Projeto de vida no novo ensino médio
Projeto de vida no novo ensino médio: alunos comemoram; professores se queixam de falta de formação
Espécie de programa para ajudar os jovens a se conhecerem melhor e a tomarem decisões pessoais e profissionais, matéria passou a ser obrigatória no currículo das redes pública e privada.
Por Emily Santos, g1 — São Paulo
Uma das inovações do currículo do novo ensino médio, em vigor no país há pouco mais de seis meses, o projeto de vida traz uma mistura de sentimentos. Enquanto alunos comemoram a oportunidade de ter um espaço para debater em sala de aula carreira e futuro profissional, professores se queixam da falta de formação para dar a matéria, que é obrigatória tanto para escolas públicas quanto privadas.
"Estar na sala de aula com os colegas e o professor e não precisar decorar fórmulas ou estudar teorias que não vou utilizar no meu dia a dia é um alívio. Em vez disso, posso refletir sobre o que quero para a minha vida", avalia o goianiense Marcelo Pereira, de 16 anos, sobre os 50 minutos que tem toda quarta-feira entre as aulas de geografia e matemática.
Acontece que a legislação que determinou a implementação da disciplina não é tão detalhada. Ela deixa, por exemplo, a cargo das instituições de ensino a definição de como e quando o projeto de vida será incluído na grade. (veja mais detalhes abaixo)
Também não estipula o perfil do profissional que dará a aula. Secretarias estaduais têm escolhido entre os seus docentes aqueles que tenham características como dinamismo, empatia, habilidade de escuta, resiliência e abertura ao diálogo. Algumas redes dizem fornecer capacitação, mas tem professores que relatam sentir falta desse preparo. "Me sinto perdido", diz um deles.
Nas particulares, a realidade parece ser outra. Entre as escolas ouvidas pelo g1, de estados como Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul, elas dizem já oferecer uma disciplina de "orientação socioemocional" em seu currículo desde antes da obrigatoriedade, com treinamento específico para os professores.
Confira abaixo o que prevê esse componente e as primeiras impressões de estudantes e docentes:
O que é o projeto de vida?
A alteração na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional que institui o novo ensino médio não traz muitos detalhes acerca do projeto de vida, apenas a determinação de que deve ser aplicado no ensino médio, considerando a formação do estudante nos "aspectos físicos, cognitivos e socioemocionais".
A Base Nacional Comum Curricular (BNCC, documento que estipula o conteúdo e as habilidades que devem ser desenvolvidas pelas escolas) prevê o projeto de vida como um meio de o estudante exercer sua cidadania e tomar suas decisões com “liberdade, autonomia, consciência crítica e responsabilidade”.
- Carga horária - Não há uma carga horária mínima exigida para o componente. Além disso, a escola pode escolher se aplica a atividade já no primeiro ano ou se a distribui ao longo dos três anos.
- Avaliação - A instituição também pode decidir se o projeto de vida valerá nota no boletim ou não.
- Professor - Tampouco há uma definição sobre o perfil do profissional que ministrará a matéria. A escola pode designar um professor que já integra a rede de ensino ou contratar alguém especificamente para a função.
Projeto de vida não tem carga horária mínima — Foto: TV Globo/Reprodução
Em geral, as secretarias estaduais de educação, que são as responsáveis pela oferta do ensino médio na rede pública, têm escolhido professores que já fazem parte do seu corpo docente. É o caso de ao menos 17 estados, segundo levantamento do g1 feito junto às 27 unidades da federação.
A maioria encaixa a disciplina na grade do primeiro ano do ensino médio, mas tem lugares, como o Distrito Federal, em que é oferecida ao longo dos três anos.
Além disso, das 17 secretarias que responderam aos questionamentos da reportagem, 14 disseram que a matéria já foi implementada em todas as suas escolas. Nos outros três estados, ainda precisa implantar em parte da rede - e isso ocorre por diferentes razões. Em Pernambuco, por exemplo, falta adotar em 24 escolas indígenas, onde, segundo o governo local, está em andamento um processo de negociação com os povos indígenas.
'Aula é sobre o que quero para meu futuro'
Novidade principalmente na rede pública, a matéria tem tido boa receptividade entre os estudantes. Na escola em que Kathielly Moura, de 15 anos, estuda na cidade de Serrinha, na Bahia, foi o professor de filosofia que assumiu o projeto de vida. Para ela, a decisão foi acertada.
"As aulas de filosofia são mais reflexivas e o projeto de vida, também. Meu professor tem essa [característica] e os alunos gostam muito das aulas dele", diz.
Kathielly Moura é estudante de 1º ano do ensino médio em Serrinha, na Bahia. — Foto: Arquivo Pessoal
Kathielly é representante de sua turma e conta que o retorno que os colegas dão da nova disciplina é positivo. Ela ainda atribui ao projeto de vida a mudança de pensamento que teve sobre o próximo passo após concluir o ensino médio.
"Eu mesma estava em dúvida do [curso] que queria fazer na faculdade e essa disciplina me ajudou bastante porque comecei a me encontrar. Essa matéria faz algumas perguntas que nos ajudam muito a diferenciar o que a gente quer do que é uma dúvida [sobre áreas e projetos de vida]", avalia.
Quem também elogia o novo componente é Alessandra Santos, de 15 anos, de Querência, no Mato Grosso.
"Essa aula é sobre o que eu quero para o meu futuro, o que quero da vida, e tem me ajudado muito a pensar no que quero para mim. Tenho refletido bastante", afirma.
Alessandra Santos faz o 1º ano do ensino médio na rede estadual do Mato Grosso — Foto: Arquivo pessoal
Ela conta que desde a infância sonhava em seguir carreira em perícia criminal, mas, depois das reflexões da disciplina, pode mudar totalmente de rumo. "Agora estou pensando em ser professora de filosofia".
No colégio particular Qi Metropolitano, do Rio de Janeiro, onde Isabelle Gambôa cursa o 1º ano, a disciplina equivalente ao projeto de vida é chamada de socioemocional. Segundo ela, a orientação foi fundamental para encarar a nova etapa de ensino.
"A proposta do novo ensino médio me deu medo, ainda mais depois desse período de pandemia. Ficou tudo muito complicado na minha cabeça, as questões de matéria ficaram meio emboladas, mas o socioemocional me ajudou no autoconhecimento e na organização [dos conteúdos das aulas]", relata.
Na escola, a responsável pela disciplina é uma orientadora pedagógica com formação em psicopedagoga - outro ponto positivo para a aluna. "Conseguimos ter uma abertura maior justamente por ela ser nossa orientadora. Temos a liberdade de conversar sobre nossas experiências, sobre o que nós queremos e sempre podemos ir à sala dela para tirar qualquer dúvida", conta.
'Como professor, me sinto perdido'
Apesar da boa impressão que o projeto de vida tem deixado nos alunos, o mesmo não acontece entre alguns professores da rede pública.
"Os alunos se envolvem porque é uma aula mais aberta, não é conteudista [com foco em conteúdo]. Mas, enquanto eles se encontram, eu, como professor, me sinto perdido. Não há uma formação específica para lecionar projeto de vida e a Secretaria de Educação deixa tudo nas nossas costas", queixa-se um professor da rede estadual do Rio de Janeiro que prefere não se identificar.
A falta de uma capacitação é também um dos problemas apontados pelo Sindicato dos Professores do Ensino Oficial do Estado de São Paulo (Apeoesp).
"Pretender que os jovens elaborem projetos de vida nesse contexto de falta de estrutura nas escolas estaduais, ausência de formação continuada para os professores e diálogo verdadeiro no ambiente escolar nos parece apenas uma forma de transferir aos alunos o ônus por todas essas deficiências, com base em um falso protagonismo e um 'direito de escolha' que não é cabível nesse contexto", diz a entidade em nota enviada ao g1.
Situação parecida é vivida pelo professor Paulo Mendes, que dá aulas na rede estadual de Divinópolis (MG). Ele relata não se sentir tão preparado em relação ao projeto de vida quanto está em geografia, área de sua formação.
"Para dar aulas de geografia, eu estudei por quatro anos, fiz pós-graduações e, agora, estou fazendo meu mestrado. Mas, para ensinar o projeto de vida, a única coisa que disseram foi 'vai lá e completa sua carga horária'. Não recebi nenhum tipo material de apoio, nenhuma formação continuada, nada".
Ele conta que ficar responsável pelo projeto de vida não foi uma escolha, mas uma necessidade. "Eu leciono uma das disciplinas do novo ensino médio, mas também precisei assumir o projeto de vida para completar minha carga horária mínima. Como professor concursado, preciso cumprir um mínimo de horas e só a disciplina pela qual sou responsável não preenche o requisito", explica.
Professores reclamam de falta de capitação sobre projeto de vida — Foto: Reprodução
O que dizem as secretarias
A Secretaria de Estado de Educação do Rio de Janeiro informou que oferece aos professores formação para o novo ensino médio com um módulo voltado para o projeto de vida, apesar de o apoio da secretaria aos profissionais não ser específico para o projeto de vida ou outros componentes curriculares.
Sobre as críticas da Apeoesp, a Secretaria da Educação do Estado de São Paulo disse que "os docentes contam com formações eventuais em Aulas de Trabalho Pedagógico Coletivo (ATPCs), transmitidas via Centro de Mídias SP, pela Escola de Formação e Aperfeiçoamento dos Profissionais da Educação do Estado de São Paulo (EFAPE)".
Acrescentou ainda que a "disciplina e as competências socioemocionais no ensino médio são contempladas por meio de ações formativas direcionadas a docentes, diretores, professores coordenadores do núcleo pedagógico e supervisores".
Já a Secretaria de Estado de Educação de Minas Gerais disse que "os profissionais responsáveis pela aplicação do projeto de vida têm a sua disposição formação continuada e webinários oferecidos pela SEE/MG sobre o referencial teórico e operacionalização do componente curricular".
Impacto do projeto de vida
Para o psicopedagogo Carlos Alberto Gonçalves, o novo componente pode ser o maior diferencial do novo ensino médio se for devidamente aplicado.
"A ideia de oferecer aos alunos um espaço em que eles possam apenas refletir sobre o que querem, quem são e quem podem ser é sensacional, especialmente nessa etapa escolar em que há muita tensão sobre notas, conteúdos e vestibulares".
No entanto, ele ressalta que é preciso ser dado apoio aos docentes.
"Não vejo problema em oferecer a atividade para um professor que já atua com a turma, mas, para isso, é preciso que seja ofertada também uma formação específica para este profissional. Afinal, mais do que nunca, a responsabilidade de ajudar o aluno a decidir sobre seu futuro recai sobre ele e não é uma responsabilidade qualquer", observa.
"Se a proposta é tornar o ensino médio mais atrativo e eficiente, isso deve ser feito desde o começo e desde a base, que é onde está o professor", completa Gonçalves.