Patrulha ideológica ao interior do RS
Frente parlamentar contra ‘doutrinação’ nas escolas leva ‘patrulha ideológica’ ao interior do RS
A suposta "doutrinação ideológica" nas escolas é uma das principais bandeiras do bolsonarismo; deputada do PT diz que fará denúncia ao MP
15/01/2024
Por Luciano Velleda lucianovelleda@sul21.com.br
Ato de lançamento da Frente Parlamentar contra Doutrinação Ideológica no Ensino,
em novembro de 2023. Foto: ALRS/Divulgação
Dentre as principais bandeiras políticas da onda conservadora que cobre o Brasil nos últimos 10 anos e que culminou na eleição do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), a guerra cultural travada no ambiente escolar é uma das mais fervorosas. Para quem se embrenha nessa trincheira de batalha, existe a convicção de que as escolas e universidades do País são território dominado pela esquerda, que por sua vez se dedicaria dia e noite para espalhar o comunismo e ensinar as crianças a serem gays, entre outras denúncias.
O surgimento do movimento Escola sem Partido pode ser considerado o marco recente que deu força e coesão aos grupos conservadores unidos neste propósito. Quase ao mesmo tempo, avançaram os discursos inflamados contra a suposta existência de uma “doutrinação ideológica” nas escolas.
Desde então, apesar das dúvidas e um certo desdém por setores políticos progressistas, o tema segue avançando. No Rio Grande do Sul, em novembro de 2023, foi lançada a Frente Parlamentar contra Doutrinação Ideológica no Ensino, em cerimônia realizada no Memorial da Assembleia Legislativa.
Na ocasião, o proponente da Frente, deputado estadual Capitão Martim (Republicanos), destacou que a “doutrinação no ensino” tem sido cada vez mais comum nas escolas e universidades. “Pessoas investidas de autoridade perante um grupo de alunos busca impor suas visões de mundo, posições políticas, sem dar espaço para o questionamento ou a discussão. Querem formar massa de manobra e não alunos com sucesso nas matérias necessárias à sua formação acadêmica”, afirmou, destacando que a educação deve ser um espaço de pluralidade e de livre pensamento, sem influência de ideologias políticas. “Esta frente parlamentar tem o objetivo de garantir que as crianças e jovens recebam uma educação de qualidade, que os prepare para o futuro.”
Ao ser criada, a Frente Parlamentar anunciava como objetivo promover debates e ações para combater o que chama de influência ideológica no ambiente escolar. Segundo o deputado, os prejuízos causados aos alunos por pessoas que atuam com a intenção de imprimir seu viés político-ideológico precisam ser combatidos. Martim acredita que a doutrinação no ensino pode corromper a formação moral adquirida em casa, além de colocar em risco todo o sistema educacional.
“Estamos vivendo uma violência ideológica no ensino. Não podemos permitir que as escolas sejam utilizadas como instrumento de uma causa menor que não a própria educação”, afirmou o parlamentar em novembro.
Agora em janeiro, menos de dois meses depois do lançamento, o deputado Capitão Martim anuncia estar rodando o interior do RS para dar posse a coordenadores regionais da Frente Parlamentar. A iniciativa, ele explica, visa descentralizar e dinamizar os trabalhos da Frente. “A educação deve ser um espaço de pluralidade e de livre pensamento, sem que seja influenciada por ideologias políticas”, afirmou o deputado.
Em 2021, o Colégio Farroupilha cancelou os espetáculos do Grupo Cerco pelo uso da
linguagem neutra. Foto: Divulgação/Grupo Cerco
Segundo ele, os coordenadores regionais são voluntários inseridos nas comunidades locais, sendo líderes de bairro ou ligados a movimentos educacionais e didáticos. “Eles são os olhos e ouvidos da Frente nas regiões. São responsáveis por reunir informações, acompanhar denúncias e manter contato direto com o corpo docente, discente e famílias dos estudantes”, explicou.
A Frente Parlamentar contra Doutrinação Ideológica no Ensino já tem coordenadores em diversas regiões do RS. Neste começo de ano, foram empossados os coordenadores nos municípios de Santa Maria, Três de Maio, Caxias do Sul, Bento Gonçalves e Farroupilha. A articulação é comemorada pelo Capitão Martim.
“É fundamental que a gente esteja presente em todas as regiões do Rio Grande do Sul para ouvir as demandas da população e combater a doutrinação no ensino. A educação é um direito de todos e deve ser oferecida de forma neutra e imparcial”, afirmou.
Responsável pelo gerenciamento do grupo de coordenadores regionais, a assessora parlamentar Cláudia Frutuoso destaca as vantagens de manter essas pessoas em todo o RS. Ela explica que os coordenadores reúnem características regionais e aspectos pontuais das unidades de ensino onde estão inseridos e acredita que eles serão fundamentais para “traçar as metas e reconhecer os desafios do ensino no Estado frente aos perigos da doutrinação tão evidenciada nos últimos anos, principalmente no ensino fundamental”.
A articulação da Frente Parlamentar chamou a atenção da deputada estadual Sofia Cavedon (PT), que considera o tema “grave” e o compara com a censura da ditadura civil-militar que comandou o Brasil por 21 anos (1964-1985). Para ela, os coordenadores regionais empossados pelo colega de Assembleia Legislativa atuarão como delatores.
“Essa iniciativa de instituir coordenadores regionais de patrulhamento ideológico sobre as escolas é muito grave, similar à Santa Inquisição e ao departamento de censura da ditadura militar. Essas pessoas que supostamente são empossadas assemelham-se aos delatores infiltrados. Logo teremos professoras e professores punidos e demitidos e livros queimados!”, afirmou Sofia.
A deputada considera a iniciativa ilegal e inconstitucional e diz que apresentará denúncia no Ministério Público Estadual, inclusive com os nomes das pessoas que, no seu ponto de vista, estão se dispondo a “cometer esse crime contra a liberdade pedagógica, de cátedra e de relações entre professores e estudantes, escolas e comunidades, fundadas na confiança, na liberdade e na democracia”.
“A expressão ‘eles serão os olhos e ouvidos da Frente’ nas regiões mostra a clara função de fiscalização do fazer pedagógico. Quem dá legitimidade a uma função como essa? Estarão as professoras sujeitas à subjetividade desses delatores? Sem vínculo nenhum com a escola, com o poder público, sem autoridade legal, adentrarão à escola ou colherão denúncias anônimas, instalando desconfiança, o terror e a calúnia contra pessoas?”, questiona a deputada.
O uso da linguagem neutra é um dos aspectos combatidos pela onda conservadora no
ambiente escolar. Arte: Matheus Leal
Campo em disputa
Professora da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e coordenadora do Grupo de Estudos em Políticas Públicas para o Ensino Médio (Geppem), Mariângela Silveira Bairros pondera que primeiro é preciso definir o que é “doutrinação ideológica”. Para ela, esse é um “falso debate” e que, apesar de equivocado, tem crescido no Brasil e no RS.
“Não existe doutrinação ideológica. O que é chamado de doutrinação ideológica é, na verdade, a rejeição a tratar temas muito sensíveis na sociedade, como, por exemplo, a violência contra a mulher. Então tudo que diga a respeito à questão das mulheres é ‘ideologia de gênero’. Assim é com a violência contra a mulher, a homofobia, a gravidez na adolescência, diversos preconceitos”, afirma.
A professora da UFRGS percebe a insistência na acusação de haver “doutrinação” nas escolas como uma pauta da direita e da extrema direita brasileira, que ganhou protagonismo político nos últimos anos, com o ápice na eleição de Bolsonaro.
Para ela, quando o deputado Capitão Martim fala que a educação deve ser um “espaço de pluralidade e de livre pensamento”, sua atitude com a Frente Parlamentar é exatamente contrária ao que está propondo. A coordenadora do Geppem avalia que a insistência no assunto é uma forma da direita e da extrema direita se manter em evidência.
Se, por um lado, Mariângela diz não ter elementos suficientes para avaliar o impacto da posse dos coordenadores regionais da Frente Parlamentar, por outro, acredita que, na prática, esse grupo político tem obtido algumas vitórias. Como exemplo, cita a recente aprovação do pacote da educação do governador Eduardo Leite (PSDB). Entre outros temas, a Assembleia aprovou o fim da eleição para diretores de escola, que passarão a ser indicados pela Secretaria Estadual de Educação. A mudança é interpretada pelos professores como o fim da gestão democrática nas escolas.
“São várias frentes na verdade, não é uma frente só. Existe uma articulação para manter a defesa desses princípios. Então criam falsos debates que vão se reproduzindo, mas por trás disso, tem um único modo de ver a vida. Assim, persegue-se autores, como Paulo Freire, que na maioria das escolas nem é trabalhado, o Marx, que é conteúdo de sociologia. Então eles evocam como ‘doutrinação ideológica’ qualquer ideia que não esteja dentro do campo da direita e da ‘família tradicional’”, afirma.
No dia a dia das escolas, a professora da UFRGS destaca haver ocasionalmente consequências práticas. É o caso de uma escola em Gravataí que construiu um banheiro sem gênero, mas não conseguiu inaugurá-lo devido à reação contrária de alguns grupos da comunidade. O exemplo, ela acredita, evidencia que o debate de ideias progressistas precisa ser feito na sociedade, embora exista uma resistência bem articulada.
A professora da UFRGS, Mariângela Bairros, acredita que as escolas precisam debater os
temas difíceis com a comunidade. Foto: CPERS/Divulgação
“Eles vão evocando esses temas e então é aquela coisa: uma mentira repetida mil vezes, vira uma verdade”, comenta Mariângela, destacando a importância de haver contraponto diante da prevalência de vídeos no YouTube e podcasts sobre “doutrinação ideológica”.
A professora lembra o surgimento do Escola sem Partido, há cerca de 10 anos, e avalia que durante um longo período as teses conservadoras do movimento foram se expandindo na sociedade, sem que tenha havido debate sobre o tema com os professores nas escolas. As teses do Escola sem Partido chegaram a impulsionar casos de patrulha contra professores, inclusive com gravações de vídeos em sala de aula.
Ela recorda do caso de uma professora que foi chamada pela direção, após denúncia de pais, por ter dado aula de sociologia utilizando o pensamento de Marx. Acuada, a professora acabou assinando um documento se comprometendo a não mais “doutrinar os alunos”. A professora achou que era obrigada a assinar.
“Por falta de debate, por falta de informações dentro das escolas, os professores acabaram se submetendo a essa perversidade, que ocorreram com mais força e agora há uma resistência tentando avançar, mas a direita e a extrema direita tem se articulado no sentido de defender esses ideais”, analisa a professora da UFRGS e coordenadora do Grupo de Estudos em Políticas Públicas para o Ensino Médio (Geppem).
Atualmente, na sua avaliação e em que pese a importância, a conversa sobre o tema está pouco recorrente nas escolas. Em seus estudos e na relação próxima com escolas do ensino básico, Mariângela colhe relatos de que é muito tenso fazer determinados debates com a comunidade escolar, como foi o caso do banheiro sem gênero que não pôde ser inaugurado em Gravataí.
“Estamos num momento muito difícil, um momento de quase volta ao conservadorismo por falta desses debates”, sustenta, destacando inclusive o espaço para o contraditório. “Esses momentos de debate são necessários. A gente precisa conversar sobre esse tema, talvez a gente desvele alguns fantasmas que existem. É importante fazer o debate mesmo que seja difícil.”
Ao anunciar a posse dos últimos coordenadores regionais, o deputado Capitão Martim também divulgou que os próximos passos serão a realização de debates e audiências públicas em diversas cidades do RS para discutir o tema.
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