Profissão descaracterizada

Profissão descaracterizada

“No início da pandemia, eu não me sentia professor. Parecia que a profissão tinha sido descaracterizada”

Colunista da NOVA ESCOLA e professor de Educação Infantil, Evandro Tortora conta como a quarentena com o ensino remoto modificou sua rotina e prática pedagógica

POR:  Ana Paula Bimbati     03 de Março | 2021

Crédito: Mariana Pekin

Se o fechamento das escolas causou impacto nos Anos Finais, não há dúvidas que a Educação Infantil precisou se reinventar por completo perdendo uma das suas principais características de desenvolvimento dos pequenos: as interações e experiências entre eles. Para Evandro Tortora, colunista de NOVA ESCOLA e professor de Educação Infantil no CEI Tancredo de Almeida Neves, em Campinas (SP), a pandemia fez com que ele não se encontrasse na própria profissão. “Parecia que eu não era professor, não me encontrava”, relembra. 

E o que ajudou nesse período de adaptação? “As crianças me fizeram enxergar que eu era professor e o que eu podia fazer naquele momento”, conta. Evandro mudou seu planejamento e passou a organizar suas atividades respeitando o tempo de cada família e privilegiando vivências que ele pudesse acompanhar a distância. Evandro conversou com NOVA ESCOLA sobre as mudanças, Base Nacional Comum Curricular (BNCC) da Educação Infantil e expectativas para 2021. Confira: 

Você estudou em escola pública? Como foi sua experiência escolar?
EVANDRO TORTORA Eu adoro responder essa pergunta! Desde pequenininho, estudei em escola pública. Sou de Pederneiras, interior de São Paulo, que fica próximo a Bauru. Para ser sincero não gostei muito do meu Ensino Fundamental, porque era gordinho e sofria muito bullying. Na década de 90, a gente não discutia isso, então ficava muito ao léu. Hoje, como professor e cidadão mesmo, a gente vê a preocupação que a escola e até mesmo as próprias crianças têm com o tema. Estamos vivendo outros tempos. 

Já no Ensino Médio, passei a gostar mais da escola. Como trabalhava, fiz parte dele à noite. No último ano, lembro que gostava muito de Matemática e queria fazer Engenharia na Unesp, mas não passei. Aí teve o ProUni [Programa Universidade para Todos] e eu precisava indicar cinco opções. As quatro primeiras indicações foram em Engenharia. Adivinha qual foi a quinta opção? Escolhi a primeira que apareceu na frente: Pedagogia.

Quando saiu o resultado, eu tinha passado em Pedagogia. Como só estava trabalhando pensei ‘vou fazer Pedagogia à noite, eliminar matéria’, porque queria fazer Matemática também. Só que aí, já no primeiro semestre, me encantei demais pelo curso e escolhi ingressar de cabeça na Educação de crianças. Depois dessa decisão,  desembarquei no meu primeiro emprego na área que era como monitor.

Dali para frente não quis mais desistir. Ainda estudei Matemática e consegui unir as duas coisas que eu gostava. 

Ao longo desses anos, teve alguma crença que você reviu na sua prática profissional ao longo dos anos?
A minha visão de criança. Nesse ponto, meu curso de Pedagogia pecou bastante, porque a teoria e a prática me mostraram coisas bem diferentes. Acredito que primeiro preparam a gente para encontrar uma criança modelo na escola. Os teóricos Piaget e Vygotsky, por exemplo, dizem que a criança tem uma fase sensório motora, pré-operatória, que a linguagem da criança se desenvolve em tal idade. Então, a gente fica com aquele ideal de criança na cabeça. Mas na verdade, se a gente pensar dessa forma, estamos truncando nosso trabalho, porque precisamos estimular o desenvolvimento da criança para tudo isso acontecer. Essa crença que existe um modelo ideal de criança, que as coisas se desenvolvem dentro de padrões, a gente perde dentro da prática e foi uma crença que fui perdendo ao longo do tempo.

E o que você mais aprendeu estando em sala de aula com crianças?
Eu aprendi que elas têm muito a ensinar. É algo, inclusive, que me intrigava muito nos estudos, na graduação e na pós-graduação. Paulo Freire falava muito isso: a gente aprende com o outro. Para mim, a ideia de conhecimento estava muito atrelada à ideia daquilo que eu queria ensinar, que era Português, Matemática e Geografia. E hoje já vejo que elas me ensinam muito a ser professor através das falas, do quanto elas indicam o que querem aprender. A gente aprende todos os dias a ser professor, mas os bebês e as crianças também nos ensinam. Trabalhar com um bebê, que não sabe pedir em palavras o que quer, nos ensina muito.

Nem de menino, nem de menina: Brincadeiras para todos 

Para quem é útil: Crianças pequenas
Qual o objetivo: Propor jogos e brincadeiras que permitam às crianças maior liberdade de escolha sobre brinquedos e atividades, independentemente do gênero.
Campos de experiência da BNCC: EI03EO03, EI03EO05, EI03CG02

Em um dos seus últimos textos em sua coluna na NOVA ESCOLA, você fala como a Educação Infantil é um espaço muito presencial, em que as brincadeiras, interações e expressões faciais são muito importantes para a construção da aprendizagem das crianças e mesmo para seu desenvolvimento motor. Pensando nisso e na sua experiência em 2020, como foi ser professor desta etapa durante um ano letivo de pandemia?
No início, parecia que a minha profissão tinha sido descaracterizada, parecia que eu não era professor, não me encontrava na pandemia. Não queria buscar referências práticas no Ensino Fundamental para Educação Infantil, porque a gente já tentou fazer muito isso no passado, mas sabemos que são etapas com demandas diferentes. 

A gente teve de se reinventar para esse modelo à distância. Então precisei me ver como professor dentro desse contexto, pensar formas de interagir com a criança a distância. Nisso, tinha que considerar que eu era professor e que elas precisavam aprender a partir das minhas propostas, mas também que eu tinha um segundo papel, de ser quem mantém o vínculo delas com a instituição de ensino.

Falando de 2021, quais são suas expectativas para este ano?
Acredito que se a gente só pensar em voltar quando tiver vacina para todos, não vai acontecer tão cedo. Luto muito para que, pelo menos, os professores tenham prioridade. Não sou do grupo de risco, mas temos colegas que são e penso muito neles. Se pelo menos eles fossem vacinados já seria importante.

Já sobre as crianças, bom, as interações com as crianças vão acontecer, mas vamos ter de passar por um período de readequação, rever o tempo que as crianças passam na escola. Antes a gente tinha a adaptação, por exemplo, que acontecia durante uma semana com os pais dentro da sala de aula. Isso não vai poder acontecer neste ano, então precisamos pensar nessa adaptação com os novos protocolos de saúde.

Um dos pontos que ouvimos bastante nas discussões com a chegada da BNCC é sobre o trabalho na Educação Infantil com objetivos de aprendizagem, ou seja, toda atividade tem um objetivo e não é apenas uma “brincadeira”. Qual é o segredo para trabalhar com a intencionalidade pedagógica na Educação Infantil?
Vou falar primeiro sobre a BNCC, porque o ponto que mais me incomoda um pouquinho na Base são os objetivos de aprendizagem. Os campos de experiências, por exemplo, não são algo novo exatamente: a gente já vem falando de privilegiar a experiência da criança e o que é experiência há algum tempo. Mas quando a gente fala dos objetivos de aprendizagem, depende muito de como eles são lidos. Se a pessoa lê um objetivo de aprendizagem e quer colocar em um plano semanal pode ser que ela se frustre um pouco, porque são objetivos amplos e dependem da intencionalidade da própria atividade. A ideia do objetivo de aprendizagem do jeito que é posta é um pouco complicada

Pensando como especialista em Educação Matemática na Educação Infantil, os objetivos de aprendizagem que estão lá no campo de experiência dão a ideia que são pertencentes a um campo, quando na verdade deveriam integrar [os campos]. O jeito que está tabelado dá a sensação que é exclusivo àquele campo e sem integração aos outros campos. É importante não enxergar de forma separada, até porque tem o dito e o não dito de qualquer documento que se lê. O não dito da BNCC é esse: os objetivos de experiência precisam se integrar como os campos de experiência.

Considerando suas experiências e vivências docentes, qual dica ou conselho você daria para os seus colegas professores?
Sempre ter a humildade em saber que você pode aprender em qualquer momento. Nem sempre será um adulto, mas uma criança pode te ensinar muito, independente de seja qual for a etapa de ensino. Ter em mente que mesmo sabendo muito, a gente sempre tem muito a aprender.

 

https://novaescola.org.br/conteudo/20168/no-inicio-da-pandemia-eu-nao-me-sentia-professor-parecia-que-a-profissao-tinha-sido-descaracterizada 




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