É também nessa chave que deve ser entendida a postura diametralmente inversa do general Mark Milley, que comandava o Estado Maior Conjunto das Forças Armadas norte-americanas quando Donald Trump tentou desestabilizar a democracia mais antiga do continente não aceitando a derrota eleitoral e insuflando movimentos de fanáticos que terminariam invadindo, armados, o Congresso dos EUA pela primeira vez desde a guerra da independência nos anos 1800. Milley também foi envolvido na tentativa vil de Trump de arrastar os militares para o centro da sua empreitada para de permanecer no poder. Mas agiu como um bom servidor público: seguiu a lei. A história a seguir foi publicada pela revista The New Yorker e republicada pela Pública com exclusividade. A maior agonia de Milley, que o fez refletir sobre o papel que cabia a um comandante militar, foi quando Trump, malandramente, o levou a caminhar ao seu lado logo depois da Guarda Nacional (que nos EUA usa uniformes camuflados como o Exército) ter dispersado manifestantes que protestavam em Washington contra a morte de George Floyd em Mineápolis. Era 1º de junho de 2020, e Milley foi chamado por Trump para uma curta caminhada da Casa Branca até a Praça Lafayette, minutos depois de manifestantes do movimento Black Lives Matter terem sido dispersados de forma violenta do local. No caminho, o general percebeu que tinha se metido numa tentativa do presidente de projetar uma imagem de poder – e arrastar os militares para uma questão interna do país. Ele decidiu sair no meio do caminho, mas as fotos já haviam sido tomadas.
Na semana seguinte, Milley decidiu se desculpar em um discurso de formatura na Universidade de Defesa Nacional. “Eu não deveria ter estado lá. Minha presença naquele momento e naquele ambiente criou uma percepção de envolvimento dos militares na política interna”.
“Foi um erro com o qual aprendi”.
Por aqui, tivemos um momento bastante semelhante em maio de 2020, quando o ex-ministro da Defesa Fernando Azevedo e Silva sobrevoou um acampamento de manifestantes em frente ao STF que chegou a atirar rojões sobre a corte, em maio do ano passado. O general, no entanto, não pediu desculpas em público. Menos de um ano depois, ele foi defenestrado do Ministério e junto com ele os comandantes das Três Forças se demitiram em protesto, o que marcou uma derrocada final da adesão das forças à empreitada autoritária de Bolsonaro. O novo ministro da defesa, Braga Netto, hoje exalta o golpismo e visita acampamentos de manifestantes que pedem intervenção militar. Os três comandantes foram no mesmo caminho de corroer toda e qualquer pretensão de neutralidade das Forças Armadas. Já Milley não foi demitido, mas chegou a escrever uma carta de demissão. Achou, depois de muito pensar, que abandonar seu cargo seria uma resposta covarde a um presidente que tentava criar caos institucional. Guardou a carta na gaveta e seguiu no trabalho até o fim do governo. “Foda-se”, disse à sua equipe. “Eu vou lutar contra ele”. Assim como Bolsonaro, Trump foi empurrando cada vez mais longe na sua tentativa de meter os generais no seu devaneio ditatorial. Diante da sua recusa em reconhecer sua derrota, Milley elaborou um plano para evitar o que mais temia, que Trump poderia desencadear uma crise externa, como uma guerra contra o Irã, a fim de desviar a atenção ou criar um pretexto para uma tomada de poder, ou uma crise doméstica para justificar o emprego de militares nas ruas, impedindo a transferência de poder. Anotou quatro objetivos principais: - Garantir que Trump não iniciasse uma guerra desnecessária no exterior.
- Certificar-se de que os militares não seriam usados nas ruas contra o povo americano com o objetivo de manter Trump no poder.
- Manter a integridade dos militares.
- Manter sua própria integridade. Para alcançá-los, forjou uma aliança secreta com o Secretário de Estado, Mike Pompeo, que seguia repetindo em público que apoiava Donald Trump. Fizeram um “plano de aterrisagem” que incluía reuniões matinais todos os dias para medir a temperatura da Casa Branca. Buscavam uma transição de poder pacífica, para “pousar este avião com segurança”, mesmo com ambos os motores quebrados, o trem de pouso está travado. “Estamos em situação de emergência”, diziam.
Para cumprir seu plano, Milley passou a falar várias vezes com membros do partido Democrata para assegurar que o Exército não seria arrastado pra qualquer tentativa de impedir a transição. Falou ainda com os governos israelense, iraniano e chinês para pedir que não usassem a loucura do Comandante Supremo para fomentar uma guerra que poderia não ter retorno. Talvez esse tenha sido seu gesto mais heroico: falar com os inimigos. O general não conseguiu evitar o cenário do Capitólio, mas evitou coisa pior. “Foi por um fio”, diria depois. “Eles abalaram a própria República até o âmago”.
Longe de mim nutrir qualquer admiração pelo Exército americano, que vive de invadir territórios alheios. Mas vale a pena ler a reportagem da New Yorker, que publicamos na semana passada, escrita pelos jornalistas Susan B Glasser, Peter Baker e traduzida por Luana Villac. É uma boa referência sobre como devem agir servidores públicos que entendem os limites da lei, ao menos no seu próprio país. Longe, muito longe da lama em que nossos militares estão mergulhados, e que será na minha visão o maior desafio tanto do governo Lula quanto dos novos comandantes: como desenlamear as Forças Armadas brasileiras. Em tempo: pra quem quiser entender como chegamos até aqui, meu livro Dano Colateral explica a história recente do retorno dos militares à política. A Cia das Letras liberou 30% de desconto especialmente para os leitores da newsletter. Basta adicionar o cupom DANOCOLATERAL30 no site da editora.
Natalia Viana Diretora Executiva da Agência Pública
Segunda-feira, 05 de dezembro de 2022.
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