PNLD 2021 e Projeto de Vida
PNLD 2021 | PNLD 2021 e Projeto de Vida: formação para o individualismo e precarização da vida
Professores de todo o país tiveram que escolher livros de “Projetos Integradores” por área do conhecimento e Projeto de Vida proposto pelo Edital PNLD 2021. O Projeto de Vida propõe ensinar aos estudantes a gerir suas próprias emoções e busca concretizar a formação para o individualismo e o trabalho precário, um dos centros do ataque ideológico e transformações curriculares impostas pela BNCC e a Reforma do Ensino Médio
segunda-feira 15 de março de 2021 | Edição do dia
Enquanto o país vive o pior momento da pandemia com mais de 2.000 mortes diárias fruto do negacionismo do Bolsonaro e da demagogia das distintas alas do regime do golpe, tal como João Doria (PSDB), governador do estado de São Paulo, que não somente não criou nenhuma condição real de combate à pandemia como também colocou a vida de toda comunidade escolar em risco diante da reabertura insegura das escolas, várias mudanças na organização curricular e no projeto pedagógico da rede estadual estão em curso e, mais uma vez, sendo impostas sem qualquer debate com a comunidade escolar. Trata-se da implementação da Base Nacional Curricular Comum (BNCC) e da Reforma do Ensino Médio através do Currículo Paulista e que dá mais alguns passos com o Programa Nacional do Livro e do Material Didático de 2021 (PNLD). Ambas são um ataque ideológico profundo à formação dos estudantes e às condições de trabalho dos professores.
O Estado de São Paulo vem sendo o precursor da implementação dessas políticas. Em 2019, impôs o programa Inova Educação, inserindo os componentes curriculares de Projeto de Vida, Tecnologia e Eletivas, diminuindo o tempo das demais disciplinas e aumentando uma aula por dia na grade curricular. Além disso, implementou o Novotec, introduzindo o itinerário formativo profissionalizante no sistema público paulista [1]. Além de ser um fiel parceiro das fundações empresariais da educação, o secretário da educação, Rossieli Soares, enquanto Ministro da Educação de Michel Temer, foi responsável pela homologação da BNCC.
PNLD 2021 e o Projeto de Vida
Junto ao Novo Ensino Médio, diante de todas as transformações impostas ao currículo, até o dia 15 de março, professores de São Paulo e de todo o país tiveram que escolher novos livros didáticos que fazem parte do Edital PNLD 2021. Os livros trazem propostas de “Projetos Integradores” divididos por área do conhecimento e Projeto de Vida.
A estrutura e abordagens das coleções seguem o que está posto pela BNCC e Reforma do Ensino Médio, promovendo um aligeiramento da educação básica ao diluir e diminuir a carga horária das disciplinas, além de colocar no centro da educação escolar o “projeto de vida” do estudante e o desenvolvimento das “competências socioemocionais” que, de acordo com os materiais oficiais, dizem respeito a traços de comportamento, sentimentos e pensamentos específicos, que devem ser desenvolvidos para alcançar objetivos individuais, tais como resiliência, autonomia, abertura ao novo, tolerância ao estresse, dentre outros [2].
De acordo com o Edital PNLD 2021, os livros de Projeto de Vida são divididos em três eixos:
Autoconhecimento: o encontro consigo;
Expansão e exploração: o encontro com o outro e o mundo e
Planejamento: o encontro com o futuro e o nós. Com isso, este componente curricular cumpre o papel de uma espécie de coaching dentro da escola, através do qual o estudante deverá desenvolver “superpoderes” [3] como determinação, organização, autoconfiança, assertividade para superar as dificuldades e alcançar seus objetivos.
Em um dos livros que fazem parte do catálogo para escolha, da coleção Pensar, Sentir e Agir da editora FTD,, o módulo dedicado ao autoconhecimento dedica páginas e mais páginas para ensinar os estudantes a gerir suas próprias emoções, vencer suas vulnerabilidades, adquirir “inteligência emocional” para desenvolver autonomia e outras características de personalidade para, assim, de acordo com o livro, alcançar a felicidade. Para isso, deve-se saber lidar com as frustrações, estabelecer metas para seus sonhos e projetos.
Ainda de acordo com o livro, é possível calcular o que é chamado de “quociente de inteligência emocional” medida através do autoconhecimento, automotivação, controle emocional, empatia e sociabilidade, já que nessa perspectiva é a “inteligência emocional” o grande diferencial para a “conquista do sucesso”. Para construir essas habilidades que fazem parte do cálculo do chamado “quociente de inteligência emocional”, há indicações sobre como melhorar sua própria autoestima e até técnicas antiestresse, tal como a indicação de “Escreva o número 8 em uma folha avulsa. Depois, percorra com a caneta as linhas já traçadas, como se fosse reforçá-las, durante um minuto” (pág. 46).
Além de nos fazer questionar por que esse tipo de pseudoteoria que pretende moldar a personalidade das pessoas está num livro didático para a educação básica, é importante destacar que toda a semelhança com o palavreado e meio empresarial não é mera coincidência.
A gestão das emoções e a tentativa de formar para a resignação num contexto de crise
A inserção do Projeto de Vida e das competências socioemocionais vem sendo defendida há alguns anos pelo Instituto Ayrton Senna e outras instituições empresariais que interferem na educação. A Fundação Lemann chegou a publicar uma pesquisa em 2015 que procurava responder se “o que é ensinado nas escolas prepara os alunos para concretizarem seus projetos na vida adulta”, para isso, além de entrevistar alunos egressos, especialistas em educação e professores, também ouviram empregadores, que tiveram um peso bastante representativo na pesquisa. A conclusão da pesquisa, indo ao encontro da justificativa para a aprovação da Reforma do Ensino Médio em 2016, é que há uma desconexão da escola com a vida futura dos jovens, sobretudo com o mercado de trabalho. As habilidades ou competências socioemocionais aparecem aí como exigência dos empregadores para serem ensinadas em sala de aula.
Os formuladores das orientações que dão base para essas alterações, como Banco Mundial e OCDE, as instituições empresariais e demais propositores dessas políticas no Brasil não escondem o fato de que essas alterações seguem a reestruturação das relações de trabalho e sua maior precarização diante da desregulamentação e retirada de direitos trabalhistas.
Embora a atuação em conjunto do Estado com as instituições empresariais para definição de políticas públicas para a educação seja algo de longa data (também durante as gestões do PT), as referidas mudanças se aprofundaram na esteira dos ataques pós golpe institucional de 2016. Sendo a Reforma do Ensino Médio complementar às Reformas da Previdência e Trabalhista, já que, ao passo em que há o rebaixamento de salários, das condições de trabalho e de vida, também atacam a formação dessa força de trabalho para adequá-la à essas condições mais precárias.
Nesse sentido, o discurso contido nesses materiais e na reestruturação do Ensino Médio de maneira geral é o da individualização dos processos educativos, através da flexibilização dos percursos pedagógicos criando uma “escola por demanda” e transformando a escola num espaço de reprodução ampliada do capital, conforme definiu a pesquisadora Débora Goulart ao se referir Inova [4]. Num contexto de crise e aprofundamento da precarização das condições de trabalho e de vida, a gestão das emoções “busca ajustar as atitudes diante de situações de instabilidade e horror”, conforme argumentou Carolina Catini [5], ou seja, se trata de uma operação que busca a padronização de personalidades justamente por uma necessidade por parte do Estado e dos exploradores de que os jovens tenham competências para “aceitar” as novas relações de trabalho e sua precarização. Trata-se, portanto, de um ataque ideológico ao processo formativo, uma vez que visa a preparação e resignação dos estudantes para o mercado de trabalho uberizado, sob demanda.
Por isso, esse projeto carrega um claro sentido de forjar um individualismo exacerbado em que cada estudante é “protagonista” e que deve atuar para valorizar a si mesmo para que possa supostamente alcançar suas metas e sonhos. Buscam criar um arcabouço ideológico a fim de imputar aos jovens, através das escolas, a ideia de que o “sucesso” na vida é resultado de ações individuais e de que é possível alcançar a “felicidade” num contexto em que o futuro da juventude é dia-a-dia roubado, seja pelas balas da polícia ou pelo cenário caótico de desemprego. De acordo com a última pesquisa do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), as taxas recordes de desemprego atingem, em especial, a juventude e as mulheres negras do nosso país.
Nesse contexto de pandemia, tendências que já estavam colocadas na ordem do dia, como o desemprego e a retirada de direitos, se intensificaram ainda mais num cenário desolador da política assassina do Estado, responsável pelas milhares de mortes pela Covid-19 no país. Como vimos, a educação é alvo certo de todo o regime do golpe. Além de congelar e retirar o financiamento para a educação, atacar os direitos de professores de diversas formas e também através da recém aprovada PEC Emergencial, enormes ataques à formação dos estudantes tem avançado à revelia das incontáveis manifestações contrárias por parte de estudantes, professores e universidades, ataques que sabotam a formação universal, substituindo por uma educação alinhada à lógica de mercado e seu discurso falacioso de empreendedorismo.
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[1] Para uma análise mais aprofundada sobre o programa Novotec, leia: PIOLLI, Evaldo; SALA, Mauro. O Novotec e a implementação da Reforma do Ensino Médio na rede estadual paulista. Crítica Educativa (Sorocaba/SP), v. 5, n. 1, p. 183-198, jan./jun.20.
Disponível em: https://www.criticaeducativa.ufscar.br/index.php/criticaeducativa/article/view/424/434. Acesso em: 13 mar. 2021.
[2] De acordo com o material “Aprender Sempre” do Governo do Estado de São Paulo, “As competências socioemocionais são definidas como as capacidades individuais que se manifestam de modo consistente em padrões de pensamentos, sentimentos e comportamentos (John & De Fruyt, 2015). Ou seja, elas se expressam no modo de sentir, pensar e agir de cada um para se relacionar consigo mesmo e com os outros, para estabelecer objetivos e persistir em alcançá-los, para tomar decisões, para abraçar novas ideias ou enfrentar situações adversas”.
[3] Metáfora para se referir às competências socioemocionais contida no Caderno do Professor e do Aluno desse componente para o ensino médio de 2020 proposto pela SEDUC-SP.
[4] GOULART, Débora. Inova educação: um projeto de vida ultraliberal para a “juventude do século XXI”. 29/9/2020. Youtube. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=BTMwCQNlYiQ&ab_channel=GEPECSEduca%C3%A7%C3%A3oecr%C3%Adticasocial. Acesso em: 29 set. 2020
[5] CATINI, Carolina. O brutalismo vai à escola. Blog da Boitempo. 13/09/2020. Disponível em: https://blogdaboitempo.com.br/2020/09/13/o-brutalismo-vai-a-escola/. Acesso em: 12 mar. 2021.