Por uma EJA transformadora
‘Minha luta por uma EJA transformadora nunca vai acabar’, diz Dona Eda Luiz
Nove anos depois, o Porvir volta ao CIEJA Campo Limpo com Eda Luiz, responsável por levar a escola ao patamar de uma das mais inovadoras do Brasil
por Ana Luísa D'Maschio e Marina Lopes - 4 de julho de 2022
“Pareço aquele que carregava o tijolo para mostrar ao mundo como era sua casa.” A educadora Eda Luiz, de 74 anos, talvez não se dê conta de que a frase do dramaturgo Bertolt Brecht (1898-1956) serve como sua definição. Mesmo aposentada há dois anos da direção do CIEJA Campo Limpo (Centro Integrado de Educação de Jovens e Adultos), que coordenou por duas décadas, Dona Eda, como é conhecida, leva a escola aonde quer que vá.
E ela está tão presente por lá quanto antes: seja nos grafites nas paredes coloridas – um autorretrato estampa um dos muros –, na biblioteca aberta à comunidade com mais de 9 mil títulos, que leva seu nome, nos móveis que decoram a sala de direção. E, claro, nas visitas periódicas que faz à grande casa pintada de verde na Rua Cabo Estácio da Conceição, 176, no bairro Santa Helena, Zona Sul de São Paulo.
Uma delas aconteceu em uma tarde do final de junho, com a equipe do Porvir. Nove anos depois de publicar a primeira matéria sobre o CIEJA Campo Limpo, a reportagem voltou ao local a fim de registrar o que mudou desde então.
Tão acolhedora quanto o clima da escola, Dona Eda conhece cada canto de cor e, assim como fez em 2013, vai guiando a equipe. Logo na entrada, a mesma faixa dá as boas-vindas aos visitantes: “Que bom que você está aqui. Seja bem-vindo(a)”. O terreno íngreme segue envolvido por um vasto e bem cuidado jardim, agora ainda maior, por onde se espalham as classes, o refeitório e um terraço com espelhos na parede que recebe aulas de dança e de artes. A educadora vai recebendo abraços e cumprimentos dos funcionários e alunos no caminho até a sala do novo coordenador-geral, Diego Elias Santana Duarte, de 36 anos.
A escolha do substituto
Meses antes de se aposentar, Dona Eda, sempre observadora, elaborou a transição. Queria passar o posto para alguém de sua extrema confiança e Diego foi sua aposta: ele já trabalhava na escola como educador comunitário e se destacava pela atuação no CIEJA. “Diego é um menino super esforçado. Sempre foi um ótimo professor, conhece muito bem o território, fez trabalhos maravilhosos aqui, continua estudando no doutorado. Pensei: ‘Ele tem tudo para conduzir. É uma pessoa que vai defender a escola sempre'”.
O convite foi uma surpresa. “A princípio, eu disse não. É muita responsabilidade. E se a escola acabar na minha mão? Não vou dormir nunca mais se a escola fechar por minha causa”, relembra Diego. “Mas Dona Eda foi conversando comigo, fui amolecendo… E topei. Falei a ela: ‘As coisas vão seguir do mesmo jeito’. A partir daí, grudei nela, observando como ela resolvia os problemas. E aqui estou”, diz.
Diego conta que Dona Eda é uma grande parceira. “Às vezes, eu dou um puxão de orelha quando não responde às minhas mensagens, acha que vai incomodar. A gente gostaria que ela viesse para cá todos os dias, porque sentimos muita falta.” A resposta de Dona Eda está na confiança. “Quero que tenham autonomia.”
Uma educadora à frente do seu tempo
Sem portas fechadas, câmeras de segurança ou sinal de intervalo, o CIEJA Campo Limpo se destaca pela proposta pedagógica inovadora marcada pela gestão de Dona Eda, continuada agora por Diego Duarte.
Com um currículo interdisciplinar, organizado em áreas de conhecimento, a escola estimula o protagonismo dos estudantes e busca reconhecer suas experiências, necessidades e bagagens de vida.
Já fazíamos metodologias ativas antes, sem saber desse nome, de maneira orgânica, atendendo ao movimento. Eda Luiz
Em 2013, quando o Porvir visitou o local pela primeira vez, a educadora já contava, orgulhosa, como o projeto servira de inspiração para todos os outros CIEJAs da cidade. De lá para cá, a escola também foi uma das duas únicas do Brasil a ser reconhecida como Escola de Educação Transformadora para o Século 21, pela Unesco (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura).
Inspirada por Paulo Freire
As inquietações de Dona Eda sobre como deveria ser a Educação de Jovens e Adultos começaram na década de 1990, quando participou de encontros com Paulo Freire (1921-1997)* na PUC (Pontifícia Universidade Católica) para refletir sobre educação popular. “As aulas transformaram meu pensamento. Quis mudar tudo: trouxe rodas de conversa, abri os portões e deixei os alunos entrarem na hora que conseguiam chegar do trabalho, apostei na interdisciplinaridade”, recorda. Naquela época, Dona Eda trabalhava nos Cemes (Centro de Estudos Municipais de Ensino Supletivo), transformados em CIEJAs em 2002. Foi o ano em que assumiu a coordenação da unidade do Campo Limpo.
A primeira medida a ser tomada por Dona Eda foi ouvir os estudantes. “Eles não queriam sentar um atrás do outro, não queriam um professor que trouxesse tudo pronto, não queriam quebrar o pensamento em disciplinas de 45/50 minutos.” A saída foi construir uma estrutura diferente da escola regular, que pudesse dialogar mais com a realidade de jovens e adultos. Tanto que as séries tradicionais, da alfabetização ao nono ano, foram substituídas por etapas: Acolhimento, Confiança e Liberdade (Ciclo 1) e Alegria, Transformar e Aprender (Ciclo2).
A escada (à dir.) leva à sala da direção. À frente, o refeitório e, no primeiro andar, a sala dos professores / Crédito: Marina Lopes
“O CIEJA não é só uma escola, é um lugar onde você encontra aconchego, carinho, atenção dos professores. Desde lá do portão até aqui dentro, você é super bem-recebido”, defende Geneiulma Flor, ex-aluna que deu continuidade aos estudos e agora está prestes a concluir o ensino médio junto com o filho mais velho. Durante a visita da reportagem, ela estava em uma das salas de aula agradecendo ao professor por essa conquista e motivando a turma presente a continuar seus estudos após completar o ciclo do ensino fundamental. Foi aplaudida por todos – inclusive por Dona Eda.
Uma história que ajudou a escrever muitas outras
Na matéria de 2013 publicada pelo Porvir, Dona Eda chegava de um depoimento na Justiça, em defesa de Alemão, estudante com então 18 anos que tentava obter a guarda dos irmãos mais novos (que moravam em um abrigo desde a morte da mãe, usuária de crack). Naquele ano, Alemão trabalhava como cuidador de 18 alunos cadeirantes do CIEJA e também aconselhava estudantes envolvidos com drogas. Foi Dona Eda quem conseguiu uma vaga em uma clínica de reabilitação e deu a chance de trabalho para o jovem.
Ao se lembrar da história, Dona Eda pega o celular e imediatamente liga para Alemão, que aparece no CIEJA em meia hora: “Chamado de Dona Eda é ordem”, diz Anderson Odorico, de 28 anos, que conquistou a guarda dos três irmãos pouco depois da publicação da primeira matéria (Dona Eda foi corresponsável até que ele completasse 21 anos). Hoje todos moram bem, com suas respectivas famílias. E Alemão, casado com uma professora, trabalha como motorista de Uber e está prestes a ser pai. “Minha esposa está de 8 meses e duas semanas, perto de ganhar”, diz, sem esconder a alegria.
Por coincidência, naquela mesma manhã, Anderson já tinha passado pela escola para conversar com a coordenadora pedagógica Cristina Sá. “Ela me disse que preciso continuar sendo exemplo. Por isso, vou voltar para concluir o último semestre que ficou pendente.”
“Dona Eda me ensinou a não desistir das pessoas”, diz Anderson Odorico, o Alemão / Crédito: Marina Lopes
Entre lembranças e atualizações sobre acontecimentos recentes no CIEJA, Alemão pede licença para expressar sua gratidão ao legado que Dona Eda deixou, não só na sua vida, mas nas de tantos alunos e alunas que passaram pelo CIEJA: “Um dia, quando o Senhor Deus levar a senhora, Ele vai falar: ‘Eu deixei uma missão na sua mão e você cumpriu essa missão’. Saiba que você é amada por todos”, diz Alemão, com lágrimas nos olhos. “Quando eu caí [nas drogas], pedi uma nova oportunidade e falei [para dona Eda]: Minha atitude vai ser a sua resposta.”
Hoje, a resposta de Alemão é expressa também por meio da educação, da cultura e do respeito. Ele é o fundador do Projeto Nova Chance, uma ONG que oferece atividades de cultura, esporte e educação para 150 crianças do Jardim Aracati, bairro do extremo sul de São Paulo onde Alemão morou e sofreu muito na infância. “Quero oferecer uma chance, fazer a mesma coisa que fizeram comigo um dia. Dona Eda me ensinou a não desistir das pessoas.”
Sem perder a oportunidade, Dona Eda, também emocionada, diz: “É disso que eu falo, e é isso que a gente esquece [quando o assunto é Educação de Jovens e Adultos]. Quando você exclui, você deixa de olhar para isso.”
Sem pausa na agenda
A palavra aposentadoria, definitivamente, não combina com Dona Eda, como ela mesma diz. “Só me aposentei do serviço público”, brinca. Atualmente, ela divide a agenda entre a Unikebradas, o Projeto Viela e o Instituto Nova União da Arte, nos quais apoia a formação de educadores sociais, o conselho da ONG Cidade Escola Aprendiz e a participação no CEAAL (Consejo de Educación Popular de América Latina y Caribe).
Convidada como palestrante em eventos educacionais, viaja pelo mundo para falar da experiência do CIEJA: já foi a mais de 20 países. A menina de família italiana que estudou em escolas públicas de São Paulo e brincava de ser professora com os primos foi além do sonho de infância. E ela promete não parar por aí. “Temos aqui na comunidade um grande poeta, um grande amigo, o Sérgio Vaz. Ele fala: ‘A briga tem tempo para terminar, mas a luta vale por uma vida inteira’. A minha luta é pela educação, por uma EJA transformadora, e ela nunca vai terminar.”
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