Querem nos calar?
Querem nos calar?
Valdete Souto Severo*
03 de agosto de 2020
No dia 31 de julho, mais um juiz foi alvo da instauração de procedimento disciplinar, de ofício, por parte do Ministro Humberto Martins do CNJ. O motivo foi um erro material em duas decisões proferidas. Em lugar da palavra “menos”, a palavra “mesmo”. As decisões, que determinavam o relaxamento da prisão, continham a ordem de “devolução dos bens apreendidos ao autuado, mesmo o entorpecente”. Devia constar: menos o entorpecente. Até porque, se fosse para devolver tudo, não precisava excepcionar. Até porque um objeto ilícito, quando apreendido, não pode ser devolvido. Um erro evidente, portanto. Tão evidente que as ordens foram cumpridas com a devolução do que pertencia à pessoa irregularmente presa e com a apreensão da droga.
Ainda assim, como tem ocorrido com muitos colegas ultimamente, o juiz Pierre Souto Maior Coutinho de Amorim foi execrado pelas mídias sociais. A decisão, com o erro material, circulou no mundo virtual, junto com ofensas a Pierre e a sua família. O dano e o sofrimento que daí decorrem são irreparáveis. As duas decisões contendo o mesmo texto foram publicadas nos dias 28 e 29 de julho. Ao saber do equívoco, o juiz imediatamente as retificou. Ainda assim, já no dia 31 de julho havia procedimento disciplinar de pedido de providências instaurado, de ofício, contra ele. Ao menos essa foi a informação obtida por Pierre, pois recebeu, através de rede social, o pdf da decisão. Ele ainda não foi intimado, mas a referida decisão já circula.
Tem sido uma constante: a instauração de procedimento disciplinar sem provocação, assim como a ciência, por parte do investigado, através da mídia, antes mesmo de intimação oficial. Aconteceu com outras magistradas e magistrados. Muitos, como Pierre, membros da AJD. Alguns fatos recentes motivaram, inclusive, pedido de apuração da prática de crime de abuso de autoridade, por parte do Ministro Corregedor. Trata-se de uma preocupação legítima.
Semana passada, em uma sessão do CNJ, os conselheiros ratificaram, por maioria de votos, liminar de Humberto Martins, que proibiu o juiz Douglas de Melo Martins, também membro da AJD, de participar de lives “que possuam conotação político-partidária ou que possam ser considerados como de militância política”. A entrevista virtual de que participaria o juiz tinha por objeto esclarecer pontos de uma decisão por ele proferida. Durante a votação, o Ministro Toffoli afirmou que Douglas “quis aparecer e resolver o problema da epidemia”. E acrescentou: “quem sabe ele quis, por meio de decisão judicial, criar uma vacina. Só faltava isso”. Esse comentário não se refere à possibilidade ou não de participação em debates sobre questões públicas relevantes como a necessidade de isolamento social. Manifesta opinião subjetiva sobre a posição do juiz Douglas, diante de uma política de descaso com o adoecimento e a morte por covid-19, que no Brasil já resulta mais de 93.000 vidas precocemente ceifadas.
Na mesma sessão, em análise à decisão colegiada do Tribunal Regional do Trabalho da 4ª Região, que concedeu afastamento para o exercício da presidência da AJD, o Ministro Dias Toffoli comentou que também criaria uma associação de conselheiros para a democracia e seria o presidente. O voto do Relator, por sua vez, pouco referiu sobre o ato colegiado que estava em exame, mas reproduziu trechos de notas publicadas pela Associação Juízes para a Democracia, como se fosse a entidade a estar sendo julgada. A ementa do julgamento refere que a AJD tem atuação que “coloca em dúvida a imparcialidade dos magistrados, com manifestações políticas”, insuflando “a população a questionar a integridade do Poder Judiciário e a contestar a dignidade e a respeitabilidade das instituições judiciárias, sobretudo a da Suprema Corte”.
Todos esses comentários direcionam-se contra manifestações políticas, como se política não fosse aquilo que importa à polis, à sociedade em geral. A AJD, que não devia ser alvo do escrutínio do CNJ, pois não era esse o objeto da demanda, sempre se manifestou no sentido da necessidade de fortalecimento e independência do Poder Judiciário e das juízas e juízes que o compõem. A defesa da democracia interessa à magistratura, como deve interessar a toda a sociedade, exatamente para evitar práticas persecutórias contra inimigos de ocasião; para evitar que juízas e juízes sejam publicamente admoestados e disciplinarmente punidos apenas porque dialogam com a sociedade, proferem artigos científicos, produzem decisões consentâneas com a ordem constitucional ou erram, como qualquer ser humano. E não é só a magistratura. Há professores, policiais, cientistas, jornalistas sendo perseguidos por emitirem opinião e atuarem de modo crítico. Basta ver a notícia veiculada esta semana, sobre o relatório produzido pelo Ministério da Justiça, em relação a servidores e professores ligados a movimentos antifascismo. O Ministério Público Federal já pediu explicações, mas talvez elas sejam evidentes. Já há instrução normativa autorizando a punição de servidores por manifestações em redes sociais. Trata-se de silenciamento imposto. Já vivemos isso, sabemos para onde essa lógica nos conduz.
Em uma democracia, não podem haver palavras proibidas, discursos interditados ou perseguições perpetradas com exposição midiática. Um erro material evidente não pode ser motivo para linchamento virtual ou procedimento disciplinar de ofício. É preciso garantir o exercício dos direitos fundamentais, a independência judicial, a liberdade de manifestação e o funcionamento das instituições, permitindo que as entidades que representam diferentes classes atuem em condições de igualdade e infensas a avaliações subjetivas e ideológicas acerca das pautas que defendem. Afinal, ainda temos uma Constituição. E é preciso respeitá-la.
- Valdete Souto Severo é Juíza do Trabalho do Tribunal Regional do Trabalho da 4ª Região (TRT-4) e presidente da Associação Juízes para a Democracia (AJD)