Populismo sanitário
Bolsonaro cria divisões e distrai população com ‘populismo sanitário’ na pandemia, diz cientista político
Juliana Gragnani Da BBC News Brasil em Londres
Quando o presidente Jair Bolsonaro ergueu uma caixa de cloroquina a seus apoiadores - ou mesmo quando o fez diante de uma ema no Palácio da Alvorada -, havia uma estratégia política por trás: ele estava praticando "populismo sanitário" ou "populismo médico", diz o cientista político Guilherme Casarões.
Oferecer diferentes "curas" no meio de uma crise de saúde global é uma maneira de "moldar e amplificar a emergência sanitária para atender a seus interesses políticos", avalia Casarões, professor da Fundação Getúlio Vargas em São Paulo. Com isso, Bolsonaro cria divisões e tenta distrair a população da pandemia, avalia.
Curiosamente, o conceito de "populismo médico" foi definido por pesquisadores em um artigo pré-pandemia, de 2018. É um "estilo político em crises de saúde pública que coloca 'o povo' contra o 'establishment'", definem no texto os autores Gideon Lasco e Nicole Curato, das Universidades das Filipinas e de Canberra, na Austrália.
"Enquanto algumas emergências de saúde levam a respostas tecnocráticas que acalmam as ansiedades de um público em pânico, o populismo médico prospera politizando, simplificando, e espetacularizando questões complexas de saúde pública", diz o artigo publicado na revista Social Science & Medicine.
Como um dos exemplos, o trabalho cita o ex-presidente da África do Sul Thabo Mbeki (1999 a 2008) e seu negacionismo da AIDs. Em 2000, Mbeki formou um Conselho consultivo com vários cientistas que negavam que o HIV causasse a AIDs. Sua ministra da Saúde recomendou tratamentos com alimentos como o alho e a beterraba para tratar a doença.
Com a pandemia da covid-19, um dos autores do artigo original, o antropólogo médico e professor da Universidade das Filipinas Gideon Lasco, voltou a escrever sobre o populismo médico, desta vez ligando o conceito às estratégias adotadas por Bolsonaro no Brasil, o presidente Rodrigo Duterte nas Filipinas e o ex-presidente americano Donald Trump.
O estilo adotado por esses líderes na condução da maior emergência sanitária global dessa geração "simplifica a crise, dramatiza suas respostas a ela e cria divisões que desviam as pessoas de questões mais urgentes", diz Lasco por e-mail à BBC News Brasil.
Na visão dele, o populismo médico foi praticado por líderes no mundo inteiro: pelo primeiro-ministro do Reino Unido, Boris Johnson, e por Duterte, nas Filipinas, que minimizaram a crise. Por líderes como Bolsonaro que "abraçaram totalmente o negacionismo" ou por aqueles que ofereceram "curas", como o presidente de Madagascar, Andry Rajoelina, autor de declarações promovendo uma planta como solução para a doença que já matou mais de 3 milhões de pessoas no mundo todo.
No Brasil, o professor da FGV Casarões e David Magalhães, professor de relações internacionais da PUC-SP e da FAAP, ambos coordenadores do grupo de pesquisa Observatório da Extrema Direita, também adotaram o termo para explicar a estratégia de Bolsonaro diante da pandemia, publicando um trabalho sobre o assunto intitulado "A Aliança da hidroxicloroquina" na Revista de Administração Pública da FGV. Segundo Casarões, o populismo médico é uma espécie de "braço da estratégia populista" dos líderes que se valem dela.
Divisão na sociedade
Ele explica: duas importantes características do estilo ou da estratégia populista é a de que o populista divide o mundo sempre entre o povo a quem ele deve lealdade, de um lado, e as elites, "geralmente tachadas de antinacionais, corruptas ou imperialistas, dependendo de quem usa a distinção", do outro. Outro traço marcante é a de que o líder populista é um "gerador de crises".
"Ele cria crises, sejam elas imaginárias ou reais, justamente porque quer dar uma resposta simples e contundente."
O populismo médico, então, é a aplicação dessas duas características do populismo a uma situação de emergência sanitária: a divisão da sociedade entre povo e elite e a produção de crises.
Desde o começo da crise sanitária no Brasil, o presidente contrapõe as medidas para conter a disseminação da doença à manutenção de uma economia saudável no Brasil.
Bolsonaro descreve o confinamento para interromper as cadeias de transmissão da doença como uma medida de governos autoritários ou ditatoriais. E do outro lado desse ringue, ele coloca o trabalho. "A política do fica em casa, fecha o comércio está errada. O povo tem que trabalhar", afirmou Bolsonaro em março. "Tudo tem um limite, eu, todo meu governo, nós estamos do lado do povo", disse em abril. Na ocasião, afirmou que "estão empobrecendo a população para melhor dominá-la".
Na segunda (19/4), um dos filhos do presidente, o deputado federal Eduardo Bolsonaro (PSL-SP), escreveu no Twitter: "De um lado, ditadores tentando destruir o Brasil… De outro, brasileiros de todos os tipos, desde o ambulante até o grande empresário, sofrendo ao ver suas vidas sendo destruídas…".
Ou seja, a divisão está criada: o distanciamento físico, medida recomendada pelas maiores autoridades sanitárias do mundo para evitar mais contaminações e mortes, contra o trabalho, a liberdade e a saúde do povo brasileiro. "De acordo com esse discurso, o lockdown é uma medida elitista e autoritária contra o povo de bem, e o povo brasileiro médio não pode trabalhar por causa disso", diz Casarões.
O papel da cloroquina
Para Lasco, da Universidade das Filipinas, a criação da divisão na sociedade explora sentimentos que as pessoas já podem ter, como desconfiança em relação às farmacêuticas, planos de saúde encarecidos e hesitação em relação à própria ciência.
E é aí que entram as soluções milagrosas.
"O símbolo maior do desejo populista de não ter que tomar decisões mais drásticas e portanto impopulares, como um lockdown nacional, é apostar na cloroquina", afirma Casarões.
O medicamento foi incensado primeiro pelo presidente americano Donald Trump, em março do ano passado, depois de uma publicação extremamente criticada pela comunidade científica apontando a cloroquina como benéfica no tratamento para a covid-19. Bolsonaro foi atrás. Referiu-se à cloroquina como uma "possível cura" e disse ter mandado que o Exército ampliasse sua produção do medicamento.
O medicamento, que há meses se sabe ser comprovadamente ineficaz para a doença e pode até trazer efeitos colaterais graves, "virou uma espécie de símbolo altamente politizado daqueles que defendiam que havia uma solução muito mais fácil e intuitiva para a crise", diz Casarões.
"É como se a cloroquina fosse a solução barata que você encontra em qualquer farmácia, uma solução de alcance do povo contra as elites da indústria farmacêutica, as elites das universidades e um suposto lobby internacional", afirma.
"É uma solução que o presidente, que está do lado certo - do povo e da história -, pode oferecer contra essa elite que quer sonegar das pessoas o acesso ao remédio."
Além disso, a cloroquina teve um efeito secundário importante que foi "dar uma espécie de carta branca para que pessoas voltassem à normalidade", diz o cientista político.
Curas milagrosas
Do início de 2020 para cá, o Brasil já viu seu líder exaltar diferentes medicamentos como cura para a covid-19. Da cloroquina, passou para a ivermectina, depois para o spray nasal israelense e o chamado "tratamento precoce". Recentemente, voltou para a cloroquina defendendo a nebulização da droga em pacientes doentes. Esses medicamentos são comprovadamente ineficazes ou não têm comprovação de eficácia para a covid-19.
A defesa de medicamentos não se limitou a discursos. O governo federal também investiu recursos financeiros: segundo levantamento da BBC News Brasil do início do ano, gastou quase R$ 90 milhões com a compra de medicamentos como cloroquina, azitromicina e Tamiflu.
Para tentar adquirir o spray nasal que está em fase de testes iniciais, enviou a Israel uma comitiva de dez pessoas, incluindo o então ministro das Relações Exteriores Ernesto Araújo.
Os números da pandemia em todo mundo mostram que a maior parte das pessoas que contrai covid-19 se recupera. Por isso, segundo especialistas, remédios apresentados como "cura" acabam "roubando o crédito" do que foi apenas uma melhora natural. Assim, "é difícil refutar as curas milagrosas - já que as pessoas que as tomam se recuperam de verdade, embora obviamente isso não aconteça por causa delas", diz Lasco.
Para ele, "curas milagrosas permitem a simplificação da pandemia, que é um dos elementos centrais do populismo médico". "A maioria dessas curas milagrosas é acessível e barata, ao contrário das vacinas. Portanto, elas tornam a esperança a seu alcance."
A vacina foi o "último recurso do governo, depois de esgotadas todas as outras formas", opina Casarões, "porque é cara e envolve mobilização da máquina pública que o governo não queria mobilizar".
Além disso, parte do eleitorado de Bolsonaro tem uma ressalva a vacinas, consequência de teorias conspiratórias importadas dos Estados Unidos. Por fim, diz o cientista político, a disputa com o governador de São Paulo, João Doria, foi decisiva para que Bolsonaro finalmente considerasse a vacina como uma solução para a crise. "Quando Doria saiu na dianteira, Bolsonaro teve de dar o braço a torcer."
Aliás, o próprio governador paulista pode também ser visto como um populista sanitário, de acordo com Casarões. "Ele também joga o jogo do populismo sanitário, ainda que esteja alinhado com a ciência", avalia. Os esforços de Doria para o desenvolvimento de uma vacina em parceria com a China, algo que propagandeou diversas vezes, resultou no que é hoje o imunizante mais aplicado no país.
Médicos e o tratamento precoce
Ao lado de Bolsonaro, grupos médicos têm surfado na onda da "cura milagrosa", recomendando o que chamam de "tratamento precoce" ou "kit covid", um grupo de medicamentos já considerados ineficazes para a covid-19 ou sem eficácia comprovada. Usam as redes sociais para divulgar seu "protocolo" e fazem atendimento online, cobrando por consultas em que dão receitas para esses medicamentos.
Chefes de UTIs de hospitais de referência no Brasil disseram à BBC Brasil que o uso do "kit covid" tem contribuído de diferentes maneiras para aumentar as mortes no país. O jornal O Estado de S. Paulo revelou como já há pacientes que morreram ou foram para a fila de transplante de fígado por causa do uso do "kit covid".
Para Casarões, não há dúvidas de que determinados médicos estão se valendo da defesa desses medicamentos para se projetar politicamente.
O discurso do tratamento precoce também gerou uma divisão na sociedade médica. "Em geral, o médico que receita o kit covid vai criticar o seu colega que não receita dizendo que ele é professor universitário, mas não está na linha de frente, no atendimento. É o 'médico das pessoas versus o médico da universidade'", diz Casarões. "Dentro desses discursos do populismo médico, se cria um antagonismo à própria ciência."
Mas, para ele, o que os médicos fazem é mais "oportunismo" do que "populismo".
O futuro do populista sanitário
Resta a pergunta: o populismo médico ou sanitário é eficaz? Como os líderes que adotaram o estilo durante a pandemia de covid-19 no mundo se sairão nos próximos anos?
Na visão de Casarões, Bolsonaro ganha muito insistindo nesse discurso. Sobretudo porque, com a estratégia, ele continua sustentando a base do argumento bolsonarista, "de que se tem alguém que se preocupou amplamente com a vida de todo mundo, é ele".
"Mesmo a despeito de tanta coisa que está errada, Bolsonaro consegue manobrar, convencer muita gente."
Para Lasco, o populismo médico tem um grande apelo para a população por causa de suas "dimensões visuais e viscerais". "Explora divisões pré-existentes, afirmações que aparentemente são do senso comum e ações dramáticas que ressoam com o público", diz.
"O fato de Duterte e Bolsonaro terem permanecido populares, apesar de suas respostas calamitosas, fala da eficácia do populismo médico." O futuro dos líderes depende do futuro da pandemia, diz. No Brasil, até agora, mais de 375 mil pessoas perderam suas vidas por causa da doença.