Padre Júlio Lancellotti
Crônica de Fagner Oliveira

Existe algo profundamente revelador no ódio que se dirige a quem tenta fazer o bem. Não é só discordância. É apedrejamento moral. Como se a simples existência de alguém que estende a mão expusesse, por contraste, a covardia de quem prefere apontar o dedo.
Padre Júlio Renato Lancellotti caminha há décadas nesse campo minado. Aos 76 anos, seus passos são lentos, mas sua presença segue sendo insuportável para muita gente. Não porque ele agrida, mas porque insiste. Insiste em olhar para quem foi treinado a ser invisível. Insiste em cuidar onde a cidade decidiu punir. Insiste em lembrar que fé sem ação vira só barulho.
Paulistano da Mooca, filho de Milton Fagundes Lancellotti e Wilma Ferrari, Júlio aprendeu cedo que acolhimento não é metáfora. O pai, comerciante com atuação na assistência social, levava o menino para conhecer realidades que não apareciam nos cartões-postais. A mãe, mulher culta, secretária bilíngue, foi empurrada para fora da própria carreira por um costume da época e passou a cozinhar para fora. Júlio cresceu vendo estranhos sentarem à mesa da família. Gente sem nome, sem status, mas com fome. A ternura entrou na vida dele antes da teologia.
Sua vocação nunca foi reta. Entrou no seminário ainda criança, saiu. Tentou a vida religiosa novamente aos 19 anos, desistiu outra vez. Viveu fora da Igreja, namorou, trabalhou, formou-se em Pedagogia, tornou-se auxiliar de enfermagem. E mesmo longe da batina, nunca se afastou do cuidado. Participou da fundação da Pastoral da Criança, colaborou na construção do Estatuto da Criança e do Adolescente. Ajudava porque precisava ajudar, não porque alguém mandava.
Foi só em 1980, após a visita do Papa João Paulo II ao Brasil e sob influência de Dom Luciano Mendes de Almeida, que decidiu voltar definitivamente à vida religiosa. Ordenado padre em 1985, ele não escolheu o caminho mais fácil. Escolheu exatamente aqueles territórios onde o cristianismo costuma falhar.
Nos anos 1980, quando a AIDS era tratada como sentença moral, quando o medo vinha misturado com nojo, quando crianças com HIV eram rejeitadas por famílias, escolas e hospitais, Júlio fundou a Casa Vida. Ele acolheu justamente quem a sociedade preferia que desaparecesse. E foi ali que começou um padrão que se repetiria: quanto mais ele cuidava, mais era atacado.
Mais tarde, à frente da Pastoral do Povo da Rua, transformou a calçada em altar. Onde muitos veem ameaça, ele insiste em ver gente. Gente com nome, história, dor. Seu cristianismo nunca foi de púlpito. Sempre foi de chão. E talvez seja exatamente isso que irrite tanto.
Porque é muito mais fácil julgar do que ajudar. É confortável apontar erros, listar falhas, discutir teoria moral no conforto de casa. Difícil é levantar cedo, fazer trabalho voluntário, servir café, ouvir histórias quebradas, lidar com o cheiro, com a recaída, com o fracasso. Difícil é amar sem garantia de retorno.
Em uma cidade como São Paulo, esse tipo de amor vira afronta. E a reação vem. CPIs, ameaças de morte, campanhas de difamação, ataques virtuais. Não por acaso, muitos dos que mais o atacam se dizem profundamente religiosos. Cristãos que falam muito sobre céu e inferno, mas constroem infernos cotidianos aqui mesmo, na vida dos outros.
Em 2021, essa tensão ganhou imagem. Com uma marreta nas mãos, Padre Júlio destruiu paralelepípedos pontiagudos instalados sob um viaduto para impedir que pessoas dormissem ali. Não foi vandalismo. Foi denúncia. A cidade que fere para expulsar. A arquitetura que machuca para esconder a pobreza. A aporofobia materializada em concreto.
O gesto viralizou e gerou a Lei nº 14.489/2022, conhecida como Lei Padre Júlio Lancellotti, que alterou o Estatuto da Cidade para proibir dispositivos urbanos feitos exclusivamente para afastar pessoas de espaços públicos. Bancos inclinados, pinos metálicos, pedras pontiagudas, aspersores usados para molhar quem tenta descansar. O veto presidencial foi derrubado pelo Congresso, e o Brasil passou a ter uma das poucas legislações nacionais contra esse tipo de violência urbana silenciosa.
Ainda assim, a marreta que mais incomoda não é a de ferro. É a simbólica. É a que quebra a narrativa confortável de que pobreza é escolha, de que quem sofre merece sofrer, de que ajudar é ingenuidade ou ideologia.
“Não é o padre que é polêmico”, ele costuma dizer. “Polêmica é a fome em uma cidade tão rica.” E talvez seja isso que tanta gente não suporte. Porque quando alguém faz o bem de forma concreta, expõe o vazio de quem só fala.
Hoje, aos 76 anos, Júlio segue como pároco da Igreja de São Miguel Arcanjo. Continua lavando pés, denunciando abusos, sendo atacado por isso. Ele não parece interessado em convencer seus críticos. Parece interessado apenas em não trair aquilo que aprendeu ainda criança, na cozinha da mãe: fé que não serve para cuidar não serve para nada.
Em tempos de polarização, quem estende a mão vira alvo. Quem cuida vira suspeito. Quem faz vira problema. E talvez o maior pecado de Padre Júlio seja esse: lembrar, todos os dias, que fazer o bem dá trabalho. E que não fazer nada é sempre a opção mais barulhenta.
FONTE:
https://www.facebook.com/fagner.barretodeoliveira?locale=pt_BR
IMAGENS E NOTAS NAS REDES SOCIAIS

"A INQUISIÇÃO VOLTOU!
Arcebispo de São Paulo proíbe Padre Júlio Lancellotti de transmitir missa, ordena que saia das redes e pode afastá-lo de paróquia.
O cardeal arcebispo de São Paulo, dom Odilo Scherer, determinou que o padre Júlio Lancelotti deixasse de transmitir missas online e suspendesse suas atividades em mídias sociais.
“Lancelotti afirmou que é a última vez que sua missa será transmitida, até que haja ordem contrária. A partir de domingo que vem só haverá missa presencial". E reafirma sua "pertença e obediência à Arquidiocese de São Paulo".
Dom Odilo apresentou pedido de renúncia ao cargo de arcebispo de São Paulo. O papa Francisco aceitou a solicitação, mas pediu que ele permanecesse à frente da arquidiocese por mais dois anos. Com isso, a saída está prevista para o fim de 2026."
Detrás Dosmontes
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" Nesta segunda-feira uma notícia estarrecedora deixou sem chão os católicos progressistas e todos os que admiram o trabalho da Pastoral Povo da Rua: dom Odílio Scherer, arcebispo de São Paulo, transferiu o padre Júlio Lancellotti da paróquia de São Miguel Arcanjo, no bairro da Mooca, onde ele atua há 40 anos. Para onde? Ninguém sabe.
Que motivos levariam dom Odílio a tomar decisão tão drástica em pleno final de ano? Que forças ocultas levariam o arcebispo a abrir mão de um homem dedicado a cuidar sem descanso da população mais vulnerável da cidade?
O fato é que na quarta-feira passada, dia 10 de dezembro, padre Júlio recebeu uma carta assinada por dom Odílio comunicando sua transferência e, também, sua decisão de proibir o padre de fazer uso das redes sociais. Também foi vedada a transmissão online de suas missas dominicais, acompanhadas por católicos de todo o Brasil e do exterior. Com seu discurso poderoso, padre Júlio deixava sempre explícita sua defesa das pessoas invisibilizadas pela sociedade - aquelas em situação de rua e também a população LGBTQIA+. E isso, claro, incomoda muita gente.
Por que dom Odílio, que em abril se aposenta, se dá ao trabalho de impedir o trabalho do padre Júlio numa paróquia que nunca foi cobiçada por ninguém? Será que a visibilidade, a autoridade e a popularidade do padre Jùlio causam tanto ciúmes, ira, inveja, a ponto de o arcebispo determinar que em janeiro ele já não esteja mais ocupando o lugar que sempre foi dele por direito e por trabalho diário? Será que suas recentes manifestações em favor do povo palestino o prejudicaram? Será que católicos incorporadores imobiliários e políticos de direita pressionaram para que ele desocupe a área?
As hipóteses são inúmeras. O fato é que o povo em situação de rua não pode abrir mão do carinho do padre e de sua equipe, que prestam um trabalho dos mais humanistas no trato de nossos irmãos sem voz nem vez.
Pedimos publicamente que dom Odílio reveja sua decisão autocrática e mantenha padre Júlio em sua paróquia. Esperamos que católicos de todo o Brasil se unam em favor do padre, que também se encontra em idade avançada, mas tem coragem de sobra para persistir em sua luta.
Seu último projeto, a Biblioteca Wilma Lancellotti, na rua Sapucaia, no Belém, vem fazendo um trabalho lindo, oferecendo literatura e rodas de conversa para seu público alvo: justamente as pessoas em situação de rua. O que acontecerá com ela, que acabou de ser inaugurada e hoje reúne cerca de 3 mil volumes doados?
Queremos padre Júlio falante, pleno, guerreiro como sempre foi, à frente da sua paróquia, distribuindo café da manhã e atendendo às necessidades de quem não tem onde morar. Tirá-lo de lá é de uma crueldade sem limites e um desrespeito com todos aqueles que o apoiam."
Roberto Peixoto
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RENATO AROEIRA





