Os excluídos das cívico-militares

Os excluídos das cívico-militares

Os ‘excluídos’ das cívico-militares: alunos e professores denunciam excessos e pressão para deixarem as escolas

Relatos mostram que estudantes são expulsos até por uso de piercing e revelam rotina tensa entre docentes e PMs; defensor do modelo condena atitudes e diz que 'disciplina se conquista com respeito'

Por Bruno Alfano — Rio    23/07/2023 

 

Professora Viviane Mendes, fez boletim na delegacia contra PM que a teria maltratado na escola

 

Helena (nome fictício), de 16 anos, escolheu uma escola cívico-militar do Distrito Federal por necessidade. Não se interessava pelo formato militarizado, mas precisava estudar de manhã para trabalhar de tarde. Num dia de maio deste ano, não podia tirar o piercing. Gripada, ela não teve como remover a fina argolinha do nariz inflamado e dolorido.

Sua surpresa foi chegar à escola e se deparar com um PM que, irritado e aos gritos, lhe deu um ultimato: era o piercing ou a aula. Esse é apenas um dos muitos relatos de excessos, alguns enumerados numa denúncia do Ministério Público Federal, desde que o modelo de escolas cívico-militares, incentivado pelo ex-presidente Jair Bolsonaro, ganhou o debate nacional. Parte dos pais, atraídos pela disciplina militar e promessa de resultados pedagógicos, apoia o projeto, que agora chega ao fim no governo Lula.

— Ele ficou muito alterado e me mandou sair. Fui embora chorando — lembra Helena. — Fiquei desamparada na rua.

Aluna do 1º ano do ensino médio, a jovem tinha uma rotina pesada. Acordava às 4h30 para estar às 7h15 na escola. Pegava ônibus e metrô. Ela conta que se chegasse um minuto atrasada era barrada na porta — o que aconteceu uma vez. A adolescente diz que se submeter a regras duras era a forma de garantir vaga na rede pública e na parte da manhã.

 

Aluna foi expulsa de sala de aula por conta de um piercing — Foto: Brenno Carvalho
Aluna foi expulsa de sala de aula por conta de um piercing — Foto: Brenno Carvalho

 — Com o dinheiro do trabalho, eu pagava a internet da minha casa — afirma a aluna, que, naquele dia, chegou mais cedo ao trabalho e chorou parte do dia no banheiro sabendo que teria que mudar de escola e, consequentemente, perderia o emprego com o qual ajudava a família em dificuldades.

Pesquisadora do fenômeno da militarização das escolas e professora da UnB, Catarina Santos observa que, ao privilegiar questões que não são cruciais para a educação, como padrões estéticos, as escolas cívico-militares acabam prestando um desserviço e tendo um resultado diferente do que se espera de um ambiente propício ao aprendizado.

— A polícia venceu mais uma vez. A aluna sai da escola e o militar fica. Para eles, esses jovens são descartáveis — diz.

Ação judicial

Os excessos cometidos em busca de padrões estéticos e de comportamento fizeram com que o procurador Lucas Dias, do Ministério Público Federal do Acre, acionasse a Justiça para impedi-los. Entre as proibições, estão cabelos volumosos soltos, penteados “exóticos” e topetes. A ação, se acatada, vale no país todo.

— Antes de entrarmos na Justiça, emitimos uma recomendação ao governador do Acre, que nos respondeu com um documento que é plágio de um artigo encontrado na internet — conta Dias.

Na ação do MPF, foi listada uma série de incidentes que agora pode servir de base para mudanças de condutas na gestão dessas unidades de ensino. Apesar da determinação do governo de pôr fim ao projeto, alguns estados e municípios já disseram que podem manter suas unidades próprias, o que preocupa os especialistas.

O que aconteceu com Helena não foi muito diferente do que outra aluna, ainda mais jovem, de apenas 14 anos, teve que enfrentar. Por causa do cabelo volumoso, ela foi impedida de assistir à aula no ano passado numa escola cívico-militar de São Sebastião do Passé, na Bahia. Pelo “manual” do aluno desse modelo, conforme relata a ação do MPF, “cabelos volumosos serão usados curtos ou presos em coque com redinha preta”. Já cabelos curtos e lisos podem ser usados soltos.

A Comissão de Direitos Humanos da Câmara de Deputados do DF organizou um documento com violações de diferentes tipos. Entre elas, estão o caso de uma estudante que contou ter sido ameaçada por policiais que a obrigaram a retirar as tranças do cabelo e o de um PM que agrediu violentamente um aluno na tentativa de separar uma briga.

O levantamento cita ainda que alunos em ensino remoto durante a pandemia eram visitados em casa por policiais militares em viaturas a título de saber se as atividades pedagógicas estavam sendo realizadas. À comissão, a PM alegou que era uma “busca ativa para evitar evasão”.

A pressão que afasta os alunos indesejados pelo modelo, sob a justificativa de que eles é que não se adequaram à escola, também afeta professores. Viviane Mendes Couto, de 37 anos, chegou a fazer boletim de ocorrência contra um PM que trabalhava na mesma unidade que a sua, em Manaus. Com uma relação já desgastada com os militares, que entravam em sala para observar suas aulas, ela diz que desabou em choro ao ser maltratada por um agente durante uma visita de pais de alunos.

— Eles entravam na sala para assistir às aulas e conferir o conteúdo que estávamos dando. Qualquer professor que não se adequasse ao sistema autoritário eles pressionavam para que deixasse a escola. Você não pode pensar criticamente, não pode questionar uma decisão porque já é uma afronta, fica na mira deles e começa o assédio — denuncia ela, que deixou a unidade.

O governo Bolsonaro gastou, entre 2020 e 2022, quase R$ 100 milhões em escolas cívico-militares. Já em 2023, a administração do presidente Lula não empenhou mais nenhum recurso. Oficiais superiores, que estavam na reserva, recebiam gratificações que passam de R$ 9 mil, como no caso dos coronéis.

Processos de seleção

Para Alexsandro do Nascimento Santos, secretário de Educação Básica substituto que assina o parecer para o fim do programa, a aceitação e o engajamento vêm da promessa de “investimentos robustos de infraestrutura e de uma gestão com a força de imposição que o signo das forças militares mobiliza em comunidades escolares empobrecidas”.

Ainda segundo o documento, pesquisa da UnB mostrou que tanto os Colégios Militares quanto as Escolas de Aplicação apresentaram resultados educacionais e eficiência superiores às escolas públicas regulares. Porém, “ao mensurar a eficiência dos dois tipos de instituição, apenas 10% dos Colégios Militares alcançaram a classificação de eficientes frente a 28,5% das Escolas de Aplicação”, diz o autor.

Segundo Ivan Gontijo, gerente de Políticas Educacionais do Todos Pela Educação, a ideia dessas escolas parte das premissa de que a rigidez da disciplina garantiria maior aprendizagem, com base nas experiências dos colégios militares. No entanto, ele argumenta que essas unidades, assim como os colégios de Aplicação, têm processos de seleção e alunos de nível socioeconômico mais alto do que a média das escolas públicas. Nas cívico-militares, há reserva de vaga para filho de militar.

— Sobre as escolas cívico-militares, não existe avaliação de impacto da aprendizagem. Não podemos afirmar que conseguiram atingir seus objetivos. E essa é uma pauta que está longe dos desafios reais da educação, como alfabetização, expansão do tempo integral e garantia de melhores condições de trabalho dos professores — afirma Gontijo.

Modelo tem apoio de pais e políticos

Apesar das críticas, o modelo ainda tem forte respaldo em parte da sociedade. Logo após o anúncio de que o Ministério da Educação acabaria com o programa federal de repasse de recursos, governadores e prefeitos correram para anunciar que suas escolas seriam mantidas militarizadas ou que o formato seria até ampliado na rede.

Mesmo cidades pequenas preferiram absorver os custos dos militares a ter o desgaste da desmilitarização. A secretaria municipal de Educação de Taquara, no Rio Grande do Sul, anunciou, por exemplo, que vai tentar mobilizar a bancada federal de deputados para conseguir emendas que banquem o projeto. Já Maracanaú, no Ceará, anunciou que já teve aprovada na Câmara dos Vereador local a criação do Programa de Escolas Cívico-Militares no Município de Maracanaú e, por isso, as duas unidades já estão garantidas e mais uma será criada.

O almoxarife Claudio Santiago da Silva, 49 anos, decidiu colocar a filha de 14 anos na Escola Cívico-Militar Professora Maria Alexandrina Sampaio, em Natal, Rio Grande do Norte. Ele conta que, em sua avaliação, os alunos é que precisam se adequar aos colégios, e não o contrário.

— Ainda vejo no fardamento, nos militares, pessoas competentes, que a gente deve confiar — diz o pai da aluna. — E a partir do momento que eles colocam essa ideologia (linha dura) na cabeça dos jovens, eles vão ter mais atenção no ensino porque eles sabem que têm que seguir as normas do colégio.

De acordo com Capitão Davi, presidente da Associação Brasileira de Educação Cívico-Militar (Abemil), as famílias que se interessam pelo modelo buscam a qualidade de ensino das escolas militares e “uma maior sensação de segurança dentro do contexto escolar”. Segundo ele, eventuais excessos devem ser “devidamente punidos, no rigor e à luz da lei”.

— A disciplina se conquista com o respeito ao próximo, deixando claro que todos temos direitos e deveres. A vida em sociedade necessita de ordem e respeito aos direitos dos outros, sem se negligenciar o cumprimento de deveres — afirmou.

 

FONTE:

https://extra.globo.com/brasil/educacao/noticia/2023/07/os-excluidos-das-civico-militares-alunos-e-professores-denunciam-excessos-e-pressao-para-deixarem-as-escolas.ghtml?fbclid=IwAR2uVdAAWUneTuph0TGHzLTwOAWDkg-K205Weu6re3d2szBgGTIfSXVG2kM 




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