Quem decide o que ensinar?
Quem decide o que ensinar? Manifesto docente contra a Liga de Educação Cívica
Raquel Freire Bonfim*
Imbuída do intuito de popularizar os símbolos, heróis e datas comemorativas que faziam parte de um determinado ideal de nacionalidade, a Liga de Educação Cívica, em sua congênere baiana, direcionou sua atuação às escolas e colégios públicos e privados.
Seguindo os seus rastros na imprensa do início da República, é possível notar o esforço da Liga para cultivar o patriotismo no seio de uma população que não compartilhava os mesmos traços identitários. Desde a fragmentação provinciana, que passou pelo complexo processo do 02 de julho – iniciado por uma não aderência aos termos em que se propunha a independência brasileira a partir do centro – a Bahia, como outras regiões, forjou sua identidade assente em outras referências.
Dentro de um ideário republicano em que se propalava a máxima da nação única com o seu panteão de fundadores, sua bandeira e seu hino nacional, essas referências que particularizavam à experiência baiana precisavam ser unificadas por meio de um processo educativo baseado em festas cívicas sob uma concepção do que seria o chamado Estado-Nação, Brasil.
Neste processo, não houve apenas – ou pura e simplesmente – conformação a esse ideal que se pretendia como um sentimento geral nacionalista e, consequentemente, as ações da Liga da Educação Cívica, na Bahia, encontraram oposição.
Em 21 de novembro de 1903, reagindo a uma sessão solene da Liga em que se fizera, entre outras coisas, uma distribuição de bandeiras às escolas; o professorado municipal enviou ao jornal Correio do Brazil um abaixo-assinado que deslegitimava a Liga de Educação Cívica contestando a sua competência para opinar e intervir sobre o cotidiano das instituições escolares dizendo o que se deveria ensinar. A quem compete a decisão do que ensinar nas escolas?
Correio do Brazil: Órgão Democrata (BA), 21 de novembro de 1903, n. 77, p. 2. Acervo da Biblioteca Nacional
Os professores e professoras, os quais não foram nomeados integralmente no documento, advertiam ao público e à Liga o conhecimento da categoria docente sobre os seus deveres cívicos. Em edições seguintes do periódico, dias após a manifestação docente, os mesmos tiveram, publicamente, em notícia divulgada pela imprensa, sua iniciativa ridicularizada em forma uma rima trocista. No momento seguinte, não se localizaram outras manifestações dos professores, havendo um silenciamento sobre a produção do abaixo-assinado, bem como do ato da categoria docente resistir a um acerbado movimento nacionalista dentro das escolas.
Correio do Brazil: Órgão Democrata (BA), 27 de novembro de 1903, n. 82, p. 2. Acervo da Biblioteca Nacional.
As páginas do Correio do Brazil, até o ano de 1904, não publicaram mais as notas de contestação dos docentes baianos. Ao contrário. Multiplicaram as divulgações das festas patrióticas promovidas pela Liga de Educação Cívica, o que pode ser um indicativo de alinhamento entre imprensa e o projeto de nação em curso.
Neste sentido, é importante questionar a nação que passava a ser concebida pela Liga e adequada à celebração da “Pátria brasileira”. Pátria de quem? Que concepção dessa mesma pátria tinha o professorado público baiano para se reunir em um protesto escrito contra as ações daquela instituição? Que tipo de interposição a Liga de Educação Cívica exercia sobre as escolas para moldá-las de acordo com as ideias nacionalistas em torno de um suposto país “coeso”? São mais reflexões do que questões em buscas de respostas, já que, algumas delas, é possível inferir, sem cometer anacronismos, se considerarmos que, ainda nos nossos dias, muitos e muitas brasileiras não tem voz e poder de decisão diante à práticas pedagógicas e curriculares pensadas e idealizadas para nossas escolas que deveriam contemplar a todos e todas.
Isso remete seguirmos com indagações e reflexões sobre os chamados processos de emancipação e independência de um país de segue privilegiando medidas e decisões antidemocráticas e não alicerçadas aos preceitos democráticos. Logo, retomando o ano de 1903, mas pensando também o ano de 2020, questionamos como o conceito de nacionalidade está sendo reformulado em nossos tempos por diversas agências do poder público e grupos da sociedade civil? De que modo, pretendem esses representantes de uma ideologia nacionalista se imporem através de um processo de ingerência na educação, principalmente, na educação pública? Mais importante: quais histórias, experiências e valores éticos estão sendo deixados de lado, silenciados ou ridicularizados nas diversas mídias e discursos? Qual lugar e legitimidade vêm sendo dado aos nossos professores e professoras?
Esse texto, que se encaminha para a sua conclusão com mais perguntas do que respostas, sinaliza como o processo de afirmação da brasilidade é complexo, possuindo discordâncias e trajetórias dissonantes em seu interior. Mais do que isso, aponta para o papel relevante das resistências – sobretudo dos profissionais da educação – para dar lugar à pluralidade das concepções de mundo que se chocam com uma perspectiva falaciosa de uma sociedade com aspirações e crenças monolíticas – perspectiva essa que se torna perigosa ao fundamentar e justificar posturas violentas, intolerantes e excludentes.
* Graduanda do curso de licenciatura em História da Universidade Estadual de Santa Cruz. Membro do Grupo de Pesquisa em Política e História da Educação (GRUPPHED/UESC).
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