Política e Economia
A REFORMA DA PREVIDÊNCIA 'N-Ã-O' VAI ALAVANCAR A RETOMADA DO CRESCIMENTO
Dalton Rosado
A política é a esfera de legitimação da assunção ao poder dito democrático do Estado, o qual, por sua vez, é o instrumento de coerção legal, institucional, da opressão tácita do capital.
Ambos, política e Estado, correspondem às instâncias dependentes do capital dentro do contexto da economia da riqueza abstrata (forma-valor, dinheiro e mercadorias).
Assim, não têm soberania de vontade, regendo-se sempre pelas regras ditatoriais da sociedade da mercadoria que é quem lhes fornece os parâmetros funcionais e a sustentação financeira (via cobrança de impostos a um povo exaurido economicamente). Isto vale tanto para a esfera política quanto para a administração do Estado.
Ainda nestes últimos dias assistimos na Câmara dos Deputados à explicitação do conflito:
— entre as exigências financeiras do Estado (em rota falimentar) enquanto ente regulamentador e protetor do capital, por um lado; e
— por outro lado, os interesses rasteiros dos políticos que, não compreendendo ou fingindo não se darem conta da hipossuficiência sistêmica de suas funções, tentam convencer a plateia de que ali estão para corrigir a ordem ditatorial da economia (trata-se de uma postura que não passa de mera pantomima teatral inconsistente, mesmo quando bem intencionada).
A direita cumpre regularmente as suas funções institucionais de proteção ao capital, e está na sua, como se diz no jargão informal.
A esquerda, sempre minoritária no parlamento, serve apenas para dar aparência democrática a um processo que é antidemocrático desde a sua origem constitutiva. Ao invés de conseguir corrigir a nefasta ordem econômica capitalista, a esquerda, com sua participação legislativa, apenas legitima a institucionalidade burguesa em troca de migalhas.
O povo é quem padece sob tal encenação de vontade soberana da política. A política não pode subverter a lógica ditatorial da economia e é por isto que o Congresso Nacional vive o conflito entre a aprovação de medidas impopulares inevitáveis dentro das exigências vitais (e atrozes) da ordem capitalista e as consequências dos seus atos político-eleitorais no momento da reeleição.
Ou seja, os deputados e senadores sabem que:
— por um lado, a depressão capitalista brasileira e mundial dita comportamentos sem os quais o que é ruim ficaria inviável, daí recair sobre eles o ônus de aprovarem medidas de equilíbrio financeiro sem as quais a falência do Estado se acentua; e,
— por outro lado, as consequências danosas da impopularidade que isto lhes acarretaria perante seus eleitores.
O mercador de ilusões é ruim de ginga e passou vexame
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Trata-se de mais uma contradição dentre as muitas existentes na sociedade da mercadoria e seu conflito irresolúvel e irremediável entre forma e conteúdo.
O argumento governamental segundo o qual devemos restringir hoje direitos previdenciários como forma de se garantir que ainda os tenhamos (também minimamente) num futuro próximo, corresponde ao reconhecimento explícito da submissão (e capitulação) política à realidade da depressão econômica, na medida em que foi atingido o limite interno de expansão capitalista e a economia definha a olhos vistos, criando impasses intransponíveis.
A proposta palaciana corresponde ao pedido de que se faça um apertar de cintos hoje para que, com a poupança pretensamente daí advinda, possa ser equilibrado o déficit público crescente, na esperança de que a partir daí os investimentos voltem a crescer, alavancando o pretendido (e insustentável) crescimento econômico, o que permitiria o provimento futuro dos níveis de pensões previdenciárias hoje existentes. Isto, claro, não passa de uma quimera insubsistente.
Dentre as rubricas orçamentárias que provocam o déficit (o pagamento dos juros da dívida pública e gastos com a pesada máquina institucional são bem maiores e mais difíceis de serem eliminados), o corte dos gastos com o déficit da previdência social é mais fácil de ser enfiado goela da população abaixo.
A opinião pública manipulada tudo engole (mesmo que a contragosto) em seu desfavor. O mesmo, contudo, não ocorre com ditatorial contabilidade capitalista e seus custos sistêmicos imediatistas e exigíveis no curto prazo.
O governo atual, saudosista dos tempos do arbítrio, reedita a proposta dos governos miliares de meio século atrás, de priorização do desenvolvimento econômico. Ficou famosa, neste sentido, uma frase atribuída ao então ministro Delfim Netto, de que seria necessário esperar o bolo crescer antes de reparti-lo.
Mas, o que se viu no final do governo militar foi depressão econômica, inflação alta e aumento da dívida pública, razão pela qual os golpistas tiveram que sair pela porta dos fundos com o rabo entre as pernas, devolvendo o poder aos civis porque não sabiam mais o que fazer com ele. Isto é hoje omitido pelos nostálgicos do arbítrio, que celebram o que bem melhor seria continuar esquecido.
E persiste a eterna quimera de tentar introjetar na consciência popular a crença na retomada do desenvolvimento econômico como promessa de um futuro melhor.
Nesse contexto, a direita, com seu discurso enganoso, está defendendo a permanência de um sistema que faz água por todos os lados. A esquerda, por sua vez, ao invés de propor alternativas confiáveis ao sistema, também favorece a retomada do desenvolvimento econômico, ainda que por outras vias.
São dois cegos batendo numa mesma porta, que está emperrada demais para poder ser aberta.
O Brasil vive a miséria de milhões de pessoas desempregadas e tantas outras milhões vivendo na linha tênue entre a miséria absoluta e a pobreza inaceitável em meio à abundância de riquezas materiais deitadas eternamente em berço esplendido, sem que o seu povo possa dela usufruir.
Nada se parece mais com a vida social brasileira do que o castigo mitológico a Tântalo, condenado a sofrer fome e sede eternas em meio à abundância de alimentos e água. E isto se deve ao fato de a riqueza material, concreta, estar sendo submetida à irracionalidade da riqueza abstrata.
A política e os políticos, quando não estão tentando determinar quem é tigrão e quem é tchutchuca, desvirtuam por interesse mesquinho, ignorância ou covarde comodismo (atitudes que correspondem à subsunção de tudo e de todos ao fetichismo da mercadoria) a discussão sobre as verdadeiras causas da perpetuação da nossa pobreza abstrata em meio à exuberância da nossa riqueza concreta, material, bem como sobre o porquê de não estar sendo utilizado o saber adquirido pela humanidade em benefício da dita cuja.
Enquanto isto os desempregados, impedidos de produzir qualquer coisa e impossibilitados de obter o necessário para uma existência digna (alimentação, moradia confortável, vestuário, água, energia, educação, segurança, transporte, lazer, arte, etc.), assistem desesperados a essa falsa dicotomia de propósitos entre direita liberal e esquerda keynesiana, que somente serve ao embotamento da capacidade social de elaborar coletivamente proposições verdadeiramente emancipatórias.
Deixemos bem claro que:
— é falaciosa a afirmação de que a reforma da previdência social vai promover a retomada do desenvolvimento econômico sustentável;
— é falaciosa a afirmação de que a retomada de crescimento econômico, acaso obtida momentaneamente, vá superar o secular processo de pauperização do povo brasileiro, que ocorre desde a mescla do feudalismo colonial escravista declinante até a ascensão do capitalismo escravista indireto, ora em rota falimentar;
— é falaciosa a postura de defesa dos interesses dos trabalhadores, alardeada por todos os políticos (de direita e de esquerda), posto que a própria categoria dos trabalhadores (e a própria força de trabalho, uma mercadoria) constitui-se em base substancial da sociedade da mercadoria, ou seja, daquilo que deveria ser colocado em xeque;
— é falaciosa a impressão que se tenta passar de que no Congresso Nacional estão assentados os bons de um lado e os maus do outro, pois na verdade todos pertencem a espécies relativamente diferentes de um mesmo gênero maligno: o capitalismo.
Temos mesmo é que libertar a imensa riqueza concreta, material, brasileira (e mundial) da sua submissão à tacanhez absolutista irracional da riqueza abstrata. (por Dalton Rosado)