Primeiras análises eleições 2018
Eleições 2018: Um pleito que revelou muito da sociedade e do Estado. Primeiras análises
Apesar de o novo presidente ter obtido 11% de votos em relação a Fernando Haddad, “é sintomático que 37 milhões de pessoas sequer fossem às urnas”
O país elegeu Jair Bolsonaro (PSL) presidente do Brasil. Ele será o 38º presidente, o oitavo eleito após a redemocratização. Com 55,14% dos votos válidos, Bolsonaro venceu Fernando Haddad (PT), com 44,86% da preferência, no segundo turno. Pelo menos 37 milhões de brasileiros se abstiveram, anularam ou votaram em branco, algo como 29% de todo o contingente de eleitores.
Para analisar o cenário pós-apuração, IHU On-Line ouviu uma série de pesquisadores para analisar o cenário de momento.
Na opinião de Roberto Romano, em entrevista por e-mail, “O Brasil não aprendeu modos civis e respeito mútuo ao longo de seus 500 anos. A grosseria do trato apenas radicalizou a ética violenta e hedionda que norteia os setores mais próximos à riqueza, a subserviência dos ‘negativamente privilegiados’, a tolice dos que permanecem entre os dois polos, a classe mediana”, avalia.
Na avaliação de Henrique Costa, o resultado das eleições já era “esperado”, mas “traz desalento”. “A esquerda, nos últimos anos, acreditou que a política se resumia à gestão da precariedade, enquanto a economia permitia. A direita, por sua vez, fez dela novamente guerra social, apelando aos afetos mais recalcados da sociedade brasileira, que reagiu violentamente escolhendo a autodefesa de seus valores conservadores”, comenta.
Apesar de o novo presidente eleito do país, Jair Bolsonaro, ter obtido 11% de votos em relação a Fernando Haddad, “é sintomático que 37 milhões de pessoas sequer fossem às urnas”, diz Fernando Altemeyer, em entrevista por e-mail, ao comentar o resultado das eleições presidenciais. “Atestamos em cidades de todo Brasil que mais de 30% dos cidadãos não foram votar. No Brasil inteiro foram 43 milhões (entre nulos, brancos e ausentes) somando 29% do colégio de eleitores. Jair Messias Bolsonaro teve 57,7 milhões sobre 147,3 milhões, ou seja, foi eleito por 39% dos eleitores aptos a votar. Os votantes em Fernando Haddad somaram 47 milhões de votos, ou seja, 32% dos eleitores”, calcula.
Rudá Ricci, em entrevista por telefone, prevê um cenário muito complexo e de desafios profundos para o próximo governo. “Há a crise econômica, que é mundial, e que não vai dar trégua em 2019. O Bolsonaro sabe disso. Com um programa mais restritivo de direitos sociais e a crise econômica, como ele vai driblar esses desafios em país dividido politicamente? Ele tem problemas gravíssimos, tal qual teria Haddad se tivesse sido eleito, que são problemas muito parecidos. Nós vamos pagar pela aventura e pela irresponsabilidade do que estamos vivendo no Brasil desde 2015”, frisa.
O professor José Geraldo de Souza Junior, em entrevista por e-mail, projeta o futuro com preocupação, sobretudo em relação às disputas internas e externas do próximo governo. “Terá o presidente eleito atributos pessoais e institucionais em condições de conduzir essa mediação, num quadro complexo que se expressa numa institucionalidade recortada por tantos antagonismos corporativos, morais, ideológicos que se espraiam em todo o social?”, questiona.
Já o sociólogo Roberto Dutra, em entrevista concedida por e-mail, reflete sobre os principais desafios de Bolsonaro como presidente. “O maior desafio vai ser adotar uma linha de conduta diferente da assumida na eleição. Vai ter que negociar cargos com políticos, por exemplo. Vai ter que saber aceitar a oposição, senão corre o risco de acumular insatisfações intransponíveis que podem ser perigosas em momentos de crise”, diz. E questiona: “Ele será capaz de reeducar a si mesmo e a seus eleitores, ou preferirá refúgio na bolha sectária no primeiro momento de crise?”
Confira a entrevista.
IHU On-Line: Que avaliação faz do resultado das eleições presidenciais e qual é o seu significado político?
Roberto Romano é professor aposentado de Ética e Filosofia na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Cursou doutorado na École des Hautes Études en Sciences Sociales - EHESS, França. Escreveu, entre outros livros, Igreja contra Estado. Crítica ao populismo católico (São Paulo: Kairós, 1979), Conservadorismo romântico(São Paulo: Ed. Unesp, 1997), Moral e Ciência. A monstruosidade no século XVIII (São Paulo: SENAC, 2002), O desafio do Islã e outros desafios (São Paulo: Perspectiva, 2004) e Os nomes do ódio (São Paulo: Perspectiva, 2009).
Roberto Romano: O pleito de 2018 revelou muito da sociedade e do Estado. O Brasil não aprendeu modos civis e respeito mútuo ao longo de seus 500 anos. A grosseria do trato apenas radicalizou a ética violenta e hedionda que norteia os setores mais próximos à riqueza, a subserviência dos "negativamente privilegiados", a tolice dos que permanecem entre os dois polos, a classe mediana. As supostas redes sociaistrouxeram à tona a parte miserável de Dorian Gray: o retrato apodrecido, tisnado de má-fé e covardia. Pela internet "valentes" sentiram-se à vontade para mentir, caluniar, destruir os outros, ajudados por maquinações robóticas que condensaram ataques às pessoas, em massa. Ou seja, a tecnologia a serviço da boçalidade. E não digo que tal prática foi limitada apenas ao espectro da direita. Claro que ela mostrou as suas garras e dentes afiados desde o século 20, com os movimentos totalitaristas, como o integralismo, o varguismo torcionário, as campanhas sobre o "mar de lama", as tentativas de golpes e golpes contra [Juscelino Kubitschek] JK ou João Goulart. Na Guerra Fria, o reacionarismo local foi impulsionado pelos EUA. Hoje ele tem sustentação autônoma, é legítimo produto brasileiro.
A histeria exibida com modos grosseiros marcou a "campanha" dos setores reacionários. Mas não é possível esquecer que do outro lado os modos não foram polidos. Após o período FHC, quando exerceu uma oposição forte, a esquerda petista se expandiu em agressões aos outros partícipes da cena política, com ataques à honra e à dignidade dos que ousavam dela discordar. Eu mesmo, modesta figura pública sem poderes, senti na pele a ferocidade dos seus ataques. Mesmo quando o reitor da Universidade de Santa Catarina foi levado ao suicídio, escrevi no Jornal da Unicamp um candente artigo contra os procedimentos da polícia, um importante site da esquerda, a Carta Campinas, dele falou adiantando que eu seria um tucano que agora se arrependia dos erros passados. "Tucano" foi o mais leve apelido que recebi. Outros me apresentaram como "udenista de meia tigela".
Se em relação a alguém que apoia a esquerda ela agiu como inimigo implacável e injusto, que dizer dos que, sem pertencer às hostes petistas, tinham posições favoráveis aos direitos humanos, à democracia? Elas foram ridicularizadas e caluniadas pelos militantes a mando de dirigentes partidários. A narrativa do ódio que seria monopólio da direita precisa ser modificada se existir, de fato, pretensão de retorno ao poder pelo progressismo.
Fake news e ódio não foram benéficos ao país. Eles trouxeram à superfície a verdade sobre nosso coletivo: injusto, truculento, persecutório, covarde, eivado de preconceitos. Nenhuma novidade em tal constatação, visto que aprendemos nos diálogos platônicos e com Maquiavel, Spinoza, Freud e Marx que os interesses mais baixos são deslanchados pelos demagogos cuja ideologia produz cegueira em massa, o que piora nas crises ou eleições.
A experiência explicitada no 18 Brumário de Luis Bonaparte ainda precisa ser percebida pela esquerda, se há mesmo o desejo de vencer os golpes de Estado e diminuir o controle corrupto das classes dominantes. "As ideias dominantes... são as ideias da classe dominante". O dito sapiente de A Ideologia Alemã é precioso para pensar a dominação de classes. O WhatsApp serve à pedagogia da servidão: interesses e teses da Fiesp, bancos e outros foram assumidos por massas desvalidas, espalhados por celular. Eles se transformaram em votos aos milhões.
Fernando Altemeyer Junior é teólogo leigo, possui graduação em Filosofia e em Teologia, mestrado em Teologia e Ciências da Religião pela Universidade Católica de Louvain-La-Neuve, na Bélgica, e doutorado em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - PUC. Atualmente é professor e integra o Departamento de Ciência da Religião, da Faculdade de Ciências Sociais da PUCSP. Entre suas publicações, destacamos Aparecida, caminhos da fé (São Paulo: Loyola, 1998), Deus sem poder (In: Centro de Estudos da antiguidade greco-romana - PUCSP. (Org.). Hypnos 6. São Paulo: Palas Athena, 2000, v. 6, p. 57-63) e A recepção do projeto do papa Francisco (In: Wagner Lopes Sanchez; Eulálio Figueira. (Org.). Uma Igreja de portas abertas - nos caminhos do papa Francisco. 1 ed. São Paulo - SP: Paulinas, 2016, v. 1, p. 23-38).
Fernando Altemeyer Junior: Venceu Steve Bannon, o controlador de marionetes e criador das fake news. O Brasil se tornará colônia dos norte-americanos. A soberania será posta em risco permanente. A cegueira moral imposta aos brasileiros pelos bancos e redes privadas de Televisão destroça a frágil democracia que construíamos desde 1988.
Atestamos em cidades de todo Brasil que mais de 30% dos cidadãos não foram votar. No Brasil inteiro foram 43 milhões (entre nulos, brancos e ausentes) somando 29% do colégio de eleitores. Jair Messias Bolsonaro teve 57,7 milhões sobre 147,3 milhões, ou seja, foi eleito por 39% dos eleitores aptos a votar. Os votantes em Fernando Haddad somaram 47 milhões de votos, ou seja, 32% dos eleitores. É evidente que Bolsonaro teve a maioria, mas é sintomático que 42 milhões de pessoas sequer fossem às urnas. Os ricos e a mídia golpista conseguiram inocular pela pregação diuturna o veneno da apatia e da desmobilização. Mataram a política e a cidadania envenenando as raízes. Os partidos históricos foram aniquilados por corrupção, dinheiro e aparelhismo de empresas. As articulações sociais foram desfeitas. O Judiciário ficou inerte e cúmplice diante de fake news que grassaram tal qual praga evidente no WhatsApp induzindo ao erro. O Brasil feito aos pedaços sem ter agora qualquer amálgama conectivo nem claro projeto de futuro. Uma imensa tristeza assistir à vitória do fascismo como réplica da ditadura já vivida por 21 anos entre 1964-1985.
Resta-nos a frágil luz de esperança em líderes que vivem na justiça e na verdade, sem incoerências éticas. Há muita gente boa em cada recanto do Brasil. Será preciso costurar essa gente resistente para fortalecer o tecido esgarçado. Pode parecer uma colcha de retalhos, mas é o que temos. Tarefa para dez anos de labuta e pelejas.
Diante da crônica da morte anunciada, teremos que rever o papel das Igrejas que fizeram a opção preferencial pelo capitalismo e de pastores e padres adeptos da teologia da prosperidade e discursos segregacionistas contra negros, mulheres e homossexuais. Os pobres foram abandonados. Assim, lobos famintos fizeram o estrago simbólico. Os apelos do papa Francisco encontraram ouvidos moucos. Como diz o poeta: “Ontem, na ditadura as paredes tinham ouvidos, hoje, os ouvidos tem paredes”.
Rudá Ricci é graduado em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - PUCSP, mestre em Ciência Política pela Universidade Estadual de Campinas - Unicamp e doutor em Ciências Sociais pela mesma instituição. É diretor geral do Instituto Cultiva, professor do curso de mestrado em Direito e Desenvolvimento Sustentável da Escola Superior Dom Helder Câmara e colunista Político da Band News. É autor de Terra de Ninguém (Ed. Unicamp, 1999), Dicionário da Gestão Democrática(Ed. Autêntica, 2007), Lulismo (Fundação Astrojildo Pereira/Contraponto, 2010) e coautor de A Participação em São Paulo(Ed. Unesp, 2004), entre outros.
Rudá Ricci: Essa eleição é histórica porque é a primeira vez que um discurso de extrema direita vence um pleito no Brasil para o governo federal. Além disso, tem o apoio de cinco governadores eleitos: Distrito Federal, São Paulo, Minas Gerais, Santa Catarina e Rio de Janeiro. Some a isso um país totalmente dividido, com 46 milhões de votos a favor de Haddad, o que não é qualquer coisa, e mais nove governadores no nordeste o apoiando. Temos um discurso do vencedor de extrema direita, de violência e ataque. Outro ponto é que tanto a fala de vitorioso quanto do derrotado revelam chagas abertas. Um termina colocando a culpa no PT e o outro diz “coragem, estamos do lado de vocês”, não fiquem preocupados, não chorem. Então a guerra política está reavivada.
José Geraldo de Sousa Junior é graduado em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal - AEUDF, mestre e doutor em Direito pela Universidade de Brasília - UnB, onde leciona desde 1985 e foi reitor de 2008 a 2012.
José Geraldo de Sousa Junior – O país sai das eleições tomado pela mesma incerteza que se ofereceu para a sociedade durante todo o processo eleitoral. Como e por que nos dividimos tanto e nessa divisão o que se liberou em nossa mentalidade que a disputa revelou. Uma sociedade confrontada com o seu passado — colonialista, hierárquico, segregacionista, racista, patriarcalista, intolerante — que ainda constitui parte de nós e que se acomoda a um perfil político autoritário, elitista, afeito às várias supremacias que se instalam num percurso de acumulação insensível às expectativas do social emergente que reivindica reconhecimento, participação política e direitos e que resiste a um projeto que traduz essas expectativas em um projeto de maior distribuição da riqueza socialmente produzida por meio de uma governança com mais compartilhamento do poder político.
Henrique Costa é doutorando em Ciências Sociais na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), mestre em Ciência Política e graduado em Ciências Sociais pela Universidade de São Paulo - USP.
Henrique Costa: O resultado, apesar de esperado, traz desalento. Todos aqueles que acreditam na democracia, mesmo que divergindo quanto ao seu conteúdo substantivo, e que se engajaram na campanha de Haddad, devem refletir sobre como chegamos ate aqui. É um choque para todos nós, mas a verdade é que este resultado vem sendo construído há pelo menos cinco anos, e não nos preparamos para esse momento, diferentemente daqueles que venceram agora.
Há dois movimentos que explicam o resultado.
Primeiro, os militares concluíram que o projeto geiselista, de modernização conservadora, perdeu sua base material com a desindustrialização do país e desde a missão no Haiti vem se preparando para lidar com o colapso econômico e institucional, usando o Rio de Janeiro como laboratório. Atentos à crise econômica e à devastação do mundo do trabalho que se converte em violência, tanto nas redes sociais como em episódios isolados espalhados pelo país, seus aliados no mundo político, desde junho de 2013, vêm se conectando com a agonia dessa classe trabalhadora e que teve seu ponto de máxima visibilidade na greve dos caminhoneiros.
Evidentemente, resgatam um velho ressentimento contra o intelectualismo, identificado na classe artística, nos estudantes de universidade pública e, sobretudo, no ativismo LGBT, vistos como vencedores da guerra pelos melhores postos do capitalismo contemporâneo e, portanto, adversários a serem abatidos. Então, o significado político não pode ser minimizado, pois não se trata apenas de uma derrota eleitoral, mas a consagração eleitoral de uma vitória social. A esquerda, nos últimos anos, acreditou que a política se resumia à gestão da precariedade, enquanto a economia permitia. A direita, por sua vez, fez dela novamente guerra social, apelando aos afetos mais recalcados da sociedade brasileira, que reagiu violentamente escolhendo a autodefesa de seus valores conservadores.
Enfim, Bolsonaro não enganou ninguém. Ele prometeu a barbárie, e quase 60 milhões de pessoas escolheram acompanhá-lo. Seu discurso de ódio, recalcado na alma do país, teve uma adesão que nossa visão otimista do Brasil, cuja última manifestação foi o lulismo, não estava preparada para ver. Teremos que resistir agora, como minoria.
Roberto Dutra Torres Junior é doutor em Sociologia pela Humboldt Universität zu Berlin e mestre em Políticas Sociais pela Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro (UENF). É professor da UENF e ex-diretor do Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas - Ipea.
Roberto Dutra: Trata-se da maior vitória eleitoral da direita na história política brasileira. E não se trata de qualquer direita, mas de uma direita extremada, militarizada e autoritária em todas as esferas da sociedade, na igreja, na escola, no partido, em tudo. Precisaremos de tempo para fazer uma análise cuidadosa deste resultado e de seu significado político, mas alguns aspectos do processo eleitoral permitem pontuar o seguinte:
1) O sistema político passa por transformações estruturais muito importantes, como a introdução de novos meios de difusão e comunicação, com efeitos que ainda não podemos vislumbrar bem. A relação entre candidatos, eleitores e organizações políticas muda com isso, mas não sabemos exatamente em que direção. Aparentemente, organizações e candidatos enraizados nestas organizações perdem protagonismo no sistema. Quando o jornalismo de massa e a TV se tornaram decisivas para os processos eleitorais, isto produziu mudanças estruturais importantes no sistema político. As redes sociais parecem provocar mudanças semelhantes no mundo todo, com especificidades locais, como o uso do Whatsapp na campanha brasileira. Mas esta vitória de Bolsonaro e da direita foi impulsionada por, pelo menos, dois outros fatores.
2) O primeiro deles é o processo de demonização da política desencadeado pelo “mensalão” e mais fortemente pela operação Lava Jato e reverberado como antipetismo pelos meios de comunicação, especialmente pela Rede Globo. A Lava Jato trouxe prejuízos enormes para o sistema político e a democracia. Seus efeitos potencialmente positivos são muito duvidosos. Não teve efeito estruturante no sentido da redução da corrupção, mas apenas efeito destrutivo sobre as organizações e elites políticas. Assim como na Operação Mãos Limpas da Itália, na Lava Jato o resultado foi a eleição de um político “antissistema”, com pouco apreço pela democracia. O nosso bufão, porém, é muito mais perigoso que o Berlusconi. A Lava Jato representa uma visão moralizadora aberrante que destruiu relações de confiança na troca de apoios e no ajuste informal de interesses, bloqueando a capacidade do sistema político em produzir decisões coletivamente vinculantes com o alcance e a eficácia necessários para um combate institucionalizado da corrupção.
3) O segundo fator são os erros do campo progressista. O ex-presidente Lula é o grande derrotado destas eleições. Sua estratégia de transformar a eleição em um plebiscito sobre o PT, e especificamente sobre sua própria condenação, foi ingrediente decisivo para a vitória de Bolsonaro. No PT, o antipetismo foi subestimado e rechaçado como puramente reacionário. E não é. Existem setores médios e populares que têm razões para não se sentirem representados pelo PT. Não são necessariamente tolos ou imbecis por não gostarem do PT, como se costuma dizer nesta sociologia moralista cujo esporte predileto é xingar a classe média.
Ao ignorar a força do antipetismo, o PT e Lula subestimaram a força potencial de Bolsonaro. A derrota não era necessária, como agora alguns querem fazer crer. Era difícil, mas era possível. Além disso, setores da esquerda contribuíram para que a disputa presidencial se transformasse em uma “guerra cultural”, o melhor cenário para Bolsonaro, que assim não precisou discutir seu programa ultraliberal na economia e na política social.
A esquerda precisa abandonar o messianismo lulista, mas também a linguagem da política identitária, que a afasta de sua base potencial, as classes populares e médias. O problema com a chamada política identitária não é o conteúdo de suas pautas, mas sim a forma de sua política, sua concepção do que é o próprio agir político. A luta contra as desigualdades de gênero e de orientação sexual são, por exemplo, pautas centrais para os progressistas. A questão é a forma de ação política e a visão estratégica envolvida. Neste aspecto, a política identitária, difundida quase sempre a partir dos centros de ciências humanas das universidades, empreende uma moralização duradoura da política, adotando e cultivando o pior da herança da geração de 1968.
A política identitária consiste, basicamente, em poses emocionais e dramatizadas que tomam o lugar da preocupação política em agregar forças. O critério passa a ser quem tem a moral do seu lado, e não quem consegue reunir apoio. Esta moralização duradoura da política ignora a peculiaridade da política, que é a possibilidade de construir coletividades para além das identidades morais existentes. A esquerda deveria simplesmente abandonar esta forma de atuação que reduz a política à moral e compromete fortemente as chances de recuperar o terreno perdido para a direita.
Vejo, por exemplo, com muita preocupação o comportamento hipermoralizado de parte da militância petista em não reconhecer devidamente a vitória de Bolsonaro, como se qualidades morais negativas que podemos atribuir ao candidato fossem mais importantes que o rito sagrado do voto, pelo qual ele foi consagrado. Espero não ver nem ouvir “fora Bolsonaro!” de gente responsável. Rechaçar moralmente este resultado e, pior ainda, os segmentos sociais que deram suporte a ele, é dar continuidade à troca indevida de política por moral, criando o ambiente ideal para que Bolsonaro prossiga com sua “guerra cultural” e encurrale cada vez mais os progressistas.
Ruy Fausto é graduado em Filosofia e em Direito pela Universidade de São Paulo – USP, e doutor em Filosofia pela Université Paris 1 Pantheon-Sorbonne. Entre seus livros, mencionamos, Caminhos da esquerda. Elementos para uma reconstrução (Companhia das Letras: 2017); Sentido da dialética - Marx: Logica e Política (Vozes: 2015); A esquerda difícil (Perspectiva: 2007); e Os piores anos de nossa vida (Fundaçao Astrojildo: 2008).
Ruy Fausto: Um desastre. Foi eleito um candidato que faz o elogio não só da ditadura militar, mas da ala mais violenta dessa ditadura. Ele não porá em prática o que anda dizendo? Uma parte, pelo menos, porá. E, principalmente, os efeitos dessas opiniões já estão aí. Nunca a situação dos LGBT foi tão difícil no Brasil. Basta isso para mostrar a gravidade do momento atual. O que irrita é o discurso conciliador. E a simetria que se estabeleceu entre os dois candidatos. Bolsonaro é de fato um extremista de direita. Mas Haddad, muito bom candidato aliás, é um homem de centro-esquerda que não tem nada de extremista. E o PT, dirão? O PT é, na realidade, um partido semipopulista, que cometeu o grave erro de se acomodar à corrupção que domina o Estado brasileiro há muito tempo. Se acomodou e se aproveitou dela, combinando esse pecado com uma política social que produziu alguns resultados. Isso implicava para o PT e o seu candidato a exigência de uma autocrítica rigorosa; porém era mais do que insuficiente para fazer desse partido, objetivamente, um grande demônio. Pois foi o que aconteceu. Agora é mobilizar para a resistência as forças vivas do país, na sua grande maioria radicalmente opostas a Bolsonaro e a tudo o que ele representa — resistência ao populismo de extrema direita (que pode ser chamado com suficiente rigor de neofascista) em todos os lugares em que a luta for possível, dentro e fora da sociedade civil: no legislativo, no judiciário — sempre que encontrarmos lá algum espaço —, nos executivos estaduais e municipais, na universidade, na mídia, nas ruas.
IHU On-Line: Quais serão os desafios de governabilidade do presidente eleito?
Roberto Romano: No início, o eleito pode contar com o tradicional sursis, a ele concedido pelo Congresso, pelas classes dominantes, pelos mantenedores da ordem. Mesmo a oposição deverá conceder a si mesma um tempo para repensar suas estratégias e táticas. O maior desafio, em termos de governabilidade, é conter os afoitos da privatização absoluta, os saudosos do regime de 1964. Além deles, será preciso cautela com as vivandeiras da política e da economia, sempre aptas a explorar seu prestígio, grande ou pequeno, para lucro próprio.
O episódio Collor é importante. Eleito com a mesma virulência, truques de propaganda e rasteiras antiéticas, ele aglomerou um número similar às hostes que hoje proclamam a vitória do anticomunismo, a recusa da doutrina social da Igreja Católica, os direitos humanos. Mas na arrogância do mando adquirido, foi baixada uma norma suicida para a governabilidade: o confisco das poupanças que, gradativamente, entrou na síntese da péssima governança, com a corrupção larvar.
Uma diferença entretanto: na época, a imprensa vigiava, apesar de suas simpatias pelo "caçador dos marajás", os atos do poder. Hoje a imprensa (escrita, falada e televisionada) enfraqueceu muito diante da internet. No regime de 1964 a censura era exercida para silenciar a imprensa. Hoje, o governo pode usar, tudo leva a tal dedução, a própria internet que o elegeu para censurar ou aniquilar a imprensa. As ameaças em relação às finanças dos jornais e televisões são claras. No mesmo tempo em que privilégios são oferecidos para a imprensa aliada, como é o caso da TV Record e outros.
Aliás, dos desafios a serem enfrentados, a questão teológico-política não é menor. A fome de poder de pastores e bispos pentecostais não tem limites, com resultados danosos para o convívio de crenças religiosas, doutrinas morais conflitantes. É possível prever choques de ordem religiosa para os próximos tempos, com o acobertamento do governo.
A economia entra em estado de choque. Teremos a luta, entre os vitoriosos, do privatismo radical e os elementos estatizantes que ainda operam dentro das Forças Armadas. Enfim, cada setor das políticas públicas será uma caixa de surpresas, muitas delas desagradáveis, a ser aberta pelos novos governantes.
Fernando Altemeyer Junior: Todos os que se referem à manutenção de direitos conquistados somados à defesa diuturna das liberdades democráticas que continuaram vilipendiadas pelo discurso e práticas de grupos extremistas que sustentam o atual vencedor. Será preciso resistir e zelar fielmente pela ordem constitucional. Nunca como hoje precisaremos defender a Carta Magna da Nação e a liberdade de pensar e contestar os abusos e ilegalidades. Será preciso plantar outra semente, para superar a transgênica que se impôs pelo discurso do ódio. Não será nada fácil. Exigirá paciência e serenidade. Ainda será preciso avaliar os resultados de cada Estado para verificar aliados do povo e aliados dos ricos e latifundiários. Esse dado é importante para as alianças no futuro como janela de possibilidades. Também os primeiros passos do Congresso e novo Senado deverão ser pesados e compreendidos. Nem tudo está claro no momento.
Rudá Ricci: O primeiro deles é conseguir administrar essa chaga aberta que dividiu o país completamente e vai continuar dividindo, porque a campanha dele [Bolsonaro] foi construída em cima do ódio e da fake news, principalmente no final do primeiro turno, e de ameaças racistas e sexistas. O que ele falou e o que a campanha dele fez não tem como ser apagado, inclusive na última semana tivemos invasões ilegais da polícia em universidades impedindo debates. O Supremo Tribunal Federal (STF) teve que intervir dizendo que era ilegal. Foram longe demais.
O segundo problema diz respeito à equipe interna, porque ele tem a equipe econômica liderada pelo economista e banqueiro Paulo Guedes, que é ultraliberal e vai exacerbar o programa levado pelo Temer. Mas de outro lado há militares que sempre foram nacionalistas e com intervenção forte do Estado para unificar o país, a defesa nacional e o desenvolvimento do Brasil. Foi isso no Regime Militar, no Movimento Tenentista de 1924, foi isso desde a briga de Deodoro da Fonseca e Floriano Peixoto. Então ele vai ter que administrar essa divisão interna.
Em terceiro lugar é a crise econômica, que é mundial, e que não vai dar trégua em 2019. O Bolsonaro sabe disso. Com um programa mais restritivo de direitos sociais e a crise econômica, como ele vai driblar esses desafios em país dividido politicamente? Ele tem problemas gravíssimos, tal qual teria Haddad se tivesse sido eleito, que são problemas muito parecidos. Nós vamos pagar pela aventura e pela irresponsabilidade do que estamos vivendo no Brasil desde 2015.
José Geraldo de Sousa Junior: Nessa tensão, que o resultado da eleição não alivia porque extremamente equivalente na divisão dos votos e dos posicionamentos que designam, o presidente eleito precisará de enorme capacidade de convocação, de confiabilidade, de competência, de base política experiente e ativa para o exercício da mediação que permita transitar para um quadro político de maior pactuação, construído com múltiplos consensos, diligentemente negociados no ambiente institucional (parlamento, judiciário, burocracia) e no espaço de uma sociedade civil mobilizada e organizada para formular agendas nos campos econômico, social e regulatório por meio de políticas públicas e sociais.
Henrique Costa: Num primeiro momento, o governo Bolsonaro não deve ter problemas de governabilidade. Pelo contrário. Já se anunciava antes mesmo do 2º turno a adesão do centrão e de outras legendas dispostas a colaborar, como o MDB e o DEM. Além disso, o PSL deve inchar com a filiação de parlamentares eleitos por partidos impedidos pela cláusula de barreira. É natural que o partido do governante eleito cresça pelo interesse do parlamentar em se manter próximo ao poder. Também favorece Bolsonaro o fato de que a grande maioria dos eleitos tem um perfil conservador e, diferentemente da atual legislatura, mais fisiológica, haverá grande alinhamento ideológico.
Evidentemente, essa adesão cobrará seu preço, como sempre. E no médio prazo, o aprofundamento da crise econômica, acompanhado da persistência do desemprego e do endividamento, podem rever esse apoio, como aconteceu com Michel Temer, que também tinha muito apoio parlamentar quando assumiu e que foi corroído pela impopularidade. Bolsonaro deve conseguir, nos primeiros meses, manter um significativo apoio social por conta da expectativa de mudança que ele ensejou, mas o sucesso de seu governo e a manutenção da governabilidade dependerão de como a economia e a violência responderão às suas ações.
Roberto Dutra: O maior desafio vai ser adotar uma linha de conduta diferente da assumida na eleição. Vai ter que negociar cargos com políticos, por exemplo. Vai ter que saber aceitar a oposição, senão corre o risco de acumular insatisfações intransponíveis que podem ser perigosas em momentos de crise. E vai ter que recalibrar as expectativas difusas e bastante contraditórias que gerou na população: redução de impostos e melhoria nos serviços públicos, redução da violência e armamento irracional da população, discurso de unidade nacional e postura autoritária que nega o direito de existência da oposição e da esquerda. Sem recalibrar essas expectativas, o governo torna-se rapidamente impopular e isso terá repercussões negativas no congresso e na governabilidade. Mas isso exige inteligência política para transpor o ambiente de ignorância e intolerância que o próprio Bolsonaro criou. Ele será capaz de reeducar a si mesmo e a seus eleitores, ou preferirá refúgio na bolha sectária no primeiro momento de crise? Creio que não será capaz. Se for capaz, estará jogando o jogo democrático. Por isso, torço contra minha própria observação enquanto sociólogo.
Ruy Fausto: Ele encontrará os seus aliados. Não faltam conservadores truculentos nem oportunistas no cenário político brasileiro.
IHU On-Line: O que esperar do governo eleito?
Roberto Romano: Que ele não aprofunde as crises ética, moral e social que assolam o país. Que ele não assuma atitudes contrárias à Constituição e aos direitos dos cidadãos. No passado, assisti num canal de TV, entrevista com um sertanejo de boa cepa. "O que o senhor espera dos eleitos?" disse o repórter . "Espero bondade". O jornalista: "E se não vier bondade?". Réplica a mais política, digna dos volumes maquiavélicos: " Se não vier bondade, eu arrenego!". O ensinamento do sertanejo não foi aprendido pelos políticos brasileiros, em toda a paleta das ideologias.
Fernando Altemeyer Junior: Nada, pois o PSL é um partido de aluguel sem programa de governo, nem articulação nacional com as forças vivas do povo. Não possui intelectuais de peso nem tem conexão com as universidades, com o mundo das artes ou mesmo com a sociedade civil organizada e democrática. PSL se fez vitorioso com um discurso panfletário impondo medo e grosserias, tornando-se um amontoado de políticos narcisistas sem experiência de cidadania ativa e sem capacidade para costurar um pacto em favor da nação brasileira. Será o tempo do cada um por si. Tempo de paralisia nos aparelhos de Estado, nas políticas sociais aniquiladas e na vitória dos ricos contra os pobres, ou seja, mais do mesmo desastre Temer que já nos paralisa nos últimos 25 meses desde o golpe parlamentar de agosto de 2016. O povo sentirá os preços dos combustíveis, da água, do gás e da conta de luz e transporte. A economia em crise favorecerá os ultra ricos e os bancos, somada à falta de habilidade política do futuro governante, pois ele não tem traquejo com a democracia e a governança profissionais.
O programa neoliberal do seu guru econômico Paulo Guedes (um Chicago boy) irá constituir-se em caldeirão de desilusão, como já vemos na Argentina com receituário semelhante. O povo sentir-se-á abandonado mesmo que as televisões apresentem pão e circo. Nem o futebol nos aliviará da exploração capitalista. A oposição precisará pensar em projetos de curto e médio prazo e retomar o trabalho de base que abandonou por anos. A alternativa virá da sociedade civil em favor da justiça social e da liberdade.
Os que creem na democracia precisarão voltar à semeadura nas periferias, roças e centros de cultura. A única esperança é de que sejamos salvos e protegidos pela arte e pela compaixão. Vai ser preciso muita teimosia e coragem. Quem sabe possamos rezar o Salmo 9,18 na contramão dos poderosos: “Os necessitados jamais serão esquecidos, nem será frustrada a esperança dos pobres e humildes”. Afinal, caminhamos de esperança em esperança. Quem sabe a hora da dor servirá para coser uma nova democracia direta e profunda. O Deus da liberdade nos ouça e fortaleça.
Rudá Ricci: Ele tem, pelo menos, apoio de cinco governadores de estados importantes, apesar de o vencedor no Distrito Federal ser um pouco mais ameno. De outro lado, ele tem o nordeste inteiro contra ele. Ele tem maioria no Congresso, mas uma maioria marcada pelo baixo clero, que faz demandas picadas. Então ele vai ter que negociar bancada por bancada, talvez deputado por deputado, porque ele era do baixo clero e sabe muito bem o que ele demandava e o que os governantes vão ter que demandar.
O problema da governabilidade do Bolsonaro é que ele não tem experiência nenhuma no Executivo e dava pra ver no pronunciamento dele um certo temor, uma insegurança na voz. Vai ser um período muito difícil porque ele vai ter que trocar o pneu do carro com ele andando, aprender a ser governo governando, aprender a ser vidraça quem sempre foi estilingue. Mais difícil que a composição, vai ser a governabilidade do apoio que ele tem.
José Geraldo de Sousa Junior: Que seja capaz de compreender o momento tenso e crítico que as eleições descortinaram e que vai requerer extrema capacidade mediadora e de liderança para abrir-se às expectativas insatisfeitas com o resultado das eleições que permanecerão mobilizadas para se verem reconhecidas e traduzidas em programas governamentais. Terá o presidente eleito atributos pessoais e institucionais em condições de conduzir essa mediação, num quadro complexo que se expressa numa institucionalidade recortada por tantos antagonismos corporativos, morais, ideológicos que se espraiam em todo o social? Será capaz de refrear a sua verve autoritária tantas vezes formulada antes, durante a sua trajetória parlamentar e na campanha? Será capaz de exercer autoridade civil cercado de hierarquias pretorianas que o encerram num modelo de contenção de oposições por meio de seu aniquilamento, que tantas vezes exaltou? Será capaz de dialogar com a sociedade civil quando ameaçou o que chama de seu ativismo prometendo criminalizar esse protagonismo? Se lograr, o que parece pouco provável, cercar-se de assessoramento mais republicano, laico e democrático, e domesticar seus mais primários impulsos, poderá estabelecer alguma governabilidade. Caso contrário, com a promessa de austeridade econômica e de afinidade com a agenda ultraliberal, o seu governo será, certamente, um período sombrio caracterizado pelo tumulto e pela redução política dos espaços de democracia e de liberdade.
Henrique Costa: De início, há uma expectativa por parte do eleitorado do capitão reformado de que ele rompa com esse perfil de negociações por cargos e verbas, mas ele deve equilibrar essa frustração com medidas razoavelmente fáceis de serem aprovadas e de muito apelo, como leis e emendas constitucionais de grande impacto simbólico (e também prático), como o Escola Sem Partido, a redução da maioridade penal, mudanças na Lei Rouanet etc. Será necessário muita resistência para que a legislação sobre o aborto não seja destroçada pelo apetite da bancada evangélica, que deve tentar aproveitar a onda conservadora para impor um retrocesso imenso em temas caros ao valores cristãos e da família.
Ainda é duvidoso se Bolsonaro aplicará uma agenda ultraliberal como prega seu guru Paulo Guedes. Após vários recuos em relação a privatizações de estatais, é provável, por outro lado, que seu governo aprofunde uma agenda de flexibilização e desregulamentação da legislação trabalhista, e crie obstáculos para a fiscalização, com consequências para o combate ao trabalho escravo. A uberização já é uma realidade em diversos setores da economia, e deve ser ainda mais estimulada por essas mudanças e pelo apelo que o discurso do empreendedorismo teve durante a campanha.
Na área ambiental, a fronteira agrícola terá ainda menos obstáculos, e só uma regulação em âmbito internacional pode colocar algum limite à devastação. Como boa parte dos biomas brasileiros vem sendo profundamente afetados tanto pelas mudanças climáticas quanto pela exploração predatória, e é a agenda do agronegócio que saiu vitoriosa nesse domingo, não é razoável esperar que tenhamos qualquer boa notícia nesse campo por parte do governo eleito.
O retorno do recalcado fará sua arena no Congresso Nacional. Infelizmente, a extrema direita, antes de ganhar o parlamento, ganhou corações e mentes e espalhou sua mensagem para todos os cantos do país. A repressão policial deve se acentuar ainda mais, atingindo agora setores da sociedade que, por questões de classe, estavam ainda protegidos nas grandes cidades, autorizada pela votação de Bolsonaro e de muitos com seus perfis em todo o Brasil. Preocupa especialmente a população LGBT, cujas bandeiras estiveram na linha de frente da esquerda nos últimos anos e se tornaram alvo prioritário da ira da massa conservadora. A primeira tarefa da esquerda será criar uma rede de proteção aos mais vulneráveis, pois a retórica bolsonarista estimulou a violência sem medo de punição — é preciso lembrar que a principal base de Bolsonaro ao longo de toda a sua carreira foram os policiais militares.
Roberto Dutra: É uma pergunta muito difícil. Nós, cientistas sociais, somos famosos por nossa incapacidade de prever sequer o futuro adjacente. Isso é assim mesmo. Devemos aceitar e nos contentar com a construção de cenários possíveis. Para isso, o mais importante é saber se e quando Bolsonaro vai recalibrar as expectativas, apresentando concretamente o que vai fazer, quando e como. Lembremos que ele não foi a debates no segundo turno, se recusando a discutir suas intenções para o país. Pediu um cheque em branco e lhe foi dado. Agora nos resta ver como ele vai preencher este cheque e quem vai pagar a conta.
Precisamos saber duas coisas:
1) se ele vai aprender a jogar o jogo democrático ou vai continuar sendo o militar tosco que sempre foi. O poder corrompe, dizem. Mas quem sabe não seja capaz de dar alguma qualidade a uma pessoa já tão desqualificada? e
2) se ele vai mesmo adotar a política econômica e social ultraliberal de Paulo Guedes ou se vai inventar alguma gambiarra que não seja tão cruel como o prometido.
Ruy Fausto: Espero que as forças vivas do país saibam se organizar sem sectarismo e, se opor com inteligência aos projetos desse governo e a todo o mal que ele encarna, em termos de economia, de educação, de política cultural, de costumes, de política ambiental, de direitos humanos, de igualdade, e de liberdade.