Professor doutrina?
É falta de bom senso achar que um professor pode doutrinar seus alunos', diz pesquisador americano
Historiador Dale Tomich é o vice-diretor do Centro Fernand Braudel de estudos avançados em história e historiografia, que está se mudando para o Rio de Janeiro; ele afirma que, ao contrário do que ministro da Educação brasileiro prega, não há doutrinação nas faculdades brasileiras
Helena Borges 06/06/2019
Dale Tomich, historiador e vice-diretor do Centro Fernand Braudel de estudos sobre desigualdade
Foto: Arthur Rangel / Divulgação
Dale Tomich é historiador e vice-diretor do Centro Fernand Braudel de estudos avançados em história e historiografia, que funciona há quatro décadas na Universidade do Estado de Nova York. Agora o centro vai ser transferido para Universidade Federal Fluminense (UFF). Assim como o trabalho de Tomich, o grupo de trabalho é focado em análise das desigualdades globais.
Em entrevista ao Globo, à beira da praia do Leme, no Rio de Janeiro, ele explica os motivos que levaram à escolha da UFF e traça um paralelo entre a crise no acesso à educação superior nos Estados Unidos e no Brasil.
Por que fazer a mudança?
Temos um centro de bastante sucesso na Universidade Estadual de Nova York, mas nosso trabalho chegou ao fim. Estou me aposentando, o diretor também. Binghamton sempre foi uma boa universidade, mas não estava na Ivy League (grupo restrito de faculdades privadas). Talvez isso tenha dificultado nosso trabalho de encontrar novos pesquisadores. Ficamos fora do "mainstream".
Por outro lado, isso nos permitiu fazer coisas novas que ninguém mais fazia. Por vinte anos estávamos entre os 3 melhores departamentos de história do mundo. E nós ainda temos uma reputação de excelência em história da ciências sociais.
E por que a UFF?
A UFF sempre foi, aos nossos olhos, o lugar perfeito. Conversei com os gestores da universidade de NY e eles acharam a ideia ótima. Queríamos uma equipe que pudesse dar continuidade ao projeto do centro de estudos. A UFF tem uma ótima faculdade de História e uma administração aberta à inovação. É o tipo de coisa que se aproxima de nós.
O departamento de história da UFF é muito respeitado. Conheço a UFF porque vim para cá nos anos 80. Vamos trazer uma biblioteca montada ao longo de 40 anos. São mais de 20 mil livros. E, quando eu parar de escrever, minha biblioteca pessoal, de 15 mil livros, virá para cá também. Estou muito feliz em dar esses livros para pessoas que vão usá-los para um ótimo trabalho. Temos dois anos de contrato para fechar o centro e transferir tudo.
Discutimos bastante, também, sobre como seria muito mais interessante criar um novo centro de referência internacional no Brasil do que nos Estados Unidos, porque aqui há muito mais liberdade intelectual.
Mais liberdade intelectual? Mas o grande debate tem sido sobre uma ideologia predominante nas universidades.
Conheci muitos professores aqui, nenhum deles era um doutrinador. As universidades brasileiras e seus estudantes têm bastante liberdade intelectual. É falta de bom senso achar que um professor pode doutrinar seus alunos.
Não ensino meus alunos a serem como eu. Mostro a eles meu ponto de vista, ao saírem da minha sala eles vão conhecer outros pontos de vista, depois eles vão montando seus próprios pontos de vista. Tenho colegas que são conservadores e, apesar de me considerar um progressista, não acho que sejam maus professores. Não é assim que funciona.
O ministro da Educação, Abraham Weintraub criticou três universidades federais brasileiras pelo que considerava falta de prestígio; e a UFF era uma delas.
No meio acadêmico, muitas vezes o prestígio pode te engessar. Binghamton não é uma Ivy League, e ainda assim nosso departamento estava entre os melhores.
Às vezes ser novo te dá uma vantagem. Quando você se torna uma grande e tradicional universidade, seu reconhecimento é dado por não quebrar as regras. E no momento atual, não só no Brasil, mas no mundo, nós precisamos pensar fora da caixa. Talvez o brasileiro não tenha noção do potencial que existe nessa universidade.
O governo brasileiro informou que irá reduzir o dinheiro investido em cursos de ciências humanas. Como esse tipo de ação pode afetar o desenvolvimento de um país?
Negativamente. Sou historiador, mas as ciências humanas são importantes também para os que não vão se tornar historiadores. Quando você tem um curso de ciências humanas de qualidade e acessível ao povo, as pessoas podem desenvolver seus potenciais e se integram melhor na sociedade, a sociedade se beneficia disso.
As universidades têm um tremendo poder de alcance em relação às comunidades em seu entorno. O filho de um fazendeiro pode entrar para a faculdade de agronomia e cursar outras disciplinas. Não é incomum estar em ambiente rural nos EUA, conhecer alguém que fez universidade e que, por isso, entende de história, ou ciência política, que sabe algo sobre relações internacionais. Essas pessoas não estão interessadas apenas em vender seus grãos de soja. Elas querem entender o mercado como um todo e, acima disso, querem exercer sua cidadania.
Weintraub disse que vale mais um filho de fazendeiros estudar veterinária do que antropologia.
Meu pai trabalhava com fazendeiros. Eu viajava com eles. Quando íamos jantar, sempre tinha alguém que contava sobre como fez um intercâmbio durante a faculdade e como isso mudou seu ponto de vista sobre o mundo e sobre as questões migratórias dos EUA. Eles não são especialistas, mas demonstram ter um conhecimento mais profundo sobre onde estão, no mundo; sobre como se encaixam na sociedade; e sobre como a sociedade funciona.
Mas, afinal, "vale mais" fazer veterinária ou antropologia?
Tudo depende de como você vê a Universidade e qual função você enxerga para ela. Encarar a Universidade apenas como um local onde as pessoas aprendem uma ocupação é uma ideia destrutiva, tanto para a instituição quanto para a sociedade. Sempre vai ter alguém por aí com um discurso sobre como você pode ser mais produtivo na sua profissão. Dessa forma, você sai de lá como um instrumento, como apenas mais um plugue na máquina. Não é que não saia esperto, mas não te dá o suporte para entender a sociedade em que você se encontra. E se for assim, não é mais educação, não é mais universidade, não é mais um sistema democrático de ensino.
Não é apenas sobre aprender a utilizar as atuais ferramentas de uma profissão. É sobre desenvolver o raciocínio crítico para desenvolver as próximas tecnologias, aquelas que ainda não existem.
Inclusive, foi devido a esse tipo de visão tecnicalista limitante que a união soviética decaiu. Eles se limitavam a entender a tecnologia que já existia. Então outras pessoas criaram novos tipos de tecnologia inovadoras e eles foram ultrapassados.
Esse corte no financiamento das ciências Humanas tem sido sentido nos EUA tamabém?
Isso está sob ataque nos EUA da mesma forma como aqui.
O nível de cultura nas instituições democráticas é realmente alto. Entender os problemas sociais é algo complicado, mesmo. As ciências Humanas sempre foram aparentemente "bagunçadas", porque um grupo diz uma coisa e outro grupo diz outra. As pessoas estão constantemente debatendo.
Se você olha para esse tipo de curso sob um critério mercadológico de "eficiência", de fato, você não vai considerar eficiente. Não tem como controlar uma faculdade de ciências Humanas como um chão de fábrica. Então você precisa viver um pouco com essa bagunça, mas o retorno vale a pena, porque eleva a compreensão da sua sociedade. E, ao saírem dali, as pessoas serão melhores em seus empregos, mesmo que elas não trabalhem diretamente com Humanas ou que nunca mais voltem a cursar algo nessa linha. Porque elas se tornarão cidadãos melhores.
O ministro da Educação brasileiro está querendo cobrar pela pós-graduação e chegou a fazer menção à graduação. O que o senhor acha disso?
As universidades estaduais dos Estados Unidos estão passando pelo mesmo ataque das universidades públicas brasileiras, só que de forma um pouco diferente. Os orçamentos estão sendo cortados e as mensalidades estão cada vez mais altas.
O número de professores nunca aumenta, mas o de alunos sim, porque precisam de mais gente pagando mensalidade. E as salas de aula devem abrigar o máximo possível, até que chegamos a um ponto no qual eu mal consigo dar aula, porque está tão cheio que não consigo circular na sala. Tudo é feito de forma a tirar o máximo de dinheiro possível daquele lugar. É ridículo.
Cursei uma universidade pública, entrei em 1964. Era uma das melhores universidades do mundo e custava apenas USD$150 dólares por mês. Era muito barato. Dinheiro não era um obstáculo, mas agora é.
As pessoas mal pagam suas contas do mês, atualmente, nos Estados Unidos. Então como vão conseguir enviar seus filhos para a universidade? E outra coisa que acontece com a crise americana é o aumento das dívidas estudantis.
Tivemos problemas no Brasil, também, com estudantes endividados por financiamento para pagar as universidades. Como fica essa situação nos EUA?
Os custos são extremamente altos. Me compadeço pelos meus alunos. Eles deixam a faculdade com dezenas de milhares de dólares de dívida. Isso significa que precisam de um emprego logo, isso se eles conseguirem um emprego.
É muito frustrante porque os estudantes são empurrados para carreiras que são consideradas "produtivas". Então eles saem da universidade com uma dívida enorme e, do jeito que o mercado de trabalho está, não há qualquer garantia que consigam logo um emprego, nem que esse emprego vá durar muito tempo.
Então você está se preparando para uma função que não vai durar muito e está se endividando para isso. Segundo, essa atividade está sendo instrumentalizada e talvez, em alguns anos, poderá ser substituída por uma máquina ou um programa de computador.
Você acha que esse formato de política educacional está vindo para o Brasil?
É o que parece.
Mas veja: quando eu entrei para a universidade, as estaduais eram as melhores e os cursos eram construídos de forma que uma faculdade ajudava a outra. Houve um ataque sistemático às universidades estaduais. As Ivy League (privadas) conseguem pagar ótimos salários, então pouco a pouco eles conseguem os melhores professores.
No fim, quem tem acesso às ferramentas para entender a sociedade? A elite. Eles estão progressivamente impedindo o acesso ao pensamento crítico.
Aqui está uma diferença com o que temos no Brasil hoje: ainda não há um sistema de universidades privadas de elite no mesmo nível de discrepância como há nos EUA.
Pela primeira vez, o censo universitário mostrou que a maioria dos estudantes de universidades federais são negros. Você acha que, se passarmos a cobrar, isso tende a regredir?
Eles não vão ter como ir à universidade. É muito importante ter uma política afirmativa de acesso à universidade. É uma ferramenta de transformação social. No início, alguns indivíduos podem ir muito bem, mas você precisa de tempo para formar uma nova cultura. Há muito no ambiente que é transformador.
O que eu acho incrível em Binghamton é que a cada novo semestre tem uma nova geração de imigrantes de um lugar novo. E seus filhos vêm para Binghamton. É muito interessante ver o trabalho da universidade, ali, como peça de integração da sociedade.