Piso Nacional da Enfermagem
Piso Nacional da Enfermagem: “já demos nossa cota de sacrifício e o setor privado lucrou como ninguém na pandemia”
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Gabriel Brito, da Redação - 05/09/2022
No início de agosto o Senado aprovou o Piso Nacional da Enfermagem, que atualiza os salários de enfermeiras, auxiliares e técnicos do setor. Sancionado pela presidência, deveria entrar em vigor nesta segunda, 5, mas o ministro do STF Luis Roberto Barroso atendeu apelo patronal e concedeu liminar de suspensão do reajuste até que se busquem fontes de financiamento. No entanto, Solange Caetano, do Fórum Nacional de Enfermagem, afirma que os trabalhadores estavam desvalorizados há anos e o setor privado esqueceu de reconhecê-los enquanto acumulava lucros mesmo durante a pandemia.
“Se o setor privado tivesse se preparado, agora o impacto seria menor. Vai ter impacto também porque pagam mal e não valorizaram seus profissionais nos últimos anos. Cabe a eles irem conversar com deputados e senadores, buscar fontes de custeio, como desoneração da folha, já que não querem diminuir seus ganhos. Mas demitir e jogar na costa dos trabalhadores é desumano, inclusive com os assistidos”, disse Solange Caetano.
Solange Caetano refuta as alegações dos empresários do setor, acompanhados pelos gestores de entidades filantrópicas de saúde, que já possuem grandes dívidas. No entanto, ela elenca uma série de alternativas capazes de financiar o piso, além de defender a necessidade do fim da EC-95, o chamado teto de gastos, que limita investimentos públicos em áreas sociais por 20 anos.
Os empregadores precisam de uma visão mais progressista, entender que despesas com pessoal são investimento. Falo de profissionais que controlam medicamentos, materiais diversos, têm contato mais direto com pacientes... Se a enfermagem se vê acolhida, valorizada, com qualidade de vida e trabalho, é óbvio que ela dará o melhor de si. Consequentemente, gerará lucratividade ao setor privado e reconhecimento aos gestores públicos.
A entrevista completa pode ser lida a seguir.
Como enxerga a aprovação do Piso Nacional da Enfermagem e a forma como foi aprovado?
O piso foi aprovado de forma extremamente democrática. O valor era muito superior ao aprovado. Debatemos com lideranças do Senado, diversas bancadas, tudo para chegar a um acordo melhor para os trabalhadores sem causar um impacto tão alto e depois ouvirmos que quebraríamos o setor.
Nossa proposta aceitou redução do piso de R$ 7750 pra R$ 4750. Impactos sempre existem, mas tivemos inúmeras reuniões, debatemos nas duas casas legislativas, apresentamos estudos com base de dados, tanto de instituições trabalhistas como dos empregadores. Tudo foi muito bem discutido.
Assim, o relator do projeto, o deputado federal Alexandre Padilha, chegou à conclusão de que era possível aprovar o piso. Foi feito de forma extremamente. Acontece que os empregadores não se prepararam. Em de falar que o setor ia quebrar deviam ter buscado fontes de financiamento, deviam conversar com representantes do poder público pra achar formas de viabilizar o piso, que pra nós já é realidade.
O que pensa da alegação do setor privado, que entrou na justiça e conseguiu liminar no STF pra barrar o aumento, de que não seria possível financiar o o piso e demissões seriam inevitáveis?
Os hospitais privados lucraram como ninguém no último período. Se buscar os dados de lucratividade das grandes redes privadas poderemos ver como ganharam dinheiro, inclusive na pandemia.
Dizer que a enfermagem vai sofrer demissões é no mínimo desumano. O impacto real seria no primeiro momento, mas depois eles repassam os custos pra quem compra seus serviços. Eles não vão quebrar por causa do piso.
Outra coisa: se o setor privado tivesse se preparado, agora o impacto seria menor. Vai ter impacto também porque pagam mal e não valorizaram seus profissionais nos últimos anos.
Cabe a eles irem conversar com deputados e senadores, buscar fontes de custeio, como desoneração da folha, já que não querem diminuir seus ganhos. Mas demitir e jogar na costa dos trabalhadores é desumano, inclusive com os assistidos. Porque os remanescentes ficam mais sobrecarregados e a prestação de serviço perde qualidade.
Quais poderiam ser as fontes de custeio, a fim de evitar que uma conquista trabalhista tenha efeito negativo para os seus beneficiários?
Existem diversas alternativas, vários projetos tramitam na câmara e podem gerar renda pra investimento em questões como o piso nacional de enfermagem, alguns deles com direcionamento claro para o setor de saúde.
Citamos o PL 442/91, que regulamenta os jogos no Brasil e prevê 4% da arrecadação destinada à área da saúde. O texto já foi aprovado pela Câmara e lutamos para aumentar a fatia a 12%. Há o PLP 205/21, de retirada das contribuições sociais da folha de salários das empresas privadas do setor de saúde. Tem o PL 2337/21, de tributação de lucros e dividendos, medida que integra o projeto de reforma do Imposto de Renda enviado pelo Planalto e já aprovado pela Câmara. Há o PL 840/22, de aumento dos royalties da mineração, uma das primeiras alternativas apresentadas para financiar o piso, através do aumento da Compensação Financeira pela Exploração de Recursos Minerais (CFEM). Há o PL 1241/2022, projeto que prevê a utilização de recursos dos royalties da exploração de petróleo para bancar o piso salarial nacional da Enfermagem. E temos ainda os fundos públicos da União, recursos que estão “amarrados” e “engessados” e podem ir para a área de saúde.
Opções existem e precisam ser debatidas. Dialogamos muito sobre a importância em se aprovar coisas nesse sentido. E as instituições privadas também precisam se mexer nesse.
O que você comenta da realidade econômica atual dos profissionais da área?
Infelizmente, é uma realidade triste. Tivemos profissionais que se colocaram na linha de frente da pandemia sem as devidas condições e mesmo assim não ameaçaram nenhuma greve. Temos trabalhadores concursados recebendo 1500 reais. Os profissionais não estão recebendo o devido reconhecimento.
A enfermagem é base de sustentação da sociedade, são a única categoria que de fato fica 24 horas por dia se revezando e cuidando de pacientes, são os profissionais que mais se entregam nos estabelecimentos de saúde. Já demos nossa cota de sacrifício e, ao lado de outras categorias, estamos sem reajuste há anos.
Não podemos assumir riscos do empregador. Reajustes salariais aos profissionais fazem parte do negócio de saúde. Pagar o piso é importante até para a lucratividade do setor privado, porque são esses trabalhadores que giram a roda e geram o lucro. Nada mais justo do que reconhecer tais profissionais.
Há ameaças ou demissões em andamento contra os profissionais da área?
Sim, já temos notícias disso. Muitas ameaças de demissão em caso de ter de pagar o piso, empregadores que demitem e tentam recontratar via cooperativa, pois assim há menos direitos trabalhistas. Outros querem pagar o piso com aumento de jornada, o que é outra ilegalidade. O piso é nosso salário mínimo e há proporcionalidade entre jornada e salário. Vamos monitorar todas as ilegalidades e denunciar ao Ministério Público do Trabalho sempre que necessário.
Também estamos num contexto de aumento da demanda por serviços em saúde, tanto público como privado, por variados motivos. Estamos, portanto, de uma oportunidade especial de se pautar uma expansão mais robusta do financiamento em saúde? Quais seriam os caminhos para isso?
Sim, tem uma demanda reprimida muito grande de tratamentos e cirurgias que ficaram de lado e vão voltar com força. Os gestores precisam entender que deve-se aumentar o orçamento em saúde. Devemos derrubar o teto de gastos, valorizar os trabalhadores, contratar mais gente e valorizar o setor. É assim que se pode contentar a todos, os que trabalham e a sociedade que precisa dos serviços de saúde. E é bom pros gestores também, pois se há sociedade se satisfaz eles colhem os frutos.
Os empregadores precisam de uma visão mais progressista, entender que despesas com pessoal são investimento. Falo de profissionais que controlam medicamentos, materiais diversos, têm contato mais direto com pacientes... Se a enfermagem se vê acolhida, valorizada, com qualidade de vida e trabalho, é óbvio que ela dará o melhor de si. Consequentemente, gerará lucratividade ao setor privado e reconhecimento aos gestores públicos.
Devemos fazer juntos, o problema não é só do estado, do município, dos trabalhadores. Precisam todos sentar juntos e criar alternativas. Acredito muito que com a alteração dos rumos no Ministério da Saúde, com uma gestão melhor no próximo período, e um debate mais sério entre as entidades, podemos melhorar as condições do setor e dar conta de todas as demandas.
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Gabriel Brito é editor do Correio da Cidadania e também repórter do Outra Saúde.