Quando o remédio mata o paciente
Emenda Constitucional 109: quando o remédio mata o paciente
A aprovação do auxílio emergencial era urgente, urgentíssima, e, assim, nos vimos reféns de mais uma medida imposta
A emenda, sob o bastião da redução de gastos públicos, aprofunda o teto de gastos criado em 2016 e adota medidas com imenso potencial desestruturante de políticas públicas - Marcello Casal Jr. /Agência Brasil
A aprovação do auxílio emergencial era urgente, urgentíssima, e assim, nos vimos reféns de mais uma medida imposta pelo governo, que chantageou sem pudor parlamentares e opinião pública para, se aproveitando novamente do momento, aprovar medidas de alto impacto social, na esteira das demais medidas aprovadas dos últimos anos.
Essa estratégia não é inédita para nós. Ouvimos reiteradamente, nos últimos quatro anos, esse discurso da necessidade de aprovação de medidas de alto impacto e custo social para manter a saúde econômica do país.
Apesar de todas as reformas dos últimos anos – teto dos gastos, trabalhista e da previdência, – terem sido feitas e apresentadas como a solução necessária, única e imediata para a retomada do crescimento econômico e do emprego, o Brasil completa o quarto ano de crescimento insignificante ou negativo, e todas essas medidas fracassaram, como era previsto.
Com efeito, segundo o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatistica), a população ocupada no último trimestre de 2015, que é a soma de todos os empregados no setor privado - com e sem carteira assinada, empregados no setor público, empregadores, trabalhadores por conta própria e trabalhadores familiares auxiliares, era de 92,2 milhões de pessoas. No último trimestre de 2020 a população ocupada passou para 86,1 milhões de pessoas, num período em que a população em idade de trabalhar cresceu 11,3 milhões de pessoas.
A Emenda Constitucional 109 é somente a mais recente tentativa de redução do papel do Estado, mas não a última, já que o governo ainda tenta a aprovação da reforma administrativa, e segue na contramão da necessidade da população brasileira, principalmente neste contexto de pandemia, cada vez mais e mais carente da prestação de serviços públicos.
De maneira geral, a emenda, sob o bastião da redução de gastos públicos, aprofunda o teto de gastos criado em 2016 e adota medidas com imenso potencial desestruturante de políticas públicas.
À luz da experiência atual da pandemia de covid-19, vivida e sofrida pelo mundo todo, grande parte dos governos de outros países passaram a reorientar suas políticas econômicas e ampliar os gastos públicos, de tal forma a responder às necessidades trazidas pela pandemia.
A necessidade de ampliar e qualificar a prestação de serviços públicos nunca foi tão evidente. No Brasil essa necessidade é ainda maior, pois apesar de possuir apenas 2,7% da população mundial, o país teve 10,5% de todas as mortes causadas pela covid-19 no mundo, até agora.
Porém, o Brasil toma iniciativas na contramão das nossas necessidades e da reorientação mundial, limitando ainda mais os gastos com despesas correntes e restringindo a capacidade do Estado de melhorar a qualidade dos serviços prestados.
Para ser mais específico, na mesma senda que a norma de congelamento de gastos aprovada no governo Michel Temer, a recém promulgada norma define que as despesas não devem ser superiores a 95% das receitas e que, se isso ocorrer, estaria caracterizada “emergência fiscal”, e a União, Estados, o Distrito Federal e municípios, e seus poderes, poderão adotar, assim como durante o período da “calamidade pública” causada pela covid, dentre várias outras medidas, proibição ao reajuste de salários, de criação de cargos e de realização de concursos públicos.
No texto aprovado, essas medidas podem ser tomadas pelo Poder Executivo, no todo ou de maneira parcial, a partir do momento em que as despesas ultrapassem 85% das receitas.
Ocorre que esses “gatilhos” para as proibições já são uma realidade brasileira.
De acordo com a análise trazida pelo DIEESE, três estados brasileiros já teriam que colocar em prática toda essa limitação orçamentária, a despeito do caos da prestação de serviços públicos na atual crise sanitária: Rio Grande do Sul, Minas Gerais e Rio Grande do Norte.
Além dos três estados, outros 15 (quinze) estados possuem comprometimento da receita entre 85% e 95% e que também já poderiam colocar em prática tais medidas. Isto é, cerca de dois terços dos estados brasileiros já estão em condições de implementar as medidas de contenção de gastos primários, deteriorando ainda mais os serviços públicos. Em pouco tempo esses gatilhos serão alcançados também pela União e ainda é desconhecido o impacto potencial sobre os municípios.
Outro aspecto fundamental aprovado pela EC 109, e com grande impacto para os servidores e serviço público, é a inclusão de aposentados e pensionistas no cálculo de gasto com pessoal. Essa inclusão fará com que a relação entre esse gasto e a receita aumente em grande escala e, em muitos casos, ultrapasse os limites, o que implicará, como dissemos, em mais um fator significativo para disparar o gatilho das proibições dadas pela mudança constitucional.
Segundo, ainda, a análise em gráfico apresentada pelo DIEESE:
Comprometimento da Receita Corrente Líquida com Gasto com o Pessoal, com e sem Inativos e Pensionistas / Tesouro Nacional / DIEESE
Como se vê, antes da inclusão das despesas com pensionistas e inativos no gasto com pessoal dos estados, haviam quatro estados que ultrapassavam o limite máximo de gasto com pessoal. Com a inclusão dos inativos e pensionistas no cálculo, a relação mudará e 21 estados ultrapassarão o limite máximo, ficando impossibilitados de investir em pessoal.
Como se fosse pouco, a mesma EC 109 retira recursos dos Estados e Municípios, com o fim da compensação pelas perdas tributárias causadas pela desoneração das exportações, e introduz dispositivos que subordinam os direitos sociais ao pagamento da dívida pública, com desvinculação de recursos e aplicação dos gatilhos previstos na emenda para manutenção da “sustentabilidade da dívida”. Ou seja, a EC 109 criou 3 tipos de gatilhos para limitar despesas: emergência fiscal, calamidade pública e sustentabilidade da dívida. Todos sabemos que a democracia não deveria ser o regime do mercado, pelo mercado e para o mercado.
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Em síntese, a EC 109 tem potencial de congelar os salários de boa parte daqueles que estão salvando a vida do povo brasileiro no combate a pandemia, e dos demais servidores públicos federais, estaduais e municipais, por até 15 anos – prazo de vigência da EC 95, pela aplicação de algum dos 3 gatilhos, além de inviabilizar qualquer ampliação permanente na prestação de serviços públicos de saúde, educação, segurança pública.
Considerando o cenário econômico atual, nos próximos anos provavelmente não se poderá pensar em construção de novas escolas e universidades, hospitais e postos de saúde e até mesmo unidades prisionais, em face das restrições de contratação introduzidas pela Emenda.
Os 11,4 milhões de servidores públicos existentes no país serão afetados mais rapidamente pela EC 109, mas quem sofrerá o grande impacto pelo conteúdo dessa emenda é a sociedade brasileira, condenada a perpetuar condições ainda insuficientes da prestação de serviços públicos.
E tudo isso foi feito para autorizar um auxílio emergencial limitado, em valores e quantitativo de pessoas beneficiárias, cujo valor total não vai ultrapassar um mês do auxílio emergencial pago na primeira onda do covid, quando o alcance da pandemia foi menor que aquele do pesadelo que estamos vivendo.
É inaceitável que o povo brasileiro continue servo de políticas que não atendem o seu sofrimento. Não basta responsabilizar um governo abjeto e desqualificado, todos aqueles, de todos os poderes, e de parte da sociedade, que estão contribuindo para essa incapacitação do Estado em responder às necessidades de sua população, são, no mínimo, moralmente responsáveis.
A EC 109 deve ser revogada por sua flagrante inconstitucionalidade e por congelar a prestação dos serviços públicos no momento em que a sociedade mais necessita. A fórmula de auxílio insuficiente e congelamento dos serviços públicos terminará por matar de fome, doença, ignorância e insegurança o povo brasileiro, uma morte Severina.
*Lara Lorena é advogada e membro da ABJD-SP
**Guilherme Zagallo é advogado e membro da ABJD-MA
***Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.
Edição: Rebeca Cavalcante