ela, a história antioficial, realmente acontecida. Nas telas de cinema do mundo, organizada e muito nítida. A fratura violentíssima e grave do Brasil, que nos levou até a modalidade de neofascismo que chegou ao poder não pode mais ser ocultada depois do filme, como os senhores da programação cotidiana da política desejavam. O fato da violência política do golpismo ter dado em fascistas de todos os calibres brasileiros no poder do Brasil é o grande recibo histórico da falsificação dos valores e forças que moveram o impeachment.