Por João Guató

Brasília, madrugada azulada e cínica. Enquanto o povo conta moedas para o pão, os donos da caneta se reuniram na Casa do Povo para escrever sua própria carta de alforria. Com pressa de quem foge da chuva, aprovaram — em dois turnos, no mesmo dia — a tal PEC da Impunidade, um colete à prova de Justiça costurado sob medida para deputados e senadores.

Primeiro ato: 353 parlamentares, de gravata engomada e discurso esfarrapado, levantam os cartões verdes. Contra? Apenas 134 vozes, mais uma solitária abstenção. Intervalo? Não, excelência. O espetáculo precisa ser rápido, antes que a plateia grite.

Segundo ato: duas horas depois, já com o relógio marcando 23h30, repetem a coreografia. 344 a favor, 133 contra. E pronto: o Congresso decretou que só poderá ser preso quem eles mesmos deixarem. É o fim da inocência da democracia: agora, para punir ladrão engravatado, será preciso pedir licença ao próprio ladrão.

Dizem que a PEC fortalece o Parlamento. Mentira. Ela fortalece apenas os muros que separam os palácios do povo.

Ação penal? Só com autorização prévia, secreta e confortável.

Mandado de prisão? Depende do “sim” dos colegas.

Foro privilegiado? Agora também para presidentes de partidos, que se abrigam sob a sombra fresca do Supremo.

É o Congresso transformado em condomínio fechado: portaria blindada, câmeras de vigilância, segredos guardados a sete chaves.

Se o Estado Democrático de Direito depender desse Congresso, estamos no sal grosso. Não aquele tempero de churrasco, mas o sal da terra estéril, onde nada floresce. A democracia, que deveria ser campo fértil, virou terreno baldio onde brotam apenas privilégios.

E o povo? Ah, o povo assiste de longe, na arquibancada da miséria, comendo pipoca murcha e se perguntando: quem nos defende de quem deveria nos representar?