Professor doente e desvalorizado
Doente e desvalorizado: sobre ser professor na rede pública
Quem passou por essa situação foi Leila, aluna da rede pública de São Paulo. E ela não está sozinha: há anos, escuto relatos de estudantes de todo o país que passaram, ou ainda passam, pela mesma problemática que ela. Alguns por um mês, outros por dois, e já ouvi relato até de quem passou praticamente o ensino médio todo sem aula de alguma disciplina.
Essa lacuna tem um efeito devastador no aprendizado. No caso de Leila, fez com que perdesse totalmente a confiança, e ela optou por nem se inscrever nos vestibulares deste ano.
Já Jade, outra estudante da rede pública, lembra que quando estava no primeiro ano do ensino médio, sua professora de química se aposentou e não encontraram ninguém para substituí-la ao longo do ano. "Sentia que era uma escola meio abandonada pelo estado e me dava a sensação de que, se eu não saísse daquele lugar, não iria bem no Enem", conta.
Dificuldade das escolas para encontrar substitutos
Por que isso acontece? Para entender um pouco mais sobre a problemática, falei com um diretor de um colégio público do Ceará e uma diretora do Rio de Janeiro.
Por muito tempo acreditei que o problema estivesse resumido ao seguinte: lacunas surgem quando determinado professor se aposenta, pede licença, precisa se afastar ou até mesmo começa a faltar com frequência, e, nesses casos, a gestão escolar pode encontrar certa ou muita dificuldade para cobrir os horários vagos com um novo profissional. Mas essa é apenas superfície.
As razões que fazem com que um professor se ausente são as mesmas que tornam difícil a substituição e escondem os verdadeiros problemas: o adoecimento do professor da rede pública brasileira, a desvalorização que esses profissionais sofrem, a falta de um plano nacional de carreira justo e a tendência das secretarias por relações de trabalho em que os docentes são temporários, e não efetivos.
Preferência por temporários
Sobre a dificuldade de encontrar substituto, talvez o primeiro instinto seja pensarmos (eu mesmo já fiz isso) que faltam formados nos cursos de licenciatura. Falei sobre isso com o José Marcelino Rezende Pinto, professor do curso de Pedagogia da USP de Ribeirão Preto.
Para ele, ainda temos graduados o bastante para assumir todos os cargos de docência e não haver razão para lacunas e consequentemente estudantes sem aula. No entanto, um dos problemas é que muitos dos recém-formados já não sonham mais em ser professores. Eles sabem que a chance de trabalharem muito, ganharem pouco e ainda não ser valorizados é muito grande.
Ele também ressalta a importância de nos atentarmos para um outro recorte desse contexto: a preferência da Secretaria de Educação por professores temporários e não efetivos. José estima que mais da metade dos professores da rede estadual de São Paulo sejam temporários. Maicon, professor da rede em Santa Catarina, acredita que a mesma coisa aconteça no estado.
Qual o problema dos temporários? Eles não têm os mesmos direitos que os efetivos nem a mesma segurança. José diz: "Esse profissional, muito provavelmente, será alocado em mais de uma escola, uma distante da outra em regiões de difícil acesso e em unidades com as piores condições de trabalho. Ele precisará inclusive arcar com o custo de transporte, e isso é tudo é muito desestimulante".
Assédio moral
Não somente os não efetivos passam pela situação de precisar completar a carga horária com aulas em mais de um colégio. Professores que não são de português ou matemática também sofrem com o mesmo problema. A razão é que há menos aulas de suas disciplinas nas escolas. Tiago, professor de filosofia na rede da Paraíba, já tinha passado muito por isso quando em 2016, após uma seleção interna, foi alocado para um colégio de ensino integral. Lá, além de ganhar mais, poderia cumprir toda sua jornada.
No entanto, começou a sofrer perseguição em 2018 quando denunciou casos de assédio moral contra ele e seus colegas e também outros problemas, como aluguel irregular para evento religioso na quadra do colégio. Depois disso, sofreu retaliação e foi realocado para uma escola regular, onde ganharia menos e voltaria para a rotina de compor a carga em mais de um colégio. Precisou entrar na Justiça para conseguir voltar para a escola de ensino integral.
Lucelaine é professora efetiva em uma escola pública do estado de São Paulo e frisa que os efetivos também estão sofrendo com a perda de direitos. Ela tem um ponto em comum com Tiago: já sofreu assédio moral. A razão é curiosa: queria trabalhar, fazer projetos com os alunos e isso incomodou a gestão de sua escola. "Cheguei a trabalhar 17 horas por dia na pandemia, dormia pouco e não tinha valor nenhum perante a gestão."
Doentes e com saúde mental abalada
Tiago e Lucelaine adoeceram devido às situações por que passaram. E não são casos isolados. Muitos, talvez até a maioria, de nossos professores estão doentes e com a saúde mental abalada.
Anna é professora de história no Ceará desde 1998. Segundo ela, as condições de trabalho são gatilho para adoecimento: elevada carga horária para conseguir um salário decente, grande quantidade de alunos por classe, salas muito quentes e a necessidade de passar o dia todo em pé, pois se se sentar um pouco já perde o controle da classe. Ela tem cerca de 800 estudantes e passa a maior parte do tempo com eles.
"Nós nos relacionamos com os estudantes e suas demandas e problemas que enfrentam nos afetam bastante, pois nos sentimos incapazes de não poder resolver problemas tão estruturais. Já cheguei a denunciar caso até de pai que abusava da filha", diz.
"Há também a relação entre nós, professores. Vivemos um momento de muita segregação na categoria. Há vários tipos, com salários distintos e direitos garantidos para uns e outros não, os chamados temporários. Há salários maiores e outros menores e até mesmo uns que têm mais respeito do que outros. Isso afeta diretamente a forma de nos tratarmos. Há também muita cobrança por produtividade, prazos e burocracias. Quem não consegue cumprir, acaba se sentindo incapaz", afirma a professora.
A pandemia tornou nítida a diferença entre ser uma professora mulher e precisar carregar tarefas domésticas, e ser um professor homem. No final do dia, ao chegar em casa, Anna já está esgotada, com a garganta péssima e não tem vontade de falar com ninguém. "Isso é muito ruim, pois o nosso espaço de acolhimento acaba sendo o lugar de jogar o corpo para descansar, e não há uma relação familiar saudável."
"Somos os principais alvos do retrocesso no país"
Há esperança para o futuro? Confesso que não sei, mas não há expectativa alguma de mudança se não, pelo menos, começarmos a dialogar mais sobre esses problemas. Ignorar não é o caminho. Por isso, gostaria de encerrar este texto trazendo uma fala da Anna, com um ponto que citou inúmeras vezes em nossa conversa e que imagino que também fará sentido para os professores que lerem este texto.
"Nós, professores, somos os principais alvos do movimento de retrocesso que vemos em nosso país e ninguém quer falar sobre isso.A gente tem consciência, mas ninguém quer falar sobre o problema. Há um nível de alienação que nos desespera. É agoniante estar numa sala de professores no intervalo e não conseguir dialogar. Quem fala algo sobre o assunto pode sofrer retaliação. Essa alienação nos silencia, e o silenciamento é violento. Eu sinto como uma espécie de violência. Há um grupo de professores que está na expectativa de que tudo mude para melhor no processo eleitoral. Apostar tudo nisso é arriscado."
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Vozes da Educação é uma coluna quinzenal escrita por jovens do Salvaguarda, programa social de voluntários que auxiliam alunos da rede pública do Brasil a entrar na universidade. Revezam-se na autoria dos textos o fundador do programa, Vinícius De Andrade, e alunos auxiliados pelo Salvaguarda em todos os estados da federação. Siga o perfil do Salvaguarda no Instagram em @salvaguarda1
Este texto foi escrito por Vinícius De Andrade e reflete a opinião do autor, não necessariamente a da DW.
Vinícius De Andrade Fundador do programa Salvaguarda