Pensão para herdeiras de militares
Governo paga R$ 1,2 milhão por mês a herdeiras de militares acusados de crimes na ditadura
Dados publicados pela primeira vez na história revelam que 73 viúvas e filhas de militares atuantes na ditadura receberam pagamentos do governo em 2020 e 2021
Fabio Rodrigues Pozzebom/Agência Brasil
2 de julho de 2021 Bruno Fonseca, Rafael Oliveira, Raphaela Ribeiro
Patrícia tinha apenas 3 anos quando esteve na cela feminina da carceragem do DOI-Codi [centro de repressão do Exército] paulistano da rua Tutoia, no bairro do Paraíso. A criança, diferentemente das mulheres que ali estavam, não foi vítima das torturas denunciadas pelos presos políticos que eram encarcerados no lugar. Ela foi levada ao local pela mãe e pelo pai: o coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, chefe do centro de detenção, tortura e morte da ditadura militar brasileira instaurada em 1964.
Segundo Ustra, a visita da filha era um “gesto humanitário” para com os presos políticos, ideia sua e da esposa, Joseíta Ustra. A passagem foi narrada na obra escrita pelo próprio coronel, livro que o atual presidente Jair Bolsonaro disse estar na sua cabeceira em 2018. Já para os presos políticos, a presença de uma criança junto a pessoas que denunciaram torturas em paus de arara e cadeiras elétricas “era mais uma terrível e macabra forma de tortura aplicada pelo então major Ustra às suas vítimas”, escreveu em artigo o jornalista Moacyr Oliveira Filho.
Quase 50 anos após a pequena Patrícia ter visitado o centro de tortura comandado pelo pai, a Agência Pública, com a agência de dados especializada na Lei de Acesso à Informação Fiquem Sabendo, revela que a filha de Ustra continua recebendo benefícios da atuação do pai no Estado brasileiro: uma pensão mensal e vitalícia de R$ 15.307,90; sua irmã, Renata, recebe o mesmo valor mensalmente.
E mais: incluindo o pagamento às duas filhas do ex-coronel, o benefício é concedido ao todo a 73 mulheres, viúvas ou filhas de 47 falecidos que foram acusados de crimes na ditadura pela Comissão Nacional da Verdade (CNV). Somente em fevereiro de 2021, o governo brasileiro pagou R$ 1.264.131,79 ao grupo de herdeiras desses militares, considerando os valores de remuneração básica bruta. Há ainda outros dois casos de pensões que não constam na base de fevereiro, mas estão presentes em outros meses: uma paga até janeiro de 2021, no valor de R$ 30.508,03; e outra paga até julho de 2020, no valor de R$ 31.146,60.
Bruno Fonseca/Agência Pública
O número final pode ser ainda maior, já que a lista da CNV apresenta nomes comuns sem informações de identificação, como registro ou CPF, o que impossibilita que se descartem homônimos. A reportagem checou cada um dos casos que apresentaram correspondência entre a lista da CNV e a base de pensões, incluindo somente os nomes passíveis de algum tipo de confirmação, como data do óbito coincidente com o início do benefício ou informações sobre familiares dos militares disponíveis na internet.
Governo Bolsonaro atrasou para revelar pagamento de pensões de militares
O pagamento de pensões a viúvas e filhas solteiras de militares sempre foi um segredo mantido pelo governo federal. Em 2018, a Pública tentou acessar esses dados, assim como outros veículos de jornalismo, mas teve os pedidos de acesso à informação negados pelo Ministério da Defesa. A justificativa era que a publicação desses dados feria o sigilo pessoal. Na época, as Forças Armadas se limitaram a informar que havia cerca de 110 mil filhas de militares que recebiam pensões vitalícias.
Em janeiro de 2020, o Fiquem Sabendo conseguiu, após uma disputa judicial de cerca de três anos, uma base parcial de pagamentos a servidores inativos do governo federal. Em novembro de 2019, todos esses pagamentos passaram dos R$ 2,4 bilhões. A lista, contudo, era incompleta, pois só possuía dados de militares de ex-territórios, como o antigo estado da Guanabara.
Na época, a Pública cruzou a base de pensionistas com a lista de 377 pessoas acusadas de crimes cometidos durante a ditadura, feita pela CNV. A reportagem encontrou quatro militares falecidos acusados de violações de direitos humanos no regime militar e que deixaram pensões vitalícias às suas viúvas. É o caso de Cecil de Macedo Borer, ex-diretor do Departamento de Ordem Política e Social (Dops) da Guanabara, responsabilizado na CNV pela morte do mecânico José de Souza em abril de 1964.