Órfãos de escola
Órfãos de escola, cresce migração de jovens para a EJA
Triste ironia que o país de Paulo Freire siga sem rumo na educação de jovens e adultos. Agora mais um desafio: quase 400 mil pessoas saíram de turmas do ensino fundamental e médio regular para classes de EJA, segundo o Censo Escolar
A história de Nunes, resumida em um parágrafo, é uma rapsódia de muitas outras histórias. Dá pistas sobre o direito à educação negado, fala sobre um contingente imenso de 57 milhões de jovens e adultos brasileiros fora da escola que não conseguiram completar a educação básica, mostra a vontade de aprender como um valor social e deixa claro a vital importância da boa educação de jovens e adultos (EJA), modalidade negligenciada em orçamentos e políticas públicas.
Mas, há um detalhe novo, que não pode passar despercebido, e funciona como (mais) um sinal de alerta: o espanto de Nunes ao entrar em uma sala de EJA repleta de jovens é o mesmo que vem intrigando pesquisadores da área: estudos indicam que, cada vez mais, a EJA é o espaço de jovens brasileiros de 19 a 29 anos — portanto, recente e precocemente saídos da escola regular.
O Censo Escolar de 2022 mostra que metade dos estudantes de EJA do fundamental 2 e ensino médio possui menos de 25 e 24 anos, respectivamente, confirmando uma tendência verificada pelo menos desde o final da década passada (portanto, antes da pandemia, que agravou um quadro já instalado).
Conforme o sociólogo Felipe da Silva Santos, pesquisador na Fundação Roberto Marinho, há uma surpreendente migração de estudantes do ensino regular para a EJA: 230 mil alunos saíram do ensino Fundamental 2 e 160 mil deixaram o ensino médio. “É um número muito alto e precisamos realizar esse debate”, avalia Santos. “Há 9 milhões de jovens com idade entre 15 e 29 anos que estão fora da escola, e precisam de EJA”, diz.
Razões da debandada
O que leva um estudante a deixar a escola regular para, logo depois, buscar a EJA? As razões são diversas, como é diverso o público da EJA: as dificuldades econômicas, as tendências demográficas, o desencanto com a escola e fatores regionais influem na decisão dos jovens. Mas, o denominador comum dos que optam por esse caminho é uma história que a educação brasileira conhece bem: a exclusão. Repetências frequentes, evasão e abandono que desembocam em uma elevada taxa de distorção idade-série — termo técnico que define alunos que estão com dois ou mais anos de atraso em relação à idade esperada para a série que frequentam. A partir do 7º ano do ensino fundamental, pelo menos um em cada quatro alunos brasileiros encontra-se nessa condição.
A saída da escola torna-se, então, quase um caminho natural e a retomada do Exame Nacional para Certificação de Competências de Jovens e Adultos (Encceja), exame no qual o Enem se inspirou e promove a certificação dos estudantes na modalidade, abriu uma espécie de rota de retorno, ou de fuga, para jovens em uma errática jornada escolar. Não por acaso, o número de inscrições no Encceja vem atingindo recordes, tendo chegado a quase 3 milhões em 2019.
Para o pesquisador Roberto Catteli Jr., diretor do curso de EJA do Colégio Santa Cruz, em São Paulo, e coordenador da área na organização social Ação Educativa, trata-se de um fenômeno complexo e assustador. “São alunos que vão sendo excluídos da escola e voltam para tentar novamente ou buscar mais empregabilidade”, avalia.
Essa tendência é apenas a ponta do iceberg de um problema social que os governos fingem não ver. Lançado há menos de um ano, o documento Em busca de saídas para a crise das políticas públicas de EJA, realizado pela Ação Educativa, Cenpec e Instituto Paulo Freire, dimensiona o desafio.
A EJA vem registrando brutal queda de matrículas, acompanhada de não menos alarmante diminuição de recursos. As matrículas caíram de 4,3 milhões, em 2010, para 2,7 milhões, em 2022. Segundo o estudo, o gasto empenhado em 2022 representa 3% do que foi gasto em 2012. Foram destinados R$ 342 milhões em 2012 e apenas R$ 5,5 milhões 10 anos depois, registra o estudo. No ano em que mais se gastou com EJA, isso não representou sequer 2% das despesas nacionais com educação. Hoje, não atinge nem 0,04%. O reconhecimento das especificidades da EJA passou ao largo também de políticas educacionais importantes, como a própria BNCC.
“A Base teve diferentes versões para o ensino fundamental e médio, e em nenhum momento do processo de sua elaboração as especificidades do público jovem, adulto ou idoso foram consideradas. Pesquisadores, gestores públicos, educadores e educandos da modalidade também não foram consultados”, aponta o mesmo estudo.
Assim, hoje faltam referenciais que pautem a produção de livros didáticos, plataformas educativas e a própria inclusão da EJA no Sistema Nacional de Avaliação da Educação Básica (Saeb).
Novo perfil do estudante
O novo perfil do aluno de EJA traz impactos relevantes para a sala de aula, a começar do trabalho pedagógico. As escolas precisam de apoio para encontrar caminhos para se conectar com ele. “Para dar conta desse novo perfil, precisamos investir em formação de professores e metodologias ativas”, acredita a educadora Eliani Geralda de Oliveira Franca, diretora da Escola Estadual Padre João Botelho, em Belo Horizonte, Minas Gerais.
Segundo Eliani, que vê dia a dia o rejuvenescimento das turmas de EJA, a necessidade de trabalhar e a desmotivação alimentam a nova onda. Entre outras características, o público jovem se mostra mais flutuante, e as taxas de evasão crescem. “Tenho turmas que começaram com 30 alunos e terminaram com 11”, exemplifica. Na sua visão, o futuro da EJA passa pela aproximação com modelos de profissionalização, e perto do local de trabalho do estudante.
Uma enquete realizada pela revista Educação em setembro confirma esse cenário, sendo a maior parte dos participantes educadores de SP. “Na minha escola perdemos muitos alunos que foram promovidos sem estarem alfabetizados, perceberam que não conseguiam acompanhar e desistiram”, relata um dos participantes. “A prefeitura poderia fazer campanhas para chamar os estudantes que necessitam terminar seus estudos”, complementa outro. Contudo, 53,3% das escolas participantes da enquete que não possuem turma de EJA afirmam que este ano tiveram 15 pessoas ou mais interessadas em estudar.
Em Goiás, na mesma Arco-Íris que encantou o pintor Valdir Vicente Nunes, a diretora Orita de Souza Medrado também busca se adaptar. Conhecida na região como uma diretora dedicada, que saiu literalmente às ruas para convidar os adultos a voltarem à escola, durante e depois da pandemia, Orita estuda novos caminhos. “O modelo atual não funciona para os alunos mais jovens”, avalia. Com a alta evasão, agora, a escola tenta desenvolver um projeto de EJA a distância para estimular os estudantes a persistirem na trajetória escolar. Assim como Eliani, Orita também acredita que é preciso buscar elos com o mundo do trabalho.
Parece uma conclusão óbvia, mas não é tanto assim. O pesquisador Catteli Jr. estudou os questionários do Encceja e diz que, para os alunos, o desejo de aprender é tão importante quando o tema da empregabilidade. “Claro que a EJA profissionalizante pode ser um bom caminho, mas não é verdade que seja apenas isso que os alunos querem”, diz. Para ele, são necessários mais dados para compreender as aspirações desse público.
Além disso, lembra, muitas vezes a ideia de profissionalização se confunde com subemprego e trabalho menos qualificado, sem perspectiva de carreira.
“Muitos desses estudantes para os quais se quer a educação profissional sofrem ainda com problemas de letramento, não conseguem dar conta da leitura e da escrita. Não adianta formação técnica sem base adequada”, alerta.
Na escola da diretora Eliani, é essa uma das razões da flutuação dos jovens na EJA: as persistentes dificuldades de leitura. Ou seja, mesmo no ensino médio, a EJA recebe estudantes que saíram da escola regular sem estarem alfabetizados, o que deveria ter acontecido ainda no fundamental 1. “Abrimos turmas para apoiar os alunos nessas defasagens, mas eles não se engajam”, lamenta.
Diversidade precisa ser considerada na EJA
André Lázaro é nome sempre lembrado nas discussões sobre os rumos da educação de jovens e adultos no Brasil. Entre 2007 e 2010, foi secretário de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade (Secadi) do Ministério da Educação, e hoje desenvolve diversas ações no amplo espectro da educação democrática, diversa e inclusiva na Fundação Santillana.
Para ele, o primeiro passo para entender os desafios dessa etapa é reconhecer que se trata de um universo não apenas numeroso, mas muito diverso. Diferentes contextos sociais e culturais devem ser considerados — do campo, urbano, das periferias, jovens, adultos e idosos, de diferentes gêneros, na educação indígena e quilombola, entre outros. “A EJA é sobretudo diversa e precisa haver diversidade também na oferta”, lembra Lázaro.
Mas, ainda é preciso vencer preconceitos: a própria visão de EJA necessita ser repensada. “Não podemos ficar focados em ressaltar as carências das populações, mas o enorme potencial que tem essa população”, lembra. Lázaro se refere ao próprio reconhecimento dos saberes que os diferentes públicos da EJA trazem consigo, inclusive os tradicionais. “O país certamente ganharia muito”, diz.
Para ele, ao mesmo tempo em que se assegura a elevação da escolaridade, a EJA deve buscar certificar a competência e os conhecimentos que as pessoas já trazem. “A escola deve permitir a inserção social dos indivíduos em um mundo desigual e excludente, mas não se pode esquecer de reconhecê-las, inclusive para estimular seu retorno à escola. A gente precisa criar caminhos que fortaleçam a esperança de vida digna”, finaliza.
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