Pobreza não é crime

Pobreza não é crime

 

 

A pobreza não é crime, já a impunidade é uma forma de violência institucional.

 

Na escola real, não é a pobreza que degrada; é a impunidade. E esta nasce mais facilmente onde há privilégio e proteção. Esta frase não vem da abstração. Vem da escola vivida durante décadas, onde se aprende rapidamente a separar duas coisas que o discurso público gosta de misturar: carência e ameaça. Quem tem pouco, muitas vezes, traz consigo uma espécie de prudência. A pobreza não é sinónimo de virtude — mas ensina limites: pede-se licença, mede-se o gesto, cuida-se do que é comum porque se sabe o que custa perder.

O que corrói a instituição, pelo contrário, é a sensação de impunidade. Não a impunidade “jurídica”, mas a impunidade do quotidiano: a certeza de que as regras se dobram; de que há sempre um adulto a interceder; de que a escola é um lugar onde se pode porque se é. É aí que o dano se torna verdadeiramente grave — e raramente é material. O que se degrada primeiro é a relação pedagógica e o tecido das relações entre pares: o clima da sala, a autoridade simbólica, a ideia de que existe um bem comum a respeitar.

O aluno mais destrutivo, na maior parte das vezes, não é o que tem menos; é o que chega de casa carregado de certezas. Não respeita quem ensina porque acha que não tem nada a aprender e, para quem pensa que sabe tudo, não há porta a abrir: não entra o fundamental — a escuta, o limite, o reconhecimento do outro. Pode haver conhecimento livresco, informação, até brilho verbal. Mas o essencial pode faltar: a capacidade de aprender a ser humano.

Nestes casos, a impunidade deixa de ser um conceito e torna-se prática. E há um detalhe revelador: estes alunos “protegidos” raramente acumulam registos de ocorrência. Não necessariamente porque falhem menos, mas porque o sistema tende a resolver “a bem”, a relativizar, a abafar, a evitar o embate com famílias que sabem pressionar. A impunidade, muitas vezes, não é apenas um sentimento: é uma escrita que não se faz.

O reverso desta moeda é brutal e raramente assumido: há grupos de alunos que, pelo contrário, são registados por «dá cá aquela palha» — e entre eles, com demasiada frequência, os alunos ciganos. O mesmo ato muda de nome consoante quem o pratica: um vidro partido por um aluno protegido é um “acidente”; um vidro partido por um aluno cigano tende a ser lido como “maldade”. Assim, o registo deixa de descrever factos e passa a cristalizar suspeitas. E quando a disciplina se torna instrumento de estigmatização, a escola não se protege — degrada-se.

É por isso que criminalizar a pobreza é um atalho perigoso. Quando se cola carência a degradação, desloca-se a responsabilidade das falhas estruturais — subfinanciamento, abandono do edificado, regras mal desenhadas, ausência de acompanhamento — para quem tem menos poder para se defender. E isso não resolve nada; apenas legitima desigualdades. E se um responsável político quer falar de degradação, tem um dever simples: dados, recorte, método e linguagem rigorosa. Sem isso, não há análise — há estigma.

A escola é um dos poucos lugares onde ainda se pode suspender, mesmo que por instantes, a desigualdade de origem. Para isso, precisa de um princípio claro e não negociável: ninguém tem privilégios por causa do nome, da família ou da posição social.

Não é a pobreza que degrada. É a impunidade. E essa lição aprende-se menos em gabinetes do que no pó do chão: onde a escola acontece.

Via Palmira Rodrigues

FONTE:

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