ISABELLA SANDER  20/10/2023

 

Para combater a violência nas escolas, é preciso promover a cultura da paz. Mas é possível fazer isso em uma sociedade com altos índices de criminalidade e agressões verbais e físicas? Cada vez mais instituições de ensino apostam que sim – e têm investido na escuta, através da metodologia da Justiça Restaurativa, como uma forma de acolher e criar uma relação de confiança com os alunos.

Maior escola da rede municipal de Porto Alegre, a Liberato Salzano Vieira da Cunha, no bairro Sarandi, sofria com recorrentes encaminhamentos de estudantes briguentos para a delegacia do Departamento Estadual da Criança e do Adolescente (Deca). Situações como essa foram diminuindo em 2022 e, em 2023, simplesmente sumiram. O que aconteceu?

Nos últimos anos, a instituição investiu em iniciativas de promoção de escuta, acolhimento e expressão, por meio da Justiça Restaurativa. Muito usada por juízes e promotores para resolver conflitos e evitar a judicialização, a metodologia também passou a ser implementada nas escolas, principalmente desde 2018, para prevenir a violência.

Na Liberato, dois trabalhos nesse sentido acontecem em paralelo: os Círculos da Paz, realizados com todas as turmas a cada dois meses e quando há alguma demanda pontual, e o Laboratório de Expressão, onde estudantes de algumas séries – em especial as de transição – fazem atividades semanalmente usando imagens e textos para expressar seus sentimentos e desenvolver habilidades para comunicá-los.

Quem entra no Laboratório de Expressão sente que está acessando uma aula de Artes: por todo lado, há pinturas, desenhos, objetos montados com papelão e colagens, além de uma árvore decorada. Tudo isso foi sendo proposto e construído pelos próprios alunos, a partir de reflexões feitas em conjunto.

O projeto foi desenvolvido por Patrícia Cardinale Dalarosa, que, além de professora da rede municipal, é psicóloga. Quando ingressou na escola, encontrou um cenário de encaminhamentos recorrentes ao Deca e casos de automutilação de adolescentes. Na época, um grupo com estagiários e psicologia foi criado, para promover a conversa entre os estudantes. A proposta deu certo e cresceu, abrangendo, além dos jovens, também as crianças e os professores. Com o tempo, a arte se uniu à escuta, como aliada no processo de expressão dos sentimentos.

– A gente começou a usar a arte como potência de existência. Mergulhamos na saúde mental, principalmente em relação à expressão, entendendo-a como uma possibilidade contrária à depressão, que é de exteriorizar experiências, sentimentos, afetos, e nomeá-los por meio da expressão – conta Patrícia.

Para fazer as atividades, a professora conta com o apoio de estagiários de Psicologia. No dia em que GZH esteve lá, a estudante da UniRitter Suellen Germann auxiliava nas atividades. O trato das duas com a turma de 9º ano era delicado: os adolescentes foram consultados sobre se gostariam ou não de conversar com a repórter, e a maioria pareceu confortável e motivada a falar sobre como se sentiam em relação a esse projeto. Rapidamente, o objeto de fala – um tigre de pelúcia que quem está falando deve segurar, enquanto os outros escutam – entrou na roda.

 

Anselmo Cunha / Agencia RBS
Alunos reunidos em seção de conversa na Escola de Ensino Fundamental Júlio Brunelli, referência em Justiça Restaurativa no RS.   Anselmo Cunha / Agencia RBS

– Aqui é um espaço de sigilo. Da primeira vez que eu cheguei aqui, a sora me disse que seria um espaço muito bom pra gente falar sobre coisas que a gente não tem coragem de falar lá fora, no mundo. E é isso: um lugar para termos sigilo e quebrarmos tabus – define Isabelle.

Fernanda conta que o laboratório ajudou a apaziguar a relação com o professor da turma, que estava acostumada à forma como a docente do ano anterior ensinava.

– A gente tinha muitas brigas na sala, e tinha um professor com quem a gente brigava muito. Todo mundo era violento com ele, porque a gente não sabia como dizer que ele não estava ensinando do jeito que a gente costumava aprender, e eu acho que foi isso (o laboratório) que nos ajudou. As aulas melhoraram muito – relata a adolescente.

Nicolas diz que, quando entrou pela primeira vez na sala que abriga o laboratório, se sentiu mais calmo. Tímido, gostou da chance de conversar com os colegas.

– Às vezes, quando tem muita gente perto, não me dá muita vontade de falar. Por isso que, muitas vezes, não falo: me sinto desconfortável. Quando tem pouca gente, me dá vontade de falar um pouco, falar sobre a minha vida – comenta o estudante.

Como as turmas são grandes, para conseguir trabalhar adequadamente com todos os alunos, elas são divididas em dois grupos. Cada um passa metade de um período semanal fazendo atividades ali. No relógio do laboratório, uma mensagem de tranquilização: “Calma que dá tempo”.

Para Marcelo, aquele é um dos seus espaços favoritos na Liberato.

– Sempre que entro aqui, me chamam a atenção as coisas que estão aqui dentro. São muitas perguntas, muitas imagens, e tudo agrega à nossa comunicação, à nossa conversa. Aqui, podemos esquecer tudo o que está lá fora. A gente aborda muitas coisas, respeita o que o outro está falando e tenta ajudar de alguma forma – relata o jovem.

A professora entende que o gosto dos alunos pelo espaço se deve ao trabalho “não se encaixar em uma só caixinha”:

– É um processo de inclusão. Como a gente não enquadra, as diferenças são muito bem-vindas, porque é na diferença que existe a criação. E isso, por si só, é um combate à violência, porque a violência nasce desse desejo de homogeneizar tudo, porque, aí, tu não cabe dentro daquilo.

Já o Círculo da Paz foi implementado no ano passado pela gestão da escola, que percebeu, após a pandemia e o período de isolamento social, mais conflitos e situações de sofrimento vividas pelos estudantes. Por isso, para além do laboratório, a metodologia foi institucionalizada e passou a abranger todas as turmas.

– Sempre tem uma peça central no círculo como elemento, de acordo com o que vai ser falado naquela ocasião. Se são sentimentos, a gente pode ter algum livro, alguma música, depende. Aí, pegamos o objeto da palavra e cada um fala de cada vez – detalha a orientadora educacional Aline Bizello.

A gente começou a usar a arte como potência de existência. Mergulhamos na saúde mental, principalmente em relação à expressão, entendendo-a como uma possibilidade contrária à depressão, que é de exteriorizar experiências, sentimentos, afetos, e nomeá-los por meio da expressão.
PATRÍCIA CARDINALE DALAROSA.   Professora e psicóloga

No centro do círculo, emojis representando diferentes emoções podem ser escolhidos pelos alunos, tanto na chegada para o encontro, como na saída. Assim como no Laboratório de Expressão, o sigilo é uma regra: tudo o que for dito ali, deve ficar ali. Os participantes também devem entender que não há uma verdade absoluta e que cada um pode expressar o que tiver vontade, sem obrigação de falar.

O projeto foi iniciado pela orientadora educacional Gisele Alt de Oliveira no final do primeiro semestre de 2022. Ela já passou pelo curso de Justiça Restaurativa, assim como o vice-diretor, Paulo Sérgio da Silva. A ideia deles é que mais professores façam essa formação, para que a implementação aconteça, também, em outros contextos da escola.

Referência em Justiça Restaurativa na rede estadual, a Escola Estadual de Ensino Fundamental Júlio Brunelli, localizada no bairro Rubem Berta, em Porto Alegre, capacitou 90% de seus professores e funcionários, em 2018, no treinamento dos Círculos da Paz. Essa foi uma aposta da diretora Vanice Loose, que recebeu o apoio da comunidade escolar.

– Qual é a prioridade? Será que é só dar o conteúdo, ou organizar o espaço escolar para que, de fato, o aluno se sinta acolhido, confortável ali? Se tu te sentes bem em um ambiente, automaticamente o conteúdo vai se tornar prazeroso. Se tu vais a um espaço onde só tem briga, discussão, bullying, tu não vais nem querer vir para esse espaço – analisa a diretora.

 

Bruno Todeschini / Agencia RBS
Atividade de aproximação entre os estudantes auxiliam na fala e na divisão de sentimentos.  Bruno Todeschini / Agencia RBS


pandemia reforçou situações já latentes antes dentro da escola, como a infrequência escolar e a distorção idade-série. Com isso, tornou-se ainda mais importante fazer o ambiente ficar mais atrativo para os estudantes e suas famílias. Somado à parceria com a Brigada Militar, que garante uma sensação maior de segurança diante de uma realidade de comunidades no entorno atingidas por brigas de facções de criminosos, o esforço para acolher essas crianças e adolescentes tem dado tão certo que os próprios Círculos da Paz já não são mais tão necessários.

– O círculo não é tão constante, mas as práticas restaurativas foram colocadas no planejamento dos professores. Hoje, do 1º ao 9º ano, todas as disciplinas, em algum momento, precisam trazer práticas restaurativas para o espaço escolar. Não vou dizer que é fácil, porque o professor precisa desacomodar, mas é necessário, porque, hoje, o aluno precisa de um espaço seguro para se colocar, e a escola tem sido um dos únicos espaços seguros que ele tem – observa Vanice.

Se, em 2016, as brigas aconteciam em todos os recreios e as próprias famílias agiam com agressividade em relação à escola, atualmente, a relação é, via de regra, de paz:

– Os nossos alunos são muito afetivos. Muito, muito afetivos. E, quando você dá um espaço, eles se sentem acolhidos e ouvidos, o clima muda e a violência vai diminuindo.

A presença da diretora e suas vices na entrada e na saída do colégio, além da participação dos professores em brincadeiras como o Dia do Cabelo Maluco, na Semana da Criança, também ajudam a criar um ambiente de confiança mútua e integração, na opinião de Vanice.

Aluno respeitado na sua individualidade

Em Caxias do Sul, o cuidado socioemocional abrange ações em diferentes instâncias no Colégio São José. São quase 2 mil estudantes matriculados, mas a orientadora educacional Patrícia Calgaro garante que conhece aluno por aluno na sua individualidade e que a preocupação de desenvolvimento de um vínculo dos pequenos com a escola não é exclusiva dos professores: é repassado para cada funcionário, desde a direção, passando pela cantina, a secretária e a portaria.

– Trabalhamos na formação e na prevenção, para evitar a intervenção. A convivência diária na escola tem que ser saudável em sua integralidade, e isso exige da escola uma capacitação de seus funcionários. Todo ano, trabalhamos questões de saúde mental e espiritualidade já no início do ano com a nossa equipe, e, durante o ano, gradativamente, temos uma série de trabalhos que acontecem, com o propósito de evitar a intervenção – pontua a orientadora educacional.

O São José possui câmeras de segurança e implementou catracas liberadas por meio de biometria facial. Mesmo assim, entende que a verdadeira sensação de segurança ocorre a partir da cultura de paz. É realizado, por exemplo, um trabalho de combate ao ciberbullying com todas as etapas de ensino. Para tanto, são mapeadas as necessidades em cada idade e são trabalhadas diferentes temáticas, com frequência a partir de trechos de séries, filmes e letras de música, a fim de criar identificação com os jovens.

Os Círculos da Paz também existem na instituição desde 2018. As sessões de escuta acontecem ao longo de todo o ano. Quando a questão é mais individual, a instituição busca fazer instituições – traça o perfil daquele estudante e, por vezes, o troca de turma, quando enxerga que as características dele se adequam melhor a outro grupo.

– Se é um aluno mais estudioso que está e uma turma mais dispersa, ele vai ficar deslocado. Às vezes, trocamos o estudante da turma X para a Y e o resultado já é imediato – comenta Patrícia.

Uma equipe multiprofissional externa atua, ainda, no acompanhamento das crianças e adolescentes. Com profissionais como psicólogos, psiquiatras e professores particulares, são feitas reuniões para traçar estratégias para um trabalho individualizado mais assertivo.

FONTE:

https://gauchazh.clicrbs.com.br/educacao/educacao-basica/noticia/2023/10/escolas-apostam-no-acolhimento-para-promover-a-cultura-da-paz-e-prevenir-a-violencia-clnxh8up7009u015y28m0m6yx.html