Racismo estrutural tira aprendizado

Racismo estrutural tira aprendizado

Racismo estrutural tira dois anos de aprendizado de alunos pretos, mostram exames

Menos oportunidade de acesso à creche e apoio pedagógico são apontados por especialistas como fatores para a defasagem, sentida já nos anos iniciais

Isabela Palhares   SÃO PAULO

 

Alunos pretos ao final dos anos iniciais do ensino fundamental (do 1º ao 5º ano) têm desempenho escolar menor, equivalente a dois anos a menos de aprendizado do que brancos, na rede pública brasileira.

Enquanto a média da nota das avaliações de português e matemática de alunos pretos é de 5,26, a de estudantes brancos é de 6,29. A diferença, segundo especialistas, equivale ao que se aprende, em média, em dois anos na escola.

O levantamento foi feito pelo Iede (Interdisciplinaridade e Evidências no Debate Educacional), a pedido da Folha, com dados do Ideb (Índice de Desenvolvimento da Educação Básica). O indicador é calculado a cada dois anos pelo MEC e é o principal termômetro do ensino brasileiro.

Aluno da Escola Maestro Fabiano Lozano, na zona sul de São Paulo; segundo relatório do Pisa, 41% dos alunos brasileiros reportaram que nas aulas de português o professor tem que esperar um longo tempo para os estudantes ficarem quietos Zanone Fraissat/Folhapress

Para especialistas, o menor aprendizado já ao início da trajetória escolar é resultado do menor acesso à educação infantil na população preta e da ausência de ações de apoio pedagógico específico para os estudantes.

“O menor desempenho não se dá porque alunos pretos aprendem menos, mas porque, desde pequenos, têm menores oportunidades educacionais. Essa diferença já ser tão grande no começo da vida escolar mostra que o país está falhando no combate à desigualdade racial”, diz Ernesto Faria, diretor-executivo do Iede.

Segundo o IBGE, 39% das crianças brancas de zero a três anos estavam matriculadas em creche em 2018. A taxa chega a apenas 32% entre os bebês pretos dessa idade.“É o racismo institucional presente já no início da vida das crianças pretas, ao dar a elas já na infância menos oportunidades de estímulo e desenvolvimento”, diz Alexsandro Santos, doutor pela Faculdade de Educação da USP.

A pesquisa mostra também que a diferença de desempenho é ampliada conforme se aumenta o nível socioeconômicos dos estudantes. Entre os alunos de nível “muito baixo”, a diferença de nota é de 0,5 ponto, o equivalente a um ano de estudo —pretos têm nota 4,98 e brancos, 5,5.

Já no estrato social “muito alto”, a diferença chega 1,35 —mais de 2,5 anos de estudo— pretos têm nota 5,5 (a mesma dos brancos mais pobres) e brancos, 6,85.

O nível socioeconômico dos estudantes é calculado com base nas características relativas à renda, equipamentos em casa, ocupação, escolaridade de suas famílias. Diversas pesquisas e estudos já comprovaram forte correlação entre resultados escolares e a condição socioeconômica e cultural em que vivem os alunos.

Para os especialistas, o menor desempenho mesmo entre grupos com situação socioeconômica igual aponta também para uma discriminação inconsciente no ambiente escolar pela ausência de discussão sobre o racismo.

“Mais do que um racismo velado, muitas vezes há um racismo inconsciente dentro da escola. Professores, gestores, educadores não percebem que adotam uma postura diferente em relação a alunos negros, com menos estímulo a eles, menos apoio, menos tolerância a situações de indisciplina. Isso acontece sem que tenham nitidez do que estão fazendo”, diz Santos.

A diferença de tratamento em relação aos colegas foi percebida por Rozana Barroso, 21, nos primeiros anos de escola. Ela lembra de chegar em casa com as folhas do caderno rasgadas pela professora, como forma de repreender o que considerava falta de capricho da aluna com as lições.

“Ela ia corrigir minhas lições e dizia que eu era relaxada, me chamava de porca, dizia que eu sujava o caderno e então rasgava as folhas. Eu ficava muito envergonhada, me sentia mal”, conta a jovem, que na época estudava em uma escola particular e era a única aluna negra na unidade.

Ela diz que a professora nunca fez nenhum comentário em relação à sua cor, mas, hoje, vê que a diferença de tratamento era uma demonstração de racismo. “Não entendia por que ela me tratava daquela forma, por que não gostava de mim, mas agora entendo que era por preconceito.”

A partir do 6º ano, Rozana foi estudar em escola pública e lembra da infraestrutura precária da escola e falta de professores. Aos 13 anos, ela começou a trabalhar em meio período para ajudar a família. “Era a mesma situação da maioria dos meus amigos, íamos para escola de manhã e depois para o trabalho.”

Ela repetiu o 9º ano e conta que pensou em desistir de estudar, mas, na mesma época, conheceu integrantes do movimento estudantil e diz ter entendido o que a desmotivava. “Eu achava que a culpa era minha por não aprender, mas entendi que era pela falta de oportunidades.”

Hoje, ela estuda em um cursinho popular e vai prestar vestibular para cursar biomedicina. “Quero ser a primeira mulher da minha família a não ser empregada doméstica, a primeira a entrar na faculdade”, diz.

Rozana, mulher negra, discursa em protesto cercada por mulheres que empunham bandeiras

Rozana Barroso, 21, conta ter sofrido racismo nos primeiros anos da escola- Rozana Barros/Arquivo Pessoal

A diferença de desempenho entre os estudantes se mantém nas demais etapas etapas da educação básica, ainda que de forma menos acentuada. No 3º ano do ensino médio, alunos pretos tiveram nota de 4,09 e brancos, de 4,21.

No entanto, a partir dos anos finais do ensino fundamental (do 6º ao 9º ano), um dos princiais desafios da educação brasileira é a grande evasão dos alunos, sendo a maior parte deles negros. Segundo o IBGE, 58,3% dos jovens pretos concluíram o ensino médio até os 19 anos em 2019. Entre os pardos, o índice é de 59,7%. Entre os brancos, a taxa é de 75%.

Dos 10 milhões de jovens entre 14 e 29 anos que deixaram de frequentar a escola sem concluir o ensino médio, 71,7% são pretos ou pardos.

Para os especialistas, a desigualdade racial na educação precisa ser combatida com políticas públicas, com o diagnóstico das disparidades e ações que promovam a equidade.

Segundo Santos, escolas e educadores têm consciência teórica do racismo na educação, mas não conseguem enxergá-lo na prática. “Precisamos aumentar o grau de letramento racial dos nossos professores. Muito não enxergam que o preconceito está presente na sala de aula. Precisamos dar a eles subsídio para corrigir a prática pedagógica.”




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